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Dois bebês são abandonados em Salvador em menos de 48 horas


 

Sophia foi encontrada no sábado em uma caixa de papelão com uma carta dos pais; Miguel foi encontrado nesta segunda em um saco plástico em meio ao lixo

  • Carolina Cerqueira

Publicado em 27/04/2021 às 05:45:00
Atualizado em 08/05/2023 às 11:07:06
. Crédito: Foto: Nara Gentil/CORREIO

Em um intervalo de 48 horas, dois recém-nascidos foram abandonados em Salvador. Primeiro, foi a vez da pequena Sophia, encontrada em uma caixa por um catador de materiais recicláveis, no último sábado (24), em Paripe. Nesta segunda (26), o segundo bebê encontrado foi Miguel, que tinha poucas horas de nascido e estava enrolado em um pano de chão e dentro de um saco plástico de mercado em meio ao lixo na Capelinha de São Caetano. De acordo com o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), os casos se tornaram mais frequentes durante a pandemia, acontecendo, em média, a cada três meses.

Quem encontrou o recém-nascido abandonado nesta segunda (26) foi o encanador Manoel Arcanjo, de 58 anos, que está desempregado. Ele contou que todos os dias faz caminhada e que vai sempre pelo mesmo lado da calçada. Na segunda, por ironia do destino, acabou seguindo pelo lado oposto do habitual. Era por volta das 5h30 quando o choro do pequeno Miguel chamou a atenção de Manoel, que percebeu que se tratava de um bebê abandonado em meio ao lixo, na Rua Nova da Igreja, uma das entradas da Rua Padre Antônio Vieira. 

“Eu fiquei preocupado em chamar algumas pessoas para testemunharem, mas muita gente não ligou. Depois juntou um pessoal, mas falavam para eu não mexer, não fazer nada, para esperar a polícia chegar. Mas eu resolvi abrir o saco para a criança poder respirar”, disse Manoel. Ele contou também que o bebê parecia ter nascido naquela madrugada e não estava vestido, apenas enrolado em um pano de chão, deitado de bruços no asfalto. “Os pés ficaram para fora do saco e o joelho chegou a ferir um pouco pelo contato com o chão”, completou.  

Na hora, só veio na cabeça do encanador a lembrança de uma imagem forte que viu na TV em 2017 e que o marcou: a cena do bebê que foi vítima do naufrágio da lancha Cavalo Marinho sendo socorrido por um funcionário do Samu. “O rapaz saiu correndo para tentar salvar aquela criança e a cena foi bem marcante para mim. Na hora, eu lembrei daquilo e falei para mim mesmo que não ia deixar a criança morrer. Era um bebê chorando em um saco de lixo, eu não podia ficar esperando”, recordou.

Manoel pediu ajuda aos carros que passavam, mas nenhum deles parou para prestar socorro. Ele então enrolou a criança em um cobertor e foi caminhando até a delegacia mais próxima. Primeiro, bateu na porta da 4ª delegacia, onde foi orientado a levar a criança para um hospital. No caminho, encontrou uma viatura da Rondesp, que fez o transporte de Manoel e da criança até uma unidade de saúde. “Lá, me disseram que a criança estava bem e que eu poderia ligar depois para saber dela. Eu quero fazer uma visita, poder ver o bebê de novo”, disse. 

O recém-nascido foi levado para a Maternidade José Maria de Magalhães Netto. De acordo com a Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab), o bebê, que pesa 2,890kg, passa bem e foi batizado de Miguel pela equipe do hospital.

A pequena Sophia

O outro caso de abandono em Salvador foi o de Sophia, que nasceu no dia 21 de abril e foi deixada na manhã de sábado (23) numa caixa de papelão em um canteiro nas margens da Avenida Suburbana, em frente a um estabelecimento comercial de transportes coletivos. Ela estava vestida e em meio a um cobertor e uma carta que teria sido escrita pelos pais. No papel, a data de nascimento, o nome da bebê e um pedido de desculpas pelo abandono: "Me perdoe por isso, mas infelizmente não tenho condições financeiras e psicológicas de te dar uma vida boa". 

Os pais disseram que, por muitas vezes, não têm o que comer e pediram que alguém cuidasse da criança. "Cuidem bem da minha pequena Sophia, que ela cresça nos caminhos do Senhor. Beijos do seu pai e de sua mãe. Saiba que nós te amamos", dizia a carta. 

A recém-nascida foi encontrada por um catador de materiais recicláveis. Ele entregou o bebê a um funcionário da empresa de transporte coletivo, identificado como Morialverson, que então chamou a polícia. De acordo com a Polícia Militar, agentes da 19ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM) foram acionados e entraram em contato com o Samu. 

A guarnição registrou a ocorrência na 5ª Delegacia Territorial e a bebê foi encaminhada para a Maternidade Tsylla Balbino. De acordo com a Sesab, a pequena Sophia pesa 3.275 Kg e passa bem. O tenente coronel Everaldo Maciel, comandante da 19ª CIPM, relatou que Sophia foi bem atendida ao chegar à maternidade. “Uma equipe nossa foi fazer o boletim de ocorrência e outra foi para a maternidade. Lá a criança foi muito bem acolhida, examinada e alimentada. Ela estava com um processo inflamatório na região do umbigo, foi medicada e está bem”, afirmou.

