A tinta invisível do destino
Mohamed Mbougar Sarr escreveu, em A Mais Recôndita Memória dos Homens, que “o acaso é apenas um destino escrito em tinta invisível”
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Paulo Sales
paulo.sales@bol.com.br
Ouvir Jacqueline du Pré tocar Carnival of the Animals – The Swan, de Camille Saint-Saëns, me inunda de enlevo, como uma floresta invadida pela cheia de um rio. Uma sensação de que o tempo se desloca e me projeta na direção do passado, longe da cidade bela e desigual em que vivo, longe do brutal século em que meus dias se sucedem – de maneira mais vertiginosa do que gostaria. O violoncelo de du Pré me acaricia os ouvidos e o espírito. E é impossível reprimir o lamento por ela ter povoado o mundo por tão pouco tempo.
Jacqueline du Pré parou de tocar aos 28 anos em consequência da esclerose múltipla, que a fez perder a sensibilidade nos dedos e demais partes do corpo, até levá-la aos 42 anos. Casada com outro músico prodigioso, o pianista e maestro argentino Daniel Barenboim, ela conviveu com alguns dos maiores instrumentistas do seu tempo. Costumava usar violoncelos Stradivarius nas suas apresentações: um de 1673 e outro de 1712. Em comparação com nós, meros humanos, os grandes instrumentos beiram a imortalidade.
Provavelmente é um desses Stradivarius que du Pré manuseia com absoluta destreza no tema que escuto agora, a Sonata para Cello No. 2, Op.99 – II. Adagio Affettuoso, de Brahms. Encontro no YouTube um registro dela com Barenboim tocando esse tema. Contemplo a instrumentista em ação: jovem, bonita, enérgica e concentrada, os cabelos loiros e longos presos para trás. Impressionantes o esforço físico e a entrega emocional necessários para dar forma ao sublime.
Mohamed Mbougar Sarr escreveu, em A Mais Recôndita Memória dos Homens, que “o acaso é apenas um destino escrito em tinta invisível”. Mas não são todos os destinos assim, escritos com tinta invisível? Com que tinta foram impressos os hieróglifos que formularam a esclerose múltipla no DNA de Jacqueline du Pré? Provavelmente a mesma que decretou o surgimento da esclerose lateral amiotrófica no organismo de Tony Judt, um dos mais brilhantes expoentes da intelectualidade britânica do pós-guerra. É como se houvesse uma predileção cruel do destino contra quem, como disse Borges, está a salvar o mundo.
Judt narra seus dias derradeiros no belíssimo O Chalé da Memória: “Talvez a consequência mais desalentadora da minha doença atual – mais deprimente que suas manifestações práticas diárias – é a consciência de que nunca mais andarei de trem. Esta certeza pesa sobre mim como um cobertor de chumbo, que me pressiona cada vez mais para dentro da noção sombria de um final que marca a verdadeira doença terminal: a compreensão de que certas coisas nunca mais acontecerão. Esta ausência é maior do que a mera perda do prazer, a privação da liberdade, a exclusão das novas experiências.”
Mudo um pouco de assunto (ou talvez seja apenas mais uma variação do mesmo tema). Terminei de ler esta semana um estupendo romance do cubano Leonardo Padura. Chama-se Como Poeira ao Vento e fala da imposição do destino sobre quem somos e o que fazemos. Aqui, porém, não estamos diante de enfermidades letais, mas da História com H maiúsculo, essa avalanche que arrasta milhões de vidas, liquefazendo a ideia de que somos indivíduos dotados de livre-arbítrio.
Padura descreve a realidade em Cuba entre 1990 e 2016 e a diáspora que empurrou milhares de cubanos para o exílio. Reflete também sobre como a geração que é a dele e dos seus personagens foi tragada pelos infortúnios que assolaram o país: a indigência, a falta de perspectivas, o sistemático desmoronar dos sonhos, a desilusão, o desperdício. “Um período? Quanto tempo dura um período? É composto por instantes, momentos, dias, anos, décadas, séculos? Para a única vida fugaz e irrepetível que temos, quanto dela cabe num período sem limites previsíveis? O Paleolítico e o Neolítico, com milhares de anos a reboque, não eram períodos?”
Mas, ao falar do imensurável valor da amizade, Padura nos mostra que é possível borrar os rabiscos feitos com a tinta invisível do destino e conceder à vida algum consolo. “Naquela noite, como se tivessem combinado, os remanescentes do Clã mantiveram os demônios no fundo de suas cavernas, pois, mais que celebrar o nascimento de Jesus Nazareno, festejaram a permanência da amizade. A existência de uma confraria, aquele vínculo forjado por eles muitos anos atrás e que, apesar das dores e dos golpes que a vida sempre costuma oferecer, dos rigores que a história se encarrega de impor, das motivações pessoais e das conjunturas nacionais que os distanciaram na geografia por vários lugares do mundo, tinham preservado.”