Alguma forma de permanência
Não sei quem disse que quando uma pessoa morre, morre um mundo com ela. Sei apenas que é impossível mensurar quantos mundos se perdem para sempre todos os dias
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Paulo Sales
paulo.sales@bol.com.br
Quando vou ao apartamento de minha mãe, costumo separar para doação alguns livros que estão lá na estante. São volumes já amarelecidos, empoeirados e retorcidos pelos anos inúteis à espera de um leitor, quase todos sobre assuntos que não têm para mim qualquer utilidade. Nada melhor, portanto, que possam encontrar em outras paragens alguém interessado. Outro dia, ao folhear rapidamente um deles, caiu nas minhas mãos uma folha dobrada de papel manteiga, na qual havia um poema datilografado, chamado Teu Nome.
Fiz uma rápida pesquisa na internet e descobri que o autor é José Bonifácio, o moço (descendente daquele outro, conhecido como Patriarca da Independência). Os versos, de um romantismo desbragado, não me impressionaram. Embaixo do poema, no canto inferior do lado direito, uma breve dedicatória sem data: “Estes versos minha amiga é bem aplicado a um amor engrato que surge na boa marcha da nossa vida. Da amiga Magna para voçe minha boa Zuleika”.
Os erros de português, o cuidado em datilografar o poema e a espontaneidade com que a dedicatória foi escrita me comoveram. Zuleika era minha madrinha e tia-avó (na verdade o mais próximo que tive de uma avó em termos de afeto e presença). Segundo minha mãe, Magna era uma antiga amiga dela, também já morta. Mas quem era o amor “engrato” a que ela se referia? A pequena e delicada folha de papel manteiga é um frágil testemunho dessas relações que já não existem. Mais do que isso, é a prova de que essas pessoas passaram por aqui e deixaram pegadas no solo do tempo.
Até que ponto realmente desaparecemos do mundo? Ateu que sou, não me refiro ao reino do sobrenatural, com seus espíritos que perambulam entre nós em diferentes planos. Mas como não enveredar por esse território quando pensamos em alguma forma de permanência? Lembro dos habitantes de épocas distintas coabitando a mesma casa no breve e bonito romance É a Ales, de Jon Fosse. Vários ramos de uma mesma árvore genealógica convivendo entre si numa atmosfera que beira o delírio, a alucinação. Tragédias que se perpetuam como uma sina, um fado triste.
Não sei quem disse que quando uma pessoa morre, morre um mundo com ela. Sei apenas que é impossível mensurar quantos mundos se perdem para sempre todos os dias. Como é possível não restar nada da minha tia-avó, além de retratos e reminiscências? Guardo comigo livros que ela me deu de presente, com suas longas e afetuosas dedicatórias. Um deles ganhei quando criança, justamente o que mais ansiava ler: Cem Noites Tapuias, de Ofélia e Narbal Fontes, da Coleção Vaga-Lume. Logo na primeira página está escrito: “Paulinho (meu lindo). Beijando-lhe em alegre Natal cheio de presentes e o ano-novo com saúde e deliciosas férias, o carinho e este presentinho certo? A tia dinda que muito bem lhe quer. Zuleika. 21/12/1980.”
Certa vez, muitos anos mais tarde, ela sugeriu que eu escrevesse um livro contando a história de sua vida. Nessa época, já havia passado dos 80 anos. Estávamos na varanda da minha casa conversando e minha tia passou então a listar acontecimentos que a tornaram o ser humano que se tornou: uma pessoa de semblante invariavelmente alegre, com sede de viver invejável. Eram acontecimentos não apenas da vida dela, mas pertencentes também à saga da minha família, iguais aos de muitas outras pessoas, mas por outro lado absolutamente singulares.
Um desses episódios eu nunca esqueci: na infância ela foi raptada pelo pai, um marinheiro que a levou para morar com ele no Rio. Só depois de algum tempo ela voltou para a mãe, minha bisavó, mulher pobre e viúva recente, que conhecera esse marinheiro e com ele tivera minha tia. Ela lembrava até mesmo de uma “laranjinha gelada” que chupou no navio. Fico imaginando o que minha tia-avó viveu ali: o sumo da laranja na boca, a saudade da mãe e talvez um incipiente senso de aventura naquela cabine de navio, vendo o oceano à sua frente. Mas, mesmo que eu tente reproduzir essa e outras histórias, elas serão só um espelho distorcido e amorfo do que aconteceu quase 100 anos atrás, nunca o acontecimento real.
Mais cedo, mandei uma foto da folha datilografada para meu primo, filho da minha tia-avó, e ele respondeu: “Que bom resgatar versos machucados e ainda cheios de vida (e não somos nós assim mesmo, machucados mas não aniquilados?). Caíram em boas mãos e delas certamente sairá algo que ajude a perpetuar ainda mais a magia das palavras, mesmo que por algum tempo estivessem esquecidas nas dobras de um livro que ainda vive”. Bem, destas mãos acaba de sair esta crônica modesta e sem brilho, mas que ajuda a perpetuar a memória de alguém que, não sei bem como, ainda está aqui.