Conheça a sergipana que driblou preconceitos e adotou 54 crianças
Bahia tem 1.413 interessados em adotar e 130 procurando um lar, mas exigências fazem fila ficar parada
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Tailane Muniz
tailane.muniz@correio24horas.com.br
Mesmo com tanto avanço, não há ciência que garanta a uma gestante o direito de escolher o tom da pele, a altura ou os traços físicos do bebê que ela carrega no ventre. À mulher, é garantida, no entanto, a oportunidade de amar o ser que, ao nascer, será completamente dependente de seus cuidados. Já no caso da mãe adotiva, existe a possibilidade de viver a maternidade sem precisar sequer sofrer com os enjoos da gestação.
Em ambos os casos, uma coisa é certa: a chance de viver um amor incondicional. E, se dizem que mãe de verdade é aquela que ama sua cria, seja lá como for, é difícil compreender os dados do Tribunal de Justiça do Estado (TJ-BA), que apontam que existem 130 crianças e adolescentes nos abrigos da Bahia, em busca de um lar, e pelo menos 1.413 pessoas querendo um filho adotivo. A matemática não bate.
A leitura do cenário de uma conta que não fecha é traduzida pela funcionária pública federal aposentada Etani Souza Santos, 67 anos, de maneira simples: os candidatos a pais e mães, na Bahia, “escolhem o filho perfeito”. Sergipana, ela segue na contramão da maioria e adotou 54 filhos, de todas as idades, sexos e etnias. O caçula tem 13 e o mais velho tem 27. Nenhum deles foi escolhido "apenas foram fechando".
Etani foi homenageada nesta quinta-feira (23), durante o Encontro de Corações, evento realizado pelo TJ-BA em comemoração ao Dia Nacional da Adoção, no próximo sábado (25). Segundo ela, muitas pessoas deixam de realizar o sonho de ter um filho por preconceito.
Na Bahia - onde cada vez mais pessoas se autodeclaram pretas -, o perfil que interessa à maioria do público adotante é o seguinte: menina, recém-nascida ou com menos de um ano, e branca. Perfil bem diferente dos filhos do coração de Etani que são, em sua maioria, meninos negros.“Os meus filhos chegaram, não fui à procura. Do jeito que veio, cuidei, amei e amo. Quem escolhe perde tempo, oportunidade de amar e ser amado. Nós somos o que somos, não há garantia de quem será esse recém-nascido, ele vai ser o que tiver de ser”, defende, acrescentando que, na vida, cada ser humano está de passagem e apenas “burilando”, ou seja, se modelando. Funcionária pública sergipana foi homenageada pelo TJ-BA (Foto:Tailane Muniz/CORREIO) O que preferem os baianos? Segundo os números do TJ-BA, que consideram o número total de pretendentes à adoção (1.413), enquanto 3,18% (cerca de 45 baianos) somente aceitam adotar crianças negras, 9,27% (131) dos pais e mães somente adotariam filhos brancos. O número de candidatos que "aceitariam uma criança negra" também é inferior ao que "criaria um filho branco": 881 (62,35%) para 1.103 (78,06%), respectivamente.
Quando o assunto é a idade, os números são menos específicos, mas indicam, ainda assim, uma preferência por crianças de até 1 ano. Enquanto um único candidato aceitaria adotar um adolescente de 17 anos, os que adotariam crianças de até um ano somam 306 (21,66%). Outros 3,33% (47) adotaria uma criança de com até 7 anos.
Etani Souza vai na contramão da preferência dos baianos em mais de um exemplo. O primeiro filho que ela adotou foi há 27 anos, em 1991, quando foi fazer comprar em um mercado na cidade onde mora, São Cristóvão, na região metropolitana de Aracaju. Já os mais recentes chegaram juntos: foram sete irmãos, com idades entre 13 e 18 anos. Pretos, pardos e brancos, frisa ela.“Tenho filho de tudo o que é jeito, todos tiveram o mesmo amor, a mesma vontade e a mesma criação, porque, claro, nem tudo são flores”, brinca.Louca dos Roberts Etani sempre foi “a louca” de São Cristóvão. Criar tanta gente, como filho de verdade, lhe rendeu, além de muito amor, algumas dívidas. “Sempre sobrava conta e faltava dinheiro. O salário de meu marido, junto com o meu, não bastava. Mas eu me virava, fazia artesanato e outras coisas, mas nada faltava”, orgulha-se.
Atualmente, só 15 dos filhos moram com ela e o marido, o policial civil José Roberto de Souza, com quem é casada há mais de 30 anos. Aliás, foi em homenagem ao parceiro de vida que batizou todas as suas crias de Roberto e Roberta. Para sustentar a Família Robert, como são conhecidos em São Cristóvão, Etani vendeu pizza, torta e outras coisas.
A despesa é alta. Por dia, a família consome 50 pães, 5 kg de carne e alguns litros de leite, mas isso nunca gerou arrependimento para a funcionária pública. “Todo mundo me chama de louca, diz que quero tirar onda de santa, mas sou feliz do meu jeito e, se pudesse, faria muito mais. Se eu não fosse mãe de cada um deles, eu não seria feliz como sou”, garante ela, que tem sete irmãos.
“Eu tenho essa herança familiar. Meus pais cuidavam de leprosos, cancerosos, mendigos. Aquilo me inspirou e espero que os meus filhos, todos eles, se inspirem também. Que trabalhem como trabalhei, que façam o que tiverem de fazer, mas que seja para o bem”.
Além do trabalho duro, segundo ela, a família sempre contou com a ajuda de pessoas diversas. Desde Luciano Huck, com quem teve contato há 11 anos, quando participou do quadro Lata Velha, até anônimos. “Uma vez, chegou uma doação enorme de vitamina na porta do sítio. O rapaz que foi levar a encomenda não quis me dizer quem mandou. Insisti e ele disse que quem mandou foi Jesus”, lembra ela, que é religiosa. O médico Luiz Soares tem três filhos adotivos (Foto: Tailane Muniz/CORREIO) O processo Etani, que também já adotou gêmeos e ajudou a criar 38 netos - adotivos e biológicos - e sete bisnetos, diz que se uma pessoa escolhe como vai ser o filho, ela não quer ser mãe de verdade. A mesma opinião é compartilhada pelo corregedor das Comarcas do Interior, desembargador Salomão Rosedá, que explicou que o processo de adoção é simples e dura menos tempo que os nove meses de uma gestação.
A demora no processo, ao qual as pessoas se referem, segundo ele, na verdade está diretamente ligada ao perfil que elas costumam escolher. O desembargador, que por muitos anos chefiou a Vara da Infância e Juventude, em Salvador, afirmou que não há a necessidade de um advogado para iniciar o processo, que, garante, “não tem burocracias”.
Há 25 anos, quando adotou o primeiro filho, o médico soteropolitano Luiz Soares, 56, tinha várias inseguranças. "Eu tive um irmão adotivo e isso era muito comum na minha família, tanto que eu sempre soube que teria um filho adotivo. Só que eu não sabia como e quando o processo se daria. Meu primeiro filho veio para mim com 10 meses, os outros, com 8 e 3 anos", conta ele, que adotou três filhos.
Diferente da sergipana Etani, o médico foi à procura de todos os seus filhos. "Fazendo uma leitura de tudo o que temos e vivemos hoje, nossa, é muita coisa. Meus filhos foram criados por mim, fui pai e mãe e tenho muito orgulho disso, deles", conta ele, citando os filhos de 25, 21 e 19 anos.
Luiz, contudo, diz que "adotar alguém não é para qualquer um"."Eu até desencorajo alguém que vem com aquele papo de: 'quero adotar por solidariedade'. Ninguém tem um filho biológico porque quer ser bom, mas porque quer ser pai e mãe. Adote por amor e o bem será uma consequência".“Etani e Luiz são exemplos de amor e solidariedade. Ela é uma figura, tem que ser homenageada pela pessoa que é, pelo coração que tem. Porque as pessoas, para adotar, precisam abrir o coração", diz Salomão Rosedá.
O corregedor explica ainda o porquê de as pessoas acharem que o processo de adoção é demorado. "Na Bahia, salvo raras exceções, o tempo é de cinco a seis anos para aparecer o filho desejado. Em geral, porque as pessoas querem que seja do sexo feminino e recém-nascidas. As pessoas precisam quebrar esse perfil. Os meninos negros, mais velhos, são os menos escolhidos”, detalha ele que, embora critique os perfis, afirmou que não vê como uma questão de preconceito, mas de "preferência". Aposentada garante que faria tudo de novo: 'Adotaria um por um' (Foto: Tailane Muniz/CORREIO) 'Se 10% deles aceitasse, não sobraria uma criança’ Ainda de acordo com os dados do TJ-BA, 753 pessoas (53,29%) até aceitam todas as raças, mas como há a predileção por outros quesitos, como idade, o número na Bahia, na visão de Salomão Rosedá, segue desproporcional.
“Se 10% dissessem: ‘eu vou amar, eu quero adotar o meu filho que está nos abrigos do estado', não teríamos uma única criança sem lar. É uma conta que não fecha”, lamenta ele, afirmando que os interessados devem, inicialmente, ir até a Vara da Infância e Juventude se informar sobre o processo de adoção.
Para quem não tem interesse ou não pode adotar, existe ainda a possibilidade de apadrinhamento. Os critérios são os mesmos da adoção: ser maior de 18 anos, solteiro ou casado, ter qualquer orientação sexual ou gênero, ter “idoneidade moral”, “motivação idônea para a adoção”, ou seja, ser bem intencionado, fazer um curso preparatório para a adoção, e ser pelo menos 16 anos mais velho que o adotado ou apadrinhado.
No caso de quem escolhe apadrinhar, a criança apenas passa períodos pontuais com o padrinho, como finais de semana e férias, o que, segundo o desembargador, “contribui para uma melhor formação cidadã”.“Quando essa criança faz 18 anos e não consegue ser adotada, sai do abrigo e vai ter de encarar o mundo lá fora. Se ele foi apadrinhado, sairá com uma noção da convivência em comunidade, porque foi ao cinema, ao teatro, ao shopping com o padrinho. É muito difícil quando ele nunca viveu nada disso”, defende Rosedá.