Conheça Moa do Katendê, artista morto durante discussão sobre política
Caetano, Lazzo e outros artistas destacam sua importância para a cultura da Bahia
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Thais Borges
thais.borges@redeabahia.com.br
Romualdo Rosário da Costa falava pouco. Entre os amigos, há quem diga que, para que ele abrisse a boca, era um trabalho imenso. Mas quando se transformou no artista e mestre de capoeira Moa do Katendê, no fim da década de 1970, Romualdo falou muito. Através de suas muitas artes – a música, a dança, a capoeira –, Moa disse muito à Bahia e ao mundo.
Aliás, ‘se transformou’, não. É difícil encontrar um relato de alguém que diga como Moa despertou para a arte; os amigos contam que ela sempre esteve com ele. Na madrugada desta segunda-feira (8), aos 63 anos, o homem que falava tão pouco deixou mais uma mensagem – à Bahia, ao Brasil, ao mundo. Moa do Katendê foi assassinado brutalmente após uma discussão política.
A notícia de sua morte veio logo nas primeiras horas da manhã desta segunda. Abalou parentes, amigos, artistas, capoeiristas, pessoas ligadas ao circuito cultural em Salvador. O artista, autor da canção Badauê, eternizada pelo Ilê Ayê, foi morto com 12 facadas, quando bebia com um irmão e um primo, no Bar do João, em frente ao Dique do Tororó, no Engenho Velho de Brotas, pouco depois da meia-noite desta segunda.
De acordo com o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), o autor do crime foi o barbeiro Paulo Sérgio Ferreira de Santana, 36, que, segundo testemunhas, chegou ao bar defendendo ideias de Jair Bolsonaro (PSL), candidato à Presidência da República.
Ele ouviu críticas de Moa e, depois que a discussão acabou, foi até em casa, buscou uma faca e voltou para atacar o artista. O crime aconteceu apenas algumas horas após a confirmação de que Bolsonaro e Fernando Haddad (PT) se enfrentariam no segundo turno das eleições presidenciais no país.
O cantor Tonho Matéria, amigo de mais de 30 anos, ficou surpreso com as circunstâncias. A imagem de Moa que conheceu era de um homem calado, que não tinha hábito de discutir.“Estava vendo uma reportagem em que o rapaz falou que chamou ele de negro. Moa jamais ia criar um ato racista. Isso não existe. Mestre Moa era um exemplo de dignidade”, dizia, incrédulo, por telefone, ao CORREIO.Tranquilo no combate Até na capoeira, Moa era diferente. Costumava ensinar de forma tranquila. O cantor Lazzo Matumbi conta que os amigos até se divertiam com o quanto ele era calmo enquanto praticava o esporte. “Ele dizia: ‘eu passo a minha paz de espírito exatamente para mostrar como executar os golpes’. E a gente vê que ele não teve nem tempo de se defender com o que ele conhecia”.
Moa sempre viveu no Dique Pequeno, localidade onde o crime aconteceu. Ali, conheceu Mestre Beto Gogó, que o iniciou na capoeira. Como muitos meninos que cresceram na localidade, foi influenciado pelos ensinamentos do mestre. Em pouco tempo, se tornou uma referência de continuidade no trabalho de Gogó. Moa do Katendê foi um dos mentores dos afoxés da Bahia (Foto: Reprodução) O ‘Katendê’ do nome veio depois da capoeira. Era um apelido herdado de um grupo folclórico de que fez parte ainda na década de 1970. O grupo, na época, era formado por estudantes do antigo Colégio Iceia, no Barbalho, e participava de disputas intercolegiais. Um dos irmãos de Moa, assim como Lazzo, também fazia parte. Eram alunos da professora Lúcia de Sandes, que dava aulas sobre folclore.
“Moa tinha uma academia de capoeira na época, isso no começo da carreira de todos nós. Eu tocava e cantava no grupo, enquanto Moa dançava e jogava capoeira. Era um grupo folclórico que expressava cultura”, lembra Lazzo.
Para o gerente de equipamentos culturais da Fundação Gregório de Mattos, Chico Assis, Moa do Katendê foi um dos maiores difusores da capoeira e dos afoxés para o mundo. É difícil até estimar o que o artista representou para a música baiana e para o Carnaval.
Na mesma década de 1970, Moa começou a compor para blocos afro. Em pouco tempo, se consagrou vencedor de diversos festivais que aconteciam nos blocos afro.
Foi assim que compôs, para o Ilê Ayê, a música que fez com que ficasse ainda mais conhecido: Badauê. Na canção, ele pede que o interlocutor não esqueça da beleza do Ilê. “De longe se nota a sua riqueza, esmagando sua tristeza. E o povo, com certeza, vai aplaudir”, diz a música.
Fundador e presidente do Ilê, Antônio Carlos dos Santos, o Vovô, lembra bem de quando Moa chegou ao primeiro bloco afro da Bahia. Na época, ele não veio sozinho. Veio acompanhado de outros compositores do Engenho Velho de Brotas, como Jorjão Bafafé e Vicente de Paula. Para Vovô, Badauê se tornou um dos clássicos do Ilê.“Essa foi uma lacuna muito grande para os carnavalescos da Bahia, para os capoeiristas, para o pessoal da cultura. Moa foi o grande mentor do renascimento dos afoxés na Bahia”, diz Vovô do Ilê, adiantando o que aconteceria, em seguida, na vida do artista.Após a criação de Badauê, a música, veio Badauê, o afoxé.
Mentor dos afoxés O afoxé foi fundado em 1978, na mesma época em que Moa faz parte de um grupo cultural chamado Jovens Loucos, fundado também no Engenho Velho de Brotas. Foi em 1979, no Carnaval, que o Badauê saiu no Carnaval de Salvador pela primeira vez, como conta Chico Assis, autor de uma dissertação de mestrado sobre a memória do afoxé, defendida na Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 2017.
Desde 1979, foi como se o Badauê desse novo significado aos afoxés. “O Badauê foi muito importante, porque era um momento em que os afoxés estavam enfraquecidos e veio esse afoxé contemporâneo, que trazia uma miscigenação, uma tradição e uma contemporaneidade. Isso fez com que os afoxés voltassem à cena com muita força, junto com o ressurgimento dos Filhos de Gandhy nessa época”, explicou Chico.
O Badauê logo começou a chamar atenção de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Moraes Moreira, que passaram a frequentar os ensaios do afoxé.“Começou um movimento de certificação do ijexá, que acredito que tenha sido esse movimento que deu origem ao que, anos depois, passou a se chamar de axé music”. Caetano, inclusive, refere-se ao afoxé diferentes canções do álbum Cinema Transcendental: na própria Badauê ("Misteriosamente o Badauê surgiu / Sua expressão cultural o povo aplaudiu" - ouça abaixo) e em Beleza Pura ("Moço lindo do Badauê, beleza pura").
Em seu perfil no Instagram, Caetano escreveu que deve a Moa a revelação de ouvir pessoas na rua cantando esses versos.
“Moa era meu amigo e foi uma das figuras centrais na história do crescimento dos blocos afro de Salvador. Estou de luto por ele. (...) Fundador do Badauê, compositor, mestre de capoeira, Moa vive na história real da cidade e deste país”, publicou.
Alguns anos atrás, Moa quis trazer o Badauê de volta. Queria revitalizá-lo. Procurou Lazzo, pediu a opinião. Só que o cantor ponderou: naquela época, no fim dos anos 1970, o afoxé era algo novo, revolucionário. Ficou marcado na mente das pessoas justamente por isso.
“Eu falei: ‘ô, bicho, aquele Badauê que você criou já foi. Era uma marca que ficou no coração das pessoas. Se você recriar o Badauê, não vai ser a mesma coisa”, defendeu Lazzo, na ocasião.
Para o cantor, o Badauê era um projeto de resgate da autoestima da comunidade negra. Tinha propósito social e político.“Mas, nos dias de hoje, todas as coisas que a gente combatia que estão vindo à tona de novo, a ponto de desencadear um caso como esse. Nos deixa muito tristes porque mostra o quanto a nossa sociedade não avançou”, afirmou Lazzo. Andarilho Em casa, Moa também falava através da música. Aos cinco filhos, ensinou a paixão pela cultura e pelas artes. A filha Jasse Mahi nem soube dizer quando, exatamente, ele começou a vocação.
Para ela, ele sempre foi músico. Os dois costumavam cantar juntos em casa. Elis Regina, Tim Maia, músicas de capoeira, músicas do próprio Moa. Um começava, o outro seguia.
Jasse diz que nunca viu o pai triste. Nunca o viu chorar – só de alegria. Com ele, aprendeu a ter força. A não desistir dos objetivos, mas sempre com humildade. “Ele me ensinava muito a respeitar o direito dos outros, que o meu direito começava quando o do próximo terminava”, lembra.
Nesta terça (9), Moa viajaria para São Paulo. No fim de semana, participaria de um evento com o afoxé que ajudou a criar na cidade, o Amigos do Katendê. Ia promover oficinas de dança e música no Tambores de Zé Benedito, no bairro de Pinheiros.
Nos últimos anos, como explica Chico Assis, Moa se transformara em um andarilho – um que levava, na mala, a cultura baiana. “Hoje, tem esse afoxé que ele fundou em São Paulo, tem ramificações de afoxés que ele ajudou a construir no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais, em Recife (PE). Com a capoeira, ele circulava por diversos países da Europa. Hoje, a gente é que deve uma grande salva de palmas a esse grande artista”.
Entre os amigos e parentes, uma fala comum, repetida por diversas vezes: a mensagem de Moa era da tranquilidade, do respeito e da tolerância. E, para eles, isso não vai mudar.