O tenente coronel também informou que a policial que levou a criança até a maternidade está em contato com colegas para organizar um enxoval para Sophia e que os pais da criança serão procurados pela polícia. “Cabe agora à Polícia Civil, o Ministério Público ou até ao Conselho Tutelar a busca pelos pais da criança, já que não deixa de ter ocorrido o crime de abandono de incapaz, mesmo que com uma série de atenuantes. O ideal é que se identifique os pais da criança e que se crie condições de que ela ainda seja criada por eles, já que ficou claro que há uma relação afetiva”, finalizou.

Os dois bebês abandonados estão em observação e, ao receberem alta, serão encaminhados para o Juizado de Menores. 

Abandono de bebês

De acordo com Tatiane Paixão, presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), desde o segundo semestre de 2020, os casos de abandono de bebês aumentaram. “A gente só registrava esse tipo de caso a cada três ou quatro anos mas, com a pandemia, a partir do segundo semestre de 2020, infelizmente isso começou a se tornar mais frequente, acontecendo a cada três meses. Esses dois casos de agora aconteceram em sequência e preocupam porque o abandono não pode se tornar uma rotina”, disse.

De acordo com a presidente, o CMDCA está adotando medidas educativas para alertar a população a como fazer a entrega da criança de forma segura. “Entregar para a adoção não é crime, mas o abandono é, porque há um risco para a criança. Com isso, está previsto crime com punição que pode chegar à detenção de seis meses a três anos, agravada em um terço por se tratar de recém-nascido”, afirma Tatiane. 

Ela explica como deve acontecer o procedimento legal: “A mãe da criança, antes ou depois do nascimento, pode manifestar a vontade de entregar o bebê quando ainda estiver na maternidade. Também é possível buscar ajuda no Conselho Tutelar ou na Vara da Infância e Juventude”, ressalta. 

Tatiane afirma que os dois bebês, Sophia e Miguel, serão direcionados a uma instituição de acolhimento que a Vara da Infância e Juventude, por meio de um juiz, determinar. A partir disso, será estabelecido um prazo de 30 dias para que alguém da família manifeste interesse em ficar com a criança. “Não havendo manifestação, o bebê será cadastrado no Sistema Nacional de Adoção (SNA) e ficará disponível para a primeira família habilitada da lista, conforme os critérios de preparação e de perfil desejado”, explica. 

Adoção

Segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), a pandemia, além de interferir nos abandonos, também impactou nas adoções. Em 2020, na Bahia, foi registrada uma queda nos números de quase 70% em relação a 2019. No ano passado, apenas 18 crianças baianas foram adotadas, contra 58, em 2019. 

No Brasil, até o final de 2020, 5 mil crianças estavam disponíveis para serem adotadas e 35 mil desejavam adotar. Os números parecem positivos, mas não é bem assim. A demora no processo de adoção é grande e se dá, muitas vezes, pelo perfil restrito desejado pela família adotante. Segundo dados do SNA, a preferência dos cerca de 1.300 pretendentes que existem na Bahia é por crianças de até dois anos de idade, do sexo feminino, sem irmãos, sem deficiência física ou intelectual e sem doença infectocontagiosa. Com isso, as crianças acabam passando muito mais tempo nas casas de acolhimento do que deveriam. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o período máximo deveria ser de um ano e meio, mas muitas passam até dez ou mais anos. 

Para adotar, o pretendente precisa ter 18 anos, respeitada a diferença de 16 anos entre a pessoa que deseja adotar e a criança ou adolescente a ser adotado. Não há restrição quanto ao estado civil, ou seja, se é casado, viúvo, vive em união estável, solteiro ou divorciado. Casais homoafetivos não estão previstos na legislação pertinente, mas há jurisprudência (decisões de juízes) em favor de pedidos, nesta situação. O interessado deve procurar a Vara de Infância e da Juventude do município/região de residência, onde deverá apresentar os documentos listados abaixo, em originais e cópias:Documento de Identidade; CPF (Cadastro de Pessoa Física); Certidão de casamento ou de nascimento, se solteiro, ambos de expedição recente; Comprovante de residência (conta de água, luz, telefone etc); Comprovante de rendimentos ou documento comprobatório equivalente; Atestado ou declaração médica de sanidade física e mental; Fotografia do(s) pretendente(s); Atestado de antecedentes criminais EtapasProcurar a Vara da Infância e Juventude da sua cidade/região Dar entrada com uma petição para dar início ao processo. Sendo apto, a pessoa será cadastrada e deve aguardar chamamento da vara para conhecer a criança, e, se for o caso, dar início à ação de adoção Fazer um curso de preparação psicossocial e jurídica para a adoção A partir do laudo da equipe técnica e do parecer emitido pelo MP, o juiz dará a sentença. Com o pedido acolhido, o nome será inserido no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) Na fila, é preciso aguardar para encontrar uma criança com o perfil compatível. Se houver interesse, ambos serão avisados. A criança será entrevistada após o encontro para dizer se quer ou não continuar com o processo O estágio de convivência é iniciado, para que a criança e o adotante se aproximem. Se o relacionamento correr bem, a criança é liberada e o pretendente ajuizará a adoção. O juiz profere a sentença e determina a lavratura do novo registro de nascimento.  *Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro