'Cabe a nós, padres e bispos, insistirmos na vacinação', diz arcebispo de Salvador
Em entrevista, Dom Sergio da Rocha fala sobre relação entre fé e ciência, Natal e festa do Bonfim
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Thais Borges
thais.borges@redeabahia.com.br
Desde o começo da pandemia da covid-19, a Arquidiocese de Salvador tem anunciado medidas para evitar a transmissão do Sars-cov-2. Procissões e festas foram canceladas, assim como as próprias missas chegaram a ser suspensas por um tempo.
Mas não deve ser só isso: para o arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, Dom Sergio da Rocha, também é uma responsabilidade da Igreja, através de seus padres e bispos, reforçar a importância da vacinação contra a covid-19 nas comunidades. “Se há quem não se dispõe à vacina, queremos incentivar e valorizar a vacina”, diz ele, que assumiu o posto em junho do ano passado, já em meio à pandemia, após a aposentadoria de Dom Murilo Krieger.Em maio deste ano, no pico dos casos da doença, ele chegou a testar positivo. Teve sintomas moderados. “A saúde espiritual conta muito nessa hora. É muito importante saber que as vacinas e os remédios precisam ser tomados, mas o remédio espiritual é muito importante”, reforça.
Para Dom Sergio, as medidas de prevenção são também um ato de fé e amor - e, por isso, merecem ser alvo de reflexão também no Natal. Segundo o arcebispo, entre ciência e fé, não deve haver oposição. “Nós buscamos, juntos, o que é melhor para a humanidade”.
Em uma conversa com o CORREIO, ele falou sobre o futuro das festas de Bom Jesus dos Navegantes e do Senhor do Bonfim, nas próximas semanas, e deixou uma mensagem de Natal para as baianas e os baianos. Dom Sergio da Rocha teve covid-19 este ano (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Quais serão as ações da Arquidiocese nesse período do Natal?
Temos visto, graças a Deus, uma melhoria das condições de saúde pública, mas não podemos relaxar. Não podemos desistir das medidas necessárias para preservar a vida e a saúde. Sabemos que com a melhoria, muita gente acaba desistindo daqueles cuidados necessários.
A Igreja, desde o início da pandemia, tem dado a sua contribuição. Sempre procuramos acolher as determinações das autoridades de saúde pública e cumprir rigorosamente aquilo que é exigido. Nesse momento, em relação a essas festas do final do ano ou as celebrações maiores como Natal e Ano Novo, nós estamos insistindo na questão da máscara. Ao mesmo tempo, estamos evitando tudo aquilo que possa significar aglomeração. Procissões, de maneira geral, não temos feito.
Depois, temos insistido e vamos continuar insistindo na vacinação. Há gente que recebeu a primeira dose e não voltou, há quem recebeu a segunda, mas já está precisando do reforço.Cabe a nós, nas comunidades, ajudarmos as pessoas a terem essa consciência da necessidade de completar a vacinação. Isso não só com motivação de saúde pública, mas como um gesto primeiro de fé. Quem crê em Deus louva a Deus não só na missa ou nas orações. Também procura levar a sério na vida. Esse esforço, esses sacrifícios que se vivem na saúde, as medidas observadas, são um ato de amor. Qual é o papel da Igreja, nesse sentido?
O risco que temos é achar que a pandemia já acabou e podemos viver como antes. Devemos, como Igreja, continuar a ajudar as pessoas a refletir. Depois, temos procurado também ser solidários com os que sofrem pela oração e com atitudes concretas, como a assistência aos enfermos. Além disso, a solidariedade com as famílias que estão sofrendo as consequências da pandemia. Ela não se reduz aos efeitos da saúde. Sabemos os efeitos no campo econômico. Precisamos de partilha, porque tem gente aí sofrendo e muito.
E também a solidariedade da Igreja com as famílias vítimas das enchentes no sul da Bahia e norte de Minas. As dioceses dessas regiões têm procurado desenvolver campanhas de partilha e solidariedade com ajuda da Cáritas. Sem dúvida num Natal como esse, essas famílias merecem uma atenção especial.
E não vamos esquecer da gratidão aos profissionais de saúde. Tem pessoas arriscando a própria vida. Estive hospitalizado por outros motivos recentemente e pude sentir de perto esse cuidado dispensado pelos profissionais da saúde em várias situações. Não era covid, mas era importante essa presença mais imediata e continuada dos profissionais. O arcebispo adiantou que as festas religiosas continuarão sendo realizadas de forma diferente, devido à pandemia (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Como será a programação de Natal?
Nós sabemos que, pela importância da solenidade do Natal, ele é celebrado em todas as nossas principais igrejas. Na Catedral Basílica, que é a Igreja-mãe, nós vamos ter a missa mais cedo, às 18h (nesta sexta, dia 24). Também lá em Roma, no Vaticano, o papa antecipou. Aqui, por vários motivos, para favorecer a participação das pessoas, por razão de segurança, etc, temos colocado mais cedo a missa. No dia seguinte, do Natal, a missa será às 9h da manhã, um pouco mais cedo do que tem sido normalmente.
É muito importante que as pessoas participem da celebração do Natal. Se não for possível participar presencialmente, através dos meios de comunicação. Tem muitas missas sendo transmitidas por rede social, por rádio, tv. Muitos deixaram de participar da igreja por razões óbvias no período mais duro da pandemia, mas, agora, aos poucos as pessoas vão retornando. O Natal é uma ocasião especial para isso. Agora, é claro que as nossas igrejas devem estar com devidos cuidados.
O Natal torna possível aflorar os sentimentos que deveriam caracterizar a pessoa humana o ano todo: o desejo de paz, o afeto que se expressa em gestos de proximidade, gratidão. Mas não deveria se reduzir ao dia do Natal. Isso deveria continuar no ano novo. Por isso, insistimos para a pessoa celebrar o Natal de maneira cristã, para que continue no ano seguinte e não seja apenas um dia, um momento.
O senhor tocou nessa questão das procissões. O mês de janeiro em Salvador tem, tradicionalmente, muitas festas religiosas. Como deve ser esse janeiro?
Já tivemos festa da Conceição da Praia, de Santa Luzia, com participação imensa das pessoas. Temos aí pela frente a do Senhor do Bonfim, que é a maior, e temos também a do Bom Jesus dos Navegantes/Boa Viagem.
Em relação ao Senhor do Bonfim, nós, enquanto Igreja Católica, já assumimos com as autoridades a iniciativa de não fazer a festa da maneira tradicional. Não temos condições, não é possível. Vamos fazer a novena dentro da igreja e, no domingo, dia propriamente dito, vamos fazer um número maior de missas para evitar aglomeração. Quanto à Lavagem propriamente dita (que acontece na quinta-feira anterior ao domingo da festa), é uma decisão a ser tomada pelo poder público. Nós respeitamos aquilo que for decidido. A grande dificuldade está em colocar limites. As pessoas têm esse desejo de subir a Colina e participar ao redor do Santuário. Por isso, estamos optando por não fazer procissão mais uma vez.A respeito do Senhor Bom Jesus dos Navegantes, também não é possível que aconteça como de costume. Mas está sendo decidido, em diálogo com as autoridades, o que é possível fazer. Claro que a missa dentro da igreja haverá, seja a do dia 31, na Boa Viagem, ou a do dia 1º, na Conceição da Praia. Agora, além disso, é preciso ver se é possível algum outro sinal ou manifestação pública, como a travessia marítima com a galeota Gratidão. Mas não é fácil.
Então ainda não há certeza se a galeota poderá ser usada?
Eu não tenho condições de dizer isso nesse momento. A irmandade e o padre que está à frente da paróquia estão em diálogo com as autoridades para decidir qual é o melhor procedimento. A procissão marítima não creio que seja possível, porque representaria aglomeração. A travessia com a galeota é algo que pode ser melhor definido se houver condições para isso, mas está sendo estudado até que ponto poderia ser feita a travessia.
No ano passado, foi por terra com o carro dos Bombeiros. Aquilo trouxe dificuldades porque a cidade tem a fiação e as imagens são preciosas. São imagens da própria igreja, não há réplica e precisam ser preservadas. Embora os Bombeiros tenham feito muito bem a parte deles no ano passado, temos dificuldades por terra.
No ano passado, fosse o Bonfim, fosse Navegantes, havia uma consciência de que não era bom reunir muita gente. Ainda estava num nível mais alarmante, mais sério. Agora, com a melhoria, as pessoas começam a achar que não há problema algum. E há problema. Como eu disse há pouco, não é uma decisão que se toma meramente baseada em critérios religiosos. São critérios de saúde pública, científicos. Se aqueles que têm esse conhecimento maior julgam que é possível, se faz um pouco mais. Não sendo possível, vamos apenas fazer um grande louvor a Deus na celebração eucarística.
Sei que há muita gente desejosa, como eu estou, de termos as festas da maneira mais tradicional possível. Mas nós queremos participar da festa no próximo ano, queremos estar vivos. É melhor se privar um pouco mais e no outro ano participarmos juntos num quadro ainda melhor do que expor as pessoas e, no ano seguinte, fazermos festa sozinhos, sem as pessoas do nosso lado.
O senhor teve a covid-19 e isso foi algo que aconteceu com outros padres e bispos de Salvador. Como foi esse período e como foi sua recuperação?
Nós, padres e bispos, participamos das alegrias e das dores do nosso povo. Sempre tomei as medidas que pude para evitar contágio. Evitei aglomeração; ia às paróquias e não aceitava nem lanche, nem café, nada, até para não tirar a máscara. Na missa também não tirava. Mesmo assim, há sempre o risco para quem está a serviço da comunidade, assim como há o risco para quem está nos hospitais.
No período que eu estive com a covid-19, cerca de 10 padres daqui de Salvador também tiveram. Mas, pelo que constatamos, nenhum transmitiu para o outro, até porque não nos encontramos presencialmente.
Apesar dos cuidados, acabei contraindo. Graças a Deus, eu não passei, pelo que tenho consciência, para ninguém. Na minha própria residência e nos ambientes onde estive naqueles dias, ninguém contraiu. Tive sintomas moderados, atingindo parte do pulmão, mas não precisei de internação hospitalar. Mas a gente vê como é importante a oração, a fé em Deus, a vida espiritual. Ao contrair uma enfermidade como essa, há uma incerteza muito grande das reações do organismo. Você não sabe, no outro dia, como vai estar, se melhor ou pior. (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Sem dúvida, a saúde espiritual conta muito nessa hora. É muito importante saber que as vacinas e os remédios precisam ser tomados, mas o remédio espiritual é muito importante. Vejo que a covid foi um tempo de fragilidade física, mas de fortalecimento humano, afetivo e espiritual. A gente passa a ser mais compreensivo com as fraquezas dos outros e mais solidário.
O senhor tocou na questão da ciência algumas vezes, com a defesa das vacinas. É comum que coloquem religião e ciência em polos opostos, mas como é, para o senhor, que tem esse discurso tão conciliador, ver a forma como muitas pessoas têm negado a ciência na pandemia?
É preocupante e lamentável a posição de algumas pessoas que estavam negando a ciência e as vacinas e, com isso, não ajudando a superação da pandemia. Mas nós temos que olhar com reconhecimento, gratidão e até mesmo esperança porque o nosso problema (no Brasil), de maneira geral, não foi tanto de gente negando. Claro que isso pesa, e agora, nessa etapa que estamos, talvez mais ainda. Mas nosso problema maior foi a falta de vacina para todos, que hoje a situação parece um pouco melhor, assim como as filas enormes.
Certamente, essa melhora das condições da pandemia no Brasil tem a ver com a vacina. Queremos ver as pessoas recuperadas e testemunhando o valor das vacinas, mas lamentamos que ainda exista esse grupo que preocupa. Temos que respeitar a todos, no Natal, sobretudo. Só que respeitar não significa que a gente vá concordar ou deixar as coisas de qualquer jeito. Temos que fazer nossa parte. Se há quem não se dispõe à vacina, queremos incentivar e valorizar a vacina. Na verdade, não deve haver essa oposição entre fé e ciência ou religião e ciência. Creio que a ciência tem sua autonomia, a igreja, a religião, a fé tem a sua. Mas isso nos leva à convergência. Nós buscamos, juntos, o que é melhor para a humanidade. Qual é a mensagem de Natal que deixa para baianas e baianos?
Em tempos como os que temos vivido, nossa mensagem pode ser resumida em duas palavras: esperança e paz a serem compartilhadas entre nós. Precisamos, no mundo de hoje, a começar na própria família, ser mensageiros de paz e de esperança. E são dois presentes que pedimos a Jesus, mas que podemos oferecer gratuitamente. Ninguém precisa comprar. O Natal vai ser feliz na medida que oferecemos a nossa contribuição para que a esperança e a paz estejam nos ambientes.
O que podemos esperar de 2022, que é um ano que tem sido encarado com certa apreensão por muita gente, devido a questões políticas, sanitárias e econômicas?
Digo que é dom e tarefa. É um presente para recomeçar pessoalmente, em família, em comunidade e na sociedade. Vida nova superando aquilo que nos fez tanto sofrer nesse ano que passou, não só a pandemia com as consequências, mas esse clima de polarização que tem trazido tanto sofrimento pra tanta gente. Mas também olhamos para o novo ano como tarefa, porque esse novo cabe também a nós construí-lo. Não dá para, de uma vez, dar um salto. Mas vamos lentamente caminhando e cada um oferecendo a sua contribuição.