Pai Pequeno é o juiz do 'Tribunal do Crime' no complexo do Nordeste de Amaralina
'Ele é implacável. Boa parte das sentenças culmina na morte e são as piores possíveis', conta delegado
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Bruno Wendel
bruno.cardoso@redebahia.com.br
A sua toga - capa preta símbolo da magistratura - é sempre um fuzil carregado nas costas. O martelo - representação do sinal de alerta, respeito e ordem de silêncio no júri - é uma pistola cromada. As suas conclusões são tomadas com base nos relatos de comparsas que atuam como promotores. Assim, o traficante Pai Pequeno decide se o réu será absolvido ou condenado à morte no "Tribunal do Crime" do Boqueirão, localidade do complexo do Nordeste de Amaralina, controlado pela facção Comando da Paz (CP).
"Ele é implacável. Boa parte das sentenças culmina na morte e são as piores possíveis. São execuções com vários tiros e até decapitações. Muitas vezes manda filmar e lançar nas redes sociais, para servir de exemplo na comunidade e aos rivais. Quando não mata, mutila", declarou o delegado Deraldo Nascimento, titular da 28ª Delegacia (Nordeste de Amaralina), sobre Pai Pequeno.
O criminoso faz parte do segundo escalão da CP juntamente com Leandro P. Ambos recebem ordens de Val Bandeira, líder da facção no complexo do Nordeste – formado pelos bairros de Nordeste de Amaralina, Santa Cruz, Vale das Pedrinhas e Chapada do Rio Vermelho – solto neste mês, quando cumpria pena em Pernambuco por dirigir com documentos roubados. Quando foi preso na Bahia, Val Bandeira ordenou morte de rivais e de policiais.
Pai Pequeno chegou ao posto de juiz da CP por “merecimento”. “Ele sempre foi um homem leal a Val Bandeira, mesmo quando o líder estava preso”, contou Deraldo Damasceno.
Segundo o delegado, Pai Pequeno nunca foi preso. "Apesar disso, temos inúmeras denúncias contra ele, não só na delegacia como no Serviço de Inteligência da SSP (Secretaria da Segurança Pública). São ligações anônimas e mensagens, que chegam informando que ele é responsável pelas mortes no 'Tribunal do Crime' e que algumas sentenças foram ordenadas por Val Bandeira", pontuou o delegado. Os julgamentos ilegais no Boqueirão geralmente são realizados para avaliar condutas de moradores da comunidade e membros da facção. É Pai Pequeno quem decide quem vive e quem morre no julgamento feito num local chamado de "para" – expressão do verbo parar, usada pelos traficantes em referência ao local do 'corretivo', termo ligado a parar com o problema. Normalmente, a execução ocorre numa escadaria ou viela de difícil acesso no Boqueirão.
"Quem vai sabe que pode não voltar. As pessoas são tiradas de suas casas, a qualquer hora do dia, não importa se está com filhos ou na rua, chegando do trabalho. É o poder paralelo que faz o papel do Estado, e assim é respeitado”, contou ao CORREIO um policial militar que atua 40ª Companhia Independente da PM (CIPM/Nordeste de Amaralina), que preferiu não se identificar.
Regras Com base nas regras estabelecidas pelo CP na comunidade, no caso de brigas entre parentes e vizinhos, Pai Pequeno permite que réus argumentem o porquê de serem punidos. Dada a chance de defesa, cada um conta a sua versão na hora. Depois, Pai Pequeno escuta os promotores de seu tribunal que, neste caso, são os seus comparsas que trouxeram os réus.
Diante dos fatos, ele, na condição de juiz, pode aplicar uma advertência, ou seja, um aviso verbal de que não haverá próxima vez. Essa situação é normalmente aplicada quando há situações relacionadas a atos de violência contra a mulher.
"É muito comum casos de alcóolatras ou viciados em drogas que batem nas mulheres e também nos filhos, e isso acaba caindo na boca do tráfico. Os maridos são advertidos. Se persistirem, como acontece na maioria das vezes, eles caem na porrada. No caso de estupro, se o cara não morrer nas mãos da própria comunidade, que é respaldada para isso, o tribunal aplica a pena máxima do mesmo jeito, a morte. Mas isso acontece muito raramente, pois o estuprador sabe que acabará morto se descoberto", disse o policial militar.
Naqueles casos em que as vítimas são poupadas da morte, mas que tiveram como sentenças braços ou pernas quebrados ou mãos e pés baleados, elas buscam atendimentos médicos em hospitais distantes da comunidade, como no Ernesto Simões, em Pau Miúdo, e o Hospital Geral Roberto Santos, no Cabula. O indicado seria que essas pessoas buscassem atendimento no Hospital Geral do Estado (HGE), unidade de saúde pública mais proximidade com complexo do Nordeste.
A intenção é evitar uma investigação da agressão. Na maioria das vezes, as vítimas relatam que sofreram uma queda ou se machucaram em uma briga, sem jamais citar que foram julgadas num tribunal do tráfico. "Essas pessoas sabem que se o tráfico descobrir que elas falaram algo do tribunal, elas vão morrer quando retornarem. Ou que algum parente delas será assassinado como punição", disse o policial, que toma conhecimento dos fatos através de denúncias anônimas.
Mortes Além de estupros, outras duas infrações têm como pena a morte no "Tribunal do Crime". A primeira é o famoso desfalque financeiro dentro da facção, conhecido popularmente como 'quebrança'.
"Se o indivíduo pegar a droga para vender e na hora prestação de contas estiver faltando o dinheiro, a depender do valor, a morte é imediata. Isso acontece muito com os aviõezinhos, quando são promovidos a chefe de bocas. Esses caras acabam consumindo as drogas por conta própria e não têm como repor esse dinheiro. Tem casos que são perdoados, quando a diferença é pouca. Mas se a quebrança for muito alta, isso mostra que, além de viciado, o cara não serve para gerenciar, aí ele é morto", relatou o PM.
Os roubos e arrombamentos são proibidos no complexo. Esses crimes chamam a atenção da polícia e quem os comete não tem uma segunda chance. "Tanto que o índice de roupo e furto é quase zero. E não porque as pessoas não vão à delegacia por medo, porque em outros casos não vão mesmo, mas é porque raramente isso acontece. As mortes da região são por quebrança ou ação de rivais", contou o PM.
A rivalidade do CP é com o Bonde do Maluco (BDM), que vem tentando avançar no complexo, como já em outras áreas que eram do domínio do CP, como na Liberdade. Em alguns ataques, integrantes do BDM acabaram capturados e levados ao "tribunal", onde tiveram o tipo de morte decidida de imediato por Pai Pequeno ou Val Bandeira, caso a vítima fosse alguém do alto escalão do grupo rival. "Normalmente é por decapitação. Todo o processo é filmado e disparado nos grupos de Whatsapp para chegar à liderança do arquirrival", detalhou o PM.