Bahia apresenta a maior porcentagem de negros mortos por policiais
Em 2020, foram 607 mortes em ações policiais, sendo 595 pretos ou pardos
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Bruno Wendel
bruno.cardoso@redebahia.com.br
Já se passaram nove meses, mas parece que foi ontem. “O sofrimento é a mesmo. É uma mistura de dor e raiva pelo que fizeram com o meu primogênito”, desabafa a feirante Cassia Pereira, mãe de Ryan Andrew Pereira Tourinho Nascimento, de 9 anos. O garoto foi morto durante operação policial no dia 26 de março do 2020, no Complexo do Nordeste de Amaralina. O caso dele é um de muitos que constam de um terrível levantamento: a Bahia apresenta a maior porcentagem de negros mortos por policiais do Nordeste do país, 98%
O dado consta do novo boletim da Rede de Observatórios da Segurança, que será detalhado no lançamento, nesta terça-feira (14). As informações da pesquisa foram coletadas em seis estados através das secretarias estaduais de Segurança Pública e pedidos via Lei de Acesso à Informação (LAI). Segundo o levantamento, a Bahia, estado que possui como capital a cidade mais negra fora do continente africano, registrou no ano passado 607 mortes durante ações policiais, os chamados autos de resistência. Deste universo, as balas encontraram 595 corpos negros (pretos e pardos) contra 11 brancos e uma denominada de outra cor não especificada. Em Salvador, todos os mortos pela polícia são negros, ainda segundo os dados da Rede. O estudo cita como exemplo as mortes de duas mