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Conheça a história de Jucileide, a mulher que vive com 69 cães em Brotas


 

Ela já chegou a ter 80 animais em casa; para psicólogo, Jucileide não é, necessariamente, uma acumuladora

  • Fernanda Santana

Publicado em 17/02/2018 às 04:00:00
Atualizado em 18/04/2023 às 02:09:08
. Crédito: Foto: Betto Jr./CORREIO

(Foto: Betto Jr./CORREIO) De segunda a sexta-feira, a rotina de Jucileide Almeida, 56, se repete: levanta as cinco da manhã e, até as 12h, limpa a casa e põe comida para os animais de estimação. Às 17h, reinicia as atividades, e só para seis horas depois, para dormir. As horas de dedicação não são apenas um simples zelo com o lar e tudo pareceria banal, não fosse um detalhe. Onde mora, no bairro de Brotas, ela divide a residência de dois andares com o marido e 69 cachorros.

Ao lado de um portão gradeado marrom, os cães vivem em 11 canis divididos. Dentro de cada um, 10 cachorros se amontoam para conseguir espaço na área de no máximo um metro e meio de largura. Semanalmente, Jucileide desembolsava R$ 550 somente para alimentá-los e uma quantia incalculável para limpar o espaço. No início do ano, viu que a aposentadoria do marido não seria suficiente para arcar com as despesas, já que ela própria abandonou o trabalho com decoração em igrejas para cuidar dos bichos, em 2013. Como os animais não poderiam ficar sem comida, decidiu que precisava de ajuda.

Quando finalmente recorreu a vizinhas, a situação já estava fora do controle: 80 cachorros viviam nos canis. E o cheiro de xixi e cocô deixados pelos animais era ainda mais insuportável que hoje. Assim como o carrapato e sarna que se proliferavam. “Quando eu passeava, via os cachorros latindo, mas não sabia o que era. Aí, fui me aproximando dela e tentando entender a situação. Ela não contou de início quantos cachorros tinham, só depois descobri”, conta Débora Cal Marques, 53, uma das vizinhas que criaram uma frente de suporte a Jucileide, mas sobretudo aos animais.

Do pedido de Jucileide, nasceu o grupo “69 cães de Brotas”. No whatsapp, Débora, Cris Torres e Ana Maria, todas moradoras do local, e 15 outros protetores acumulam esforços para ajudar os animais. Juntos, conseguiram que 11 dos 80 cães fossem adotados ou levados para o Lar Temporário, na Estrada do Coco. Mas falta muito para que o objetivo seja alcançado. “Estamos preparando as paredes para que o alicerce seja construído”, resume. O alicerce é um local com mais espaço para cachorros ou casas com condições de criá-los. (Foto: Betto Jr./CORREIO) Uma vida dedicada aos animais Na infância, Jucileide já gostava de cachorros. Mas, há 10 anos, quando ganhou dois pastores alemães, a paixão tomou proporções inimagináveis. A ponto de a filha, diagnosticada com rinite alérgica prejudicada pelos animais, sair de casa em 2015, aos 25 anos, e o marido se recolher incomodado ao quarto do casal, único cômodo sem presença de cachorros por exigência dele. De lá para cá, a residência se tornou um ‘canil’, diz o companheiro, e ela perdeu 12 quilos por causa da “preocupação”. “Eu vou fazer o que? Vou abandonar?”, questiona ela.

A maioria dos cachorros, defende Jucileide, foi abandonada pelos donos ou oferecida por protetoras. Ela, afinal, não poderia deixá-los na rua: a sua sala, cozinha e banheiro seriam moradias melhores. As vizinhas discordam e indagam a dona dos 69 cachorros. “Ela já pegou muito cachorro na rua”, contrapõe Ana. Enfim, Jucileide admite que buscou cachorros na rua. E mesmo conta que comprou dois cachorros de drogados que encontrou na Barroquinha. A um dos “sacizeiros”, como as vizinhas chamam, ela pagou R$ 50 por uma cadela; a outro, ofereceu R$ 10. Acordo feito, eles chegaram à casa já lotada.

Os outros vizinhos, sem participar do grupo de ajuda, assistiram à chegada dos novos moradores e ouvem, diariamente, os latidos cada vez mais intensos deles, seja por fome ou agitação. “Fico com dó demais, principalmente porque não posso adotar”, afirma Uliana Lopes, 25, ajudante no centro de saúde ao lado da casa. Mas, e a zoada?. “O pessoal reclama, mas acaba ficando com pena. É um trabalho enorme e todo mundo sabe disso. O tempo todo escorre água aqui de tanto que ela lava para limpar”, conta, apontando para uma poça acumulada em frente aos canis.

A vizinha de porta, Edinice Cruz, bem sabe o que fala Uliana. Viu Jucileide crescer junto ao canil que criou. “Nunca reclamei, porque ela não tem noção do prejuízo que causa aos animais. Eles gritam, late. Por outro lado, vemos o amor que ela sente por eles”, diz. Ela, assim como boa parte dos moradores do lugar, têm animais em casa. Talvez por isso, tenta explicar Débora, “as pessoas tentem ajudar”. (Foto: Betto Jr./CORREIO) O limite do acúmulo Desde que pediu ajuda, Jucileide sempre interpela no meio das frases, como quem faz um grande descoberta: “É muito cachorro”. A constatação da cuidadora não significa, necessariamente, que ela é acumuladora, justifica Cláudio Melo, psicólogo da clínica psiquiátrica Holiste.

O transtorno de acumulação (TA) é um distúrbio que, em geral, se manifesta com objetos, mas há uma vertente ainda pouco estudada, mas cada vez mais comum, que provoca a acumulação de animais. “Os sintomas de acumulação podem variar de um simples comportamento excêntrico que não cause prejuízos maiores ao sujeito ou a terceiros, até casos graves que estão associados a sintomas psicóticos”, explica.

Independentemente do diagnóstico, ele frisa, é importante não fazer “relações genéricas” entre acumulação e maus-tratos. No caso dos animais de Jucileide, por exemplo, nenhum animal foi encontrado ferido. Ela, na verdade, costuma cuidar de cachorros feridos, seja nas ruas ou na própria casa. (Foto: Betto Jr./CORREIO) Na lista de fatores de exposição que podem facilitar o surgimento do transtorno de acumulação, estão causas “hereditários e vivenciais”. “Há muitos relatos de ocorrências similares em gerações anteriores ao do paciente, assim como, uma forte relação desses transtornos ou de seu agravamento após situações de estresse ou traumáticas”, declara. Não existe, ainda, programas específicos para a doença. Geralmente, os pacientes recebem tratamentos de transtorno de ansiedade e estresse.

A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informou, ao CORREIO, que o Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) de Salvador “não efetua fiscalização animal e atua diretamente no controle de zoonoses com foco no homem”. “Em casos de acumuladores, a equipe do CCZ monitora de perto orientando os proprietários a castração e vacinação dos animais para evitar que haja propagação das doenças”, esclarece. Uma equipe do CCZ foi aos canis da casa de Jucileide, contam Ana, Débora e Cris, há três meses, para vacinar todos os animais.

Pedido de ajuda A partida dos animais vai doer, emociona-se Jucileide. “Mas, vou ficar bem”, diz, antes de um tímido choro. O que todas realmente querem, afirma Débora, é ajudar os cachorros a viverem em um ambiente “mais tranquilo e propício”. Para contribuir com ração para os cachorros, ou se houver interesse em adoção, é possível entrar em contato por meio do telefone (71) 99300-3345. Até que a maioria dos cachorros saiam de casa, Jucileide garante: “Todos serão bem cuidados”.