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Entidades negras pedem retirada de estátua de traficante escravista do Santa Izabel


 

Santa Casa foi notificada por coletivo nacional, que solicita remoção de monumento a Joaquim Pereira Marinho de hospital em Salvador num prazo de cinco dias

  • Da Redação

Publicado em 17/06/2020 às 20:13:55
Atualizado em 21/04/2023 às 07:20:08
. Crédito: Foto: GA/Arquivo CORREIO

Estátua fica na entrada do Santa Izabel, no bairro do Nazaré (Foto: GA/Arquivo CORREIO) O Coletivo de Entidades Negras (CEN), organização nacional do movimento negro, notificou extraoficialmente a Santa Casa de Misericórdia da Bahia e o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) para que as duas instituições retirem das dependências do Hospital Santa Izabel, no bairro de Nazaré, em Salvador, a estátua em homenagem ao traficante de negros africanos escravizados Joaquim Pereira Marinho.

O CORREIO contou a história do personagem no último dia 10, logo após a repercussão mundial de imagens em Bristol, na Inglaterra, nas quais manifestantes derrubam uma estátua que homenageava um traficante de escravos durante protesto contra o racismo. O protesto levantou discussão sobre o que fazer com as estátuas de líderes escravistas. E em Salvador, cidade cujo porto recebeu centenas de milhares de escravos por mais de 300 anos, esse é um dos monumentos que homenageia um ex-traficante de pessoas.

Segundo o próprio CEN, a notificação propõe o prazo de cinco dias para a retirada da estátua e promete adotar "outras providências cabíveis" caso a solicitação não seja atendida. O coletivo, que está colhendo as assinaturas para subscrever um abaixo-assinado público com a mesma reivindicação, também pede que a estátua seja destruída.

A estátua em questão fica na entrada da unidade hospitalar e já está lá a mais de 100 anos. A história de Joaquim Pereira Marinho foi tratada em uma coluna escrita pelo jornalista Nelson Cadena em 2018, também no CORREIO, e voltou a circular no dia 8 após o também jornalista Levy Teles publicar uma “thread” no Twitter sobre o assunto.

O grupo de ativistas argumenta que "Joaquim Pereira Marinho atuou como traficante de negras e negros escravizados(as), inclusive em flagrante violação da Lei Feijó, de 7 de novembro de 1831, que proibia, formalmente, a importação de pessoas escravizadas ao território brasileiro". Afirmam ainda que o monumento "sugere a prática de crime de racismo, previsto no Art. 20, da Lei n 7.716/89".

"Precisamos considerar as lutas históricas da população negra brasileira que resultou na extinção formal da escravização no Brasil, mas sem deixar de frisar nunca que o processo de escravização por aqui deixou um legado de embargos ao exercício dos direitos democráticos pela população negra, o que estrutura as relações de poder em torno de um patriarcado branco e burguês. Além disso, Salvador é a cidade mais negra fora da África, com mais de 82% da sua população autodeclarada preta e parda. Ou seja, não há elementos que sustentem a manutenção dessa estátua de pé, ainda mais em um momento de intensos questionamentos internacionais sobre o racismo estrutural", afirma a coordenadora-geral do Coletivo de Entidades Negras (CEN), Iraildes Andrade.

A reportagem tentou contato com a assessoria da Santa Casa para comentar o assunto, mas ainda não houve posicionamento. 

Relembre a história Em sua coluna, Nelson Cadena destacou a fortuna conquistada pelo conde Pereira Marinho, como era conhecido. Ao morrer, em 1887, o Conde deixou uma fortuna avaliada em 8 mil contos de réis. No livro 1808, o historiador Laurentino Gomes fez uma conversão da moeda antiga para valores atuais. Com isso, é possível calcular que, em dinheiro de hoje, o patrimônio acumulado pelo traficante era de quase R$ 1 bilhão.

No seu testamento, declarou 227 imóveis de sua propriedade, somente em Salvador. Quando vivo, o conde doou parte de seu dinheiro para a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, incluindo uma ajuda no empréstimo que possibilitou a retomada das obras de construção do Hospital Santa Izabel. Por conta disso, em 1893, foi colocada uma estátua em sua homenagem na entrada principal do centro médico.

Além do empréstimo, ele deu o dinheiro para a construção de um prédio no Asilo dos Expostos, a Pupileira. Ao morrer, legou à Santa Casa 80 contos de réis para o hospital, 10 para o Asilo dos Alienados e 10 para o Asilo da Mendicidade - num total de 100 contos de réis, equivalentes a cerca de R$ 13 milhões.

Em seu testamento, o conde disse que morria em paz, sem arrependimentos. "Tenho a consciência tranquila de passar para a vida eterna sem nunca haver feito mal para o meu semelhante, e a convicção que a fortuna que deixo foi adquirida pelo meu trabalho perseverante. Com economia, honestidade, honradez em minhas transações comerciais, sem nunca ter deixado de fazer ao meu semelhante o bem que podia fazer", disse.

Em nota divulgada a pedido do CORREIO, no último dia 10 (leia na íntegra no final do texto), a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, responsável pelo Hospital Santa Izabel, diz ter conhecimento da trajetória do conde Pereira Marinho. A nota ressalta que a estátua foi lá instalada no dia da inauguração do centro médico, em 1893, e que ela representa "pontos da historicidade de uma época".  Foto: GA/Arquivo CORREIO "O conde Pereira Marinho passou a se dedicar a obras de caridade durante os últimos anos de sua vida. Ele foi responsável pela doação que possibilitou a retomada da construção do Hospital Santa Izabel após 40 anos de obras interrompidas por falta de recursos financeiros. Por essa razão, em 1893, a estátua foi erguida", diz.

Conde de Pereira Marinho Nascido em Portugal, no ano de 1816, Joaquim aportou em Salvador aos 13 anos. Órfão, ele começou a trabalhar como caixeiro e marítimo. Ainda adolescente resolveu se especializar no comércio de escravos e, aos 17 anos, trazia homens e mulheres africanos de países como Nigéria e Angola para o Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, principalmente. A Bahia era uma rota secundária, apesar de morar por aqui.

Trabalhou durante 30 anos no ramo e, em seu auge, chegou a ter 13 embarcações. A última leva de escravos foi transportada por ele em 1850, quando a escuna “Catota” desembarcou 450 escravos no Rio de Janeiro. Naquele ano, o tráfico negreiro foi abolido pela Lei Eusébio de Queiroz. 

Mesmo antes da abolição, já havia grande pressão dos ingleses pelo fim da escravidão no Brasil e embarcações de guerra britânico costumavam afundar os navios negreiros no Oceano Atlântico. Para driblar essa dificuldade, Pereira Marinho adotou a estratégia de fazer passar os negros transportados por funcionários do navio.

Após a proibição, tentou ao máximo desvencilhar sua imagem do comércio de seres humanos e para isso contou com o apoio da nobreza soteropolitana, com quem tinha boas relações, como conta a historiadora Cristiana Ferreira Lyrio Ximenes, que escreveu uma dissertação de mestrado em História sobre o tema, na Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 1999.

As vultuosas doações faziam parte dessa estratégia para limpar a imagem, afirma a historiadora. Na época, acreditava-se que para ser "um rico de verdade" era necessário ajudar os pobres para, assim, encontrar o caminho dos céus. E esse era, de fato, o grande objetivo do Conde com as doações: parecer um homem justo e honrado. 

Na sua morte, em em 26 de abril de 1887, não havia sequer uma linha com referência ao seu passado como traficante. Seu corpo foi velado na Igreja da Misericórdia e sepultado em um mausoléu do Campo Santo, perante a presença de mais de 2 mil pessoas; no seu enterro, relatam jornais da época, viam-se as bandeiras, estandartes e insígnias de praticamente todas as confrarias e irmandades da Bahia.

Todos os presentes exaltavam as benfeitorias e doações do conde para a Bahia. 

Outras atividades comerciais Após a abolição, direcionou seus capitais para o sistema financeiro. Fundou o Banco da Bahia e anos depois tornou-se um dos maiores acionistas do Banco Mercantil, também adquirindo lotes de ações de outros bancos.  

Como banqueiro, tinha o costume de realizar empréstimos a juros altos. Como quando o estado de Alagoas tomou emprestado 150 contos de réis, a juros de 8% ao ano, o dobro do cobrado no mercado e se encrencou de tal maneira que em 1886 cortou 20% da folha salarial dos funcionários públicos para acelerar o pagamento da dívida que se tornara insustentável, quitada em definitivo dois anos depois. 

Outra prática dele era a de comprar heranças por um valor abaixo de mercado. Com isso, ele poderia executar as hipotecas e lucrar em cima dos parentes dos falecidos. Esse modelo de negócios rendeu a ele o apelido de "explorador de orfãs e viúvas".

Investiu em imóveis; fez negócios com a venda de carne oriunda do Rio Grande do Sul, uma das atividades mais rendosas, na época; comprou a fábrica de tabacos Boa Vista, em Portugal, provavelmente abastecida com matéria-prima do Recôncavo baiano.

Como empreiteiro, construiu e explorou a estrada de ferro do Jequitinhonha, entre Bahia e Minas, através de parceria público-privada com os dois estados e ainda a estrada de ferro de Juazeiro. 

Com a sua firma Joaquim Pereira Marinho & Cia, constituída em 1851, atuou na compra e venda de madeira e investiu também em trapiches. Foi presidente e o maior acionista da Companhia Baiana de Navegação.   Fachada do Santa Izabel em 1902, já com a estátua (Foto: Dugauy-Troin) Traficante baiano homenageado na África Apesar de sua relevância, o conde de Pereira Marinho não chega perto de ser o maior traficante de escravos do Brasil. Esse posto é ocupado por Francisco Félix de Souza, o Chachá. 

Nascido em Salvador, Chachá se mudou no final do século XVIII para a cidade de Ouidah, em Benim. Por lá, movimentou aquele que foi o maior porto de escravos do mundo, transportando mais de 1 milhão de africanos, em sua maioria Iorubás, para as Américas. 

200 anos depois, Chachá tem diversas estátuas espalhadas pela cidade africana e seus descendentes formam uma das famílias mais importantes do país, os “De Souza”. E, apesar de seu passado, hoje ele é considerado o patrono de Ouidah.

Tira ou não tira? O historiador Laurentino Gomes se posicionou contra a derrubada de monumentos, argumentando que são parte do patrimônio histórico. Laurentino se referia à estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, que percorria o interior do Brasil para sequestrar índios e os escravizar.

“Estátuas, prédios, palácios e outros monumentos são parte do patrimônio histórico. Devem ser preservados como objetos de estudo e reflexão. Com dez metros de altura e vinte toneladas de peso, a atual estátua de Borba Gato no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, é feia que dói. Ainda assim, deve lá ficar. Mas ao passar por ela, as pessoas devem saber quem foi o personagem e como foi parar no panteão dos heróis nacionais”, argumentou Laurentino.

Professor de História da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e Doutorando pela Universidade de Hull, na Inglaterra, Carlos Silva Jr acompanhou de perto as discussões que levaram ao que aconteceu em Bristol. O historiador conta que os movimentos sociais da causa negra estão há pelo menos uns 20 anos discutindo sobre o assunto no país, questionando o personagem da estátua, Edward Colston, e sua representatividade naquele local. 

Edward Colston construiu uma reputação como benfeitor até que os movimentos sociais começaram a apontar o seu passado escravizador. A situação pautou a Bahia e, para o historiador, a estátua do Conde Pereira Marinho também deveria ser retirada da frente do hospital. "Acaba sendo uma afronta à população negra", defende.

Carlos Silva Jr. explica que o conde não era um traficante de menor porte. Durante o período da escravidão, ele foi responsável por pelo menos 33 viagens de navios negreiros da costa africana para a Bahia, segundo maior porto negreiro do Brasil na época. Nestas jornadas, o Conde pode ter trazido à força, em média, mais de 11,5 mil pessoas para serem escravizadas no estado, fora as viagens para outros portos."A estátua ignora essa passagem da vida dele, de que foi o dinheiro do tráfico que construiu sua fortuna. Quando se ignora isso, constrói uma memória que lança sombra sobre essa parte da vida dele que precisa ser discutida. Sou a favor da retirada. Nos falta um museu da escravidão, é lá onde ela deveria ser colocada porque você contextualiza o personagem, inclusive para compreender que ele construiu para si uma reputação positiva porque sofria críticas de adversários por ser agiota, por ter participado do comércio infame de seres humanos. O cara tinha que salvar a alma, ele não queria ir para o além carregando essa culpa. O investimento em caridade era uma forma de comprar passagem para o além", comenta o professor.Cadena explica que a estátua pertence a uma instituição privada e que cabe a ela decidir sobre o destino do monumento, diferente das obras como Monumento às Bandeiras e a estátua de Borba Gato, em São Paulo, que são públicas e também estão sendo colocadas em discussão.

Nota da Santa Casa:A Santa Casa de Misericórdia da Bahia informa que, como instituição secular, datada de 1549, esteve inserida nos mais diversos contextos da sociedade baiana ao longo do tempo. Os fatos que marcaram a biografia do Conde Pereira Marinho são de conhecimento da instituição e são apresentados a todos que buscam conhecer a história dos que fizeram parte da Santa Casa como eles são: pontos da historicidade de uma época.

A estátua localizada em frente ao prédio do Hospital Santa Izabel foi apresentada no mesmo dia em que o complexo hospitalar foi fundado, no ano de 1893, como consta na ata de inauguração do prédio. Este documento está disponível para consulta e compõe o acervo do Centro de Memória Jorge Calmon, arquivo histórico que reúne registros do século XVII até os dias atuais, visitado por diversos pesquisadores nacionais e internacionais. 

O Conde Pereira Marinho passou a se dedicar a obras de caridade durante os últimos anos de sua vida. Ele foi responsável pela doação que possibilitou a retomada da construção do Hospital Santa Izabel após 40 anos de obras interrompidas por falta de recursos financeiros. Por essa razão, em 1893, a estátua foi erguida.

A estátua, que possui caráter de patrimônio histórico e obra artística, compõe o conjunto arquitetônico do Hospital Santa Izabel, reconhecido e tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia (IPAC).