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Qual é o futuro dos fogos? Setores debatem saída para bombas de São João


 

Fogos com estampido causam desconforto em autistas, pessoas acamadas e pets

  • Thais Borges

Publicado em 16/06/2024 às 05:00:39
Fogos de artifício. Crédito: Shutterstock

De um lado, os defensores das bombas barulhentas ou dos fogos com algum tipo de estampido. De outro, os amantes da festa junina que acreditam que é hora de rever algumas tradições. Para os dois grupos, o São João de 2024 vem com um desafio: encontrar um novo caminho na soltura de fogos de artifício.

Se por muito tempo, apenas as internações por queimaduras foram um dos maiores motivos de preocupação nessa época do ano, elas têm dado mostras de que o contexto agora é outro. Primeiro porque elas caíram pela metade, se comparados junho de 2019 - último antes da pandemia da covid-19, quando as festas foram suspensas - e junho de 2023, que marcou o primeiro São João com as liberações após a emergência sanitária.

Os casos saíram de 45 há cinco anos para 21 no ano passado - uma redução de 53%, de acordo com a Secretaria da Saúde do Estado (Sesab). Mas os dados têm sido um reflexo de uma nova postura, sentida com mais intensidade nos últimos anos, de acordo com o coronel Lanusse Andrade, titular do Comando de Segurança Contra Incêndio do Corpo de Bombeiros. “Acho que tem melhorado o comportamento humano, justamente por essa prevenção de não causar transtornos em áreas com concentração de público”, avalia.

As primeiras alterações na legislação começaram há pouco mais de duas décadas. Começou com a proibição da fabricação, venda e soltura de balões, ainda em 1998. Depois, ao longo dos anos 2010, cidades como Senhor do Bonfim e Cruz das Almas proibiram a guerra de espadas, que era apontada como uma das responsáveis pelo alto número de acidentes com queimaduras nos festejos.

Agora, os setores envolvidos na fabricação e venda de fogos também estão em busca de alternativas que não afetem tanto os pets, os idosos acamados, crianças e pessoas autistas. “Realmente, é uma preocupação muito grande chegar a um nível de decibéis que não tenha esse nível de desconforto”, diz o pirodesigner Ricardo Cielo, que também é blaster (a pessoa responsável por ligações e manuseio de fogos de artifício).

Legislação

De acordo com Cielo, as indústrias têm tentado se manter abaixo de 120 decibéis. A Associação Brasileira de Pirotecnia tem debatido com o Exército, que é quem fiscaliza a fabricação de fogos, e também com o Congresso para chegar a uma nova legislação.

Estados como São Paulo já têm leis que proíbem fogos com efeitos sonoros, mas isso ainda não acontece na Bahia. No fim de 2019, a Câmara Municipal de Salvador chegou a aprovar uma lei nos mesmos moldes, mas a última movimentação do texto indicava que o projeto foi encaminhado para a supervisão de redação final, ainda em 2020.

“Um tiro (de alguns fogos) tem 79 decibéis. Em um estádio de futebol, a torcida bate 125 decibéis. O que estamos fazendo também são estudos para combater a clandestinidade”, explica Cielo.

Fogos com estampido podem ultrapassar os 150 decibéis, em especial quando não são controlados. É o que acontece, segundo ele, com os produtos feitos de forma artesanal. “Uma bomba feita de forma clandestina não tem os mesmos critérios de fabricação. Quando fazem clandestinamente, pode ter quantidade excessiva de pólvora branca, de carvão”, enumera.

Famílias

O perfil dos consumidores de fogos parece ter mudado nos últimos anos. O desenvolvedor de sistemas Gabriel Vieira, 29 anos, viu a diferença em sua família. Desde criança, ele viaja para passar o São João na fazenda dos tios paternos em Sapeaçu, no Recôncavo. Mas, em anos anteriores, mesmo nos dias que antecediam à viagem, ele e os amigos já brincavam com fogos no prédio. “Hoje em dia, eu solto os fogos que meu tio compra para a fazenda e que não incomodam muito as pessoas. Vulcão e aqueles típicos de Ano Novo”, conta.

Ainda assim, sente falta da época em que soltava bombinhas com os amigos na rua. Em seu círculo de amizades, não há mais quem queira se divertir com fogos. “Eu sei que bomba é chato e incomoda quem não quer participar daquilo”, pondera. “Essa mistura do perigo e da beleza das luzes é uma equação complicada. É o que causa o fascínio de muita gente mas também é o que pode estragar as festas de muitas outras pessoas”.

Ter uma pessoa no espectro autista na família e parentes com animais de estimação são aspectos que fizeram com que a discussão sobre fogos se tornassem frequentes na vida da bacharel em direito Mariana Bezerra, 25. “Eu não posso negar que, apesar de entender o lado dessas pessoas e tentar ter uma opinião mais humanizada com relação a isso, também tenho uma certa tristeza por essa tradição ter diminuído”, admite.

Desde criança, Mariana cresceu com os festejos juninos em família. Os encontros diminuíram, mas continuam acontecendo pelo menos na véspera do São João e no dia de São Pedro, quando um dos tios comemora o aniversário. “Enxergo que a tradição deve ser mantida sendo adaptada às novas regras, porque é uma tradição não só aqui da Bahia, mas do Nordeste”, acrescenta.

O problema é que, como lembra a presidente do Centro Palmares e do núcleo Atipicidades, Tatiane Souza, 26, há um número maior de diagnósticos de crianças e adultos com autismo. Ela é mãe de Nairobi, 5, que é autista. A sensibilidade auditiva é um dos quadros comuns entre as pessoas autistas.

“Tem crianças que param de falar, entram em crise, têm surtos de agressividade. Para a gente (famílias), é um período muito difícil. Enquanto para algumas pessoas é festa, para os nossos filhos, é agressão”, pontua ela, que sugere alternativas como show de luzes sem barulho.

Sensibilidade

A sensibilidade auditiva também é o principal problema para os animais porque os bichos têm mais sensibilidade a ruídos de alta frequência do que humanos. Assim, esses estímulos podem causar medo e levar a respostas como taquicardia, pupilas dilatadas e pelos eriçados, de acordo com a médica veterinária Miriam Rebouças, doutora em Biotecnologia e professora da UniFTC.

“O animal, movido pelo medo, procura se afastar do estímulo estressor, tentando se esconder dentro ou embaixo de móveis ou espaços restritos. Pode tentar fugir pela janela, cavar buracos, tornar-se agressivo, apresentar salivação excessiva, respiração ofegante, diarreia temporária, urinar ou defecar involuntariamente. As aves podem até abandonar seu ninho”, enumera, citando, ainda, a possibilidade de acidentes durante tentativas de fuga.

A dica para esses períodos é encontrar locais em que os pets escutem o mínimo possível do barulho e onde possam se esconder. Outra possibilidade de usar roupas calmantes, que estão disponíveis no mercado.

“Para os animais já afetados, os tratamentos disponíveis para aliviar estes comportamentos indesejados causados pela fobia aos fogos são programas de modificação do comportamento através de exposição controlada e gradativa ao som, enriquecimento ambiental e medicamentos como ansiolíticos e feromônios”, acrescenta.

Total

Por tantas novas nuances, há quem tenha mudado totalmente os hábitos nos últimos anos. No caso da servidora pública Helena Barros, 28, as maiores lembranças da época de São João são da infância: o costume era ganhar algum dinheiro de presente das avós para comprar fogos, que costumavam ser vendidos na Avenida Noide Cerqueira, em Feira de Santana.

“Eu ia e escolhia os básicos: chuvinha, traque de massa, aquelas bombinhas que a gente deixava longe e estourava. Só coisinhas de criança”, explica ela, que, em seguida, viajava para passar o São João em Jequié, onde vive a família paterna.

Lá, faziam fogueira na frente de casa. “Tenho uma lembrança muito forte de quando minha avó paterna ainda estava viva, de estar soltando chuvinha e a faísca pegar em mim. Passou e queimou a roupa. Lembro exatamente da blusa que estava usando e queimou, mas não foi grave. Mas até gosto da queimadura, porque lembra da minha avó, que morreu alguns meses depois”, conta.

Atualmente, ela não gosta de fogos grandiosos e vê pouca gente em seu ciclo de amigos ainda com a tradição. A experiência como tutora de uma cachorrinha também a fez ver o cenário de forma diferente. No ano passado, chegou a voltar mais cedo de Jequié porque o pet chegava a tremer de medo do barulho.

“Hoje em dia, tenho outra percepção, porque ela fica tremendo. Tenho que dormir abraçada com ela. Não sei se tem saída para os fogos, porque tem cachorro em todo lugar. Acho que é um costume que tende a ir acabando, considerando que o mundo mudou e existem coisas que afetam os outros”, acrescenta.

Um acidente com fogos no passado também afastou o engenheiro Renato Polcri, 66, das celebrações com pirotecnia. Natural de São Paulo, ele veio para a Bahia há 20 anos, já querendo distância dos fogos. No dia em que o incidente aconteceu, ele estava em uma festa de família na casa de um primo.

Era tradição que, em algum momento, alguns soltavam fogos - Renato entre eles. “Não eram do tipo rojão, aqueles com barulho. Eram aqueles que soltavam luzes, até que um deles estourou na minha mão. Foi uma tragédia”, lembra. Sua reação imediata foi contar os dedos - ainda tinha os cinco, mas a mão estava toda queimada.

Por um mês, a cada dois dias, tinha que ir ao hospital fazer curativos. O problema é que as queimaduras cicatrizavam juntos, então não podia deixar de ir ao médico para abrir os dedos. Desde então, fez uma promessa a si mesmo que nunca mais voltaria a soltar fogos.

“Nem aqueles estalinhos eu solto. Também tenho gatinho em casa e fico incomodado com o barulho”, conta. Desde que passou a morar na Bahia, ele já foi algumas vezes à praia com a família durante o período junino para ver os fogos, por influência da esposa e da filha. “Mas eu realmente abandonei”, acrescenta.

Orientações

Para quem não abre mão dos fogos no São João, as orientações do Corpo de Bombeiros vão desde a atenção no momento da compra até o local onde a pessoa irá soltá-los. Na hora de comprar, é preciso conferir a classificação dos fogos. Crianças, por exemplo, só devem ter acesso aos do tipo A, que são aqueles sem nenhum tipo de estampido, a exemplo de traque de massa, ou com estampido com até 20g de pólvora.

Adultos devem evitar a bebida alcoólica, assim como escolher locais onde não há aglomerações públicas, como hospitais, postos de combustível ou locais com revenda de gás. Até a roupa precisa ser escolhida com cuidado, com atenção para peças que cubram os braços e as pernas.

“Se for soltar rojões, faça em áreas isoladas e dê preferência àquelas caixas ao invés de foguetes, sem pessoas por perto”, diz o coronel Lanusse Andrade.

Os pontos de revenda de fogos em Salvador estão sendo fiscalizados pelo Corpo de Bombeiros desde a última semana. Cada ponto de revenda deve contar com extintor, sinalização de emergência e pessoas treinadas em briga de incêndio.

O Projeto São João 2024 é uma realização do jornal Correio com apoio do Sicoob.