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Paulo Sales
Publicado em 18 de março de 2024 às 05:00
Numa cena de Dias Perfeitos, novo filme de Wim Wenders, o solitário e ensimesmado Hirayama diz a sua sobrinha: “Há muitos mundos no mundo. Alguns se conectam, outros não”. Eu acrescentaria que há muitos mundos em um só dia. Num breve intervalo de 24 horas, bebês rompem a placenta de suas mães feito tufões e se projetam no território inóspito da existência. Idosos ou nem tanto se despedem dela entre lamentos e murmúrios. Casais copulam, se apaixonam, devastam-se em discussões, repelem-se, odeiam-se. Homens e mulheres despertam com letargia, o trânsito contorna as suas camas reclamando desse eterno espreguiçar.
Em Porto Príncipe, Bombaim, Nairóbi, Madri, Salvador ou Tóquio, pessoas vivem momentos de profunda solidão sem se conectarem. Como Hirayama e sua vida ordinária: acorda, arruma-se para o trabalho, limpa banheiros públicos, registra o movimento das árvores numa praça e por fim toma seu drinque para encerrar mais um dia. Como tantos outros, como tantas vidas iguais. Mas, pensando bem, como assim iguais? Se cada ser é único, se cada dor é singular, se cada trajetória se inicia e se encerra como nenhuma outra no mundo?
Ao lançar luz sobre o cotidiano banal de Hirayama, Wenders na verdade mostra como cada dia nos reserva uma experiência singular, mesmo que eles se pareçam tanto entre si. Afinal, há manhãs em que adoraríamos permanecer umas horas a mais na cama após uma noite de insônia. Noutras, despertamos ansiosos por receber o sol na cara e explorar as ruas. Há dias em que desconhecidos nos abordam e outros em que reencontramos pessoas queridas ou rememoramos o que enterramos no passado. E ninguém fica sabendo.
Já nos créditos finais de Dias Perfeitos, Wenders cita a expressão japonesa komorebi, que remete ao fenômeno dos raios de sol filtrados pelas folhas das árvores. Nenhuma komorebi é igual a outra. Talvez venha daí o fascínio de Hirayama (vivido pelo excepcional Koji Yakusho) pela luz do dia e pela projeção dessa luz nas árvores, nos prédios, nas pequenas quinas e arestas que sobram de horizonte em uma metrópole enorme, fria e tecnológica. Porque ele sabe que cada instante é único. É uma contemplação puramente sensorial, eternizada em fotografias de uma velha câmera analógica, como de resto são os objetos usados por ele: fitas cassete e livros antigos.
“Às vezes me sinto tão feliz, às vezes me sinto tão triste”, canta o Velvet Underground em Pale Blue Eyes, que Hirayama escuta no toca-fitas a caminho do trabalho e que eu escuto agora. Ele também ouve Otis Redding (“Não tinha nada pelo que viver. Parece que nada vai ser do meu jeito”), Van Morrison (“Tão difícil de encontrar o meu caminho agora que estou por minha conta”), Patti Smith (“À beira do oceano estava tudo tão sombrio”), Lou Reed (“Apenas um dia perfeito, os problemas todos deixados de lado”). E ao final, entre lágrimas, Nina Simone: “É um novo amanhecer. É um novo dia. É uma nova vida para mim. E estou me sentindo bem.”
Compartilho do fascínio de Hirayama pela beleza contida em cada aurora. Como ele, tenho minha rotina matinal: acordo, faço xixi, escovo os dentes, troco de roupa e saio com Pudim para passear no parque. Cada manhã me entrega diferentes iluminações: raios filtrados pela vegetação, a lagoa cada vez mais cheia, a garça buscando novas táticas de caça, a pata e seus sete filhotes, a galinha preta que deve ter escapado de um despacho, a cachorrinha que paquera Pudim buscando novas artimanhas para seduzi-lo. A senhora que varre o passeio e com quem troco palavras amistosas, as diferentes entonações de “bom dia” a quem passa, os papos com meu amigo e vizinho que certamente lerá esta crônica.
Hirayama, como eu, sabe que a vida é um delírio cotidiano, ainda que obscurecido por tédio, torpor e desatino. Um perder-se e encontrar-se indefinido, no qual tateamos buscando uma nesga de sentido, um rasgo de epifania, uma centelha de sabedoria, um naco mínimo de enlevo. Seja no desabrochar de uma flor, num verso de poema ou num hiato quase imperceptível em que uma cor indefinida no céu nos lança violentamente de volta à infância. Encerramos nossos segredos e prosseguimos. Reprimimos nossas lágrimas e prosseguimos. Observamos a passagem dos anos nos envergando e prosseguimos.
Mais cedo, deixei a tela do computador onde trabalhava, aqui mesmo na biblioteca, e fui à janela espairecer. Minha filha voltava do passeio da tarde com Pudim. Ela me viu lá de baixo, sorriu e acenou. Acenei de volta e senti um breve, mas avassalador instante de ternura. Esse momento tão banal, tão prosaico, me preencheu como se recebesse uma descarga elétrica. Então cantei baixinho, para mim mesmo, os versos de uma antiga canção de Silvio Rodriguez: “Soy feliz. Soy un hombre feliz”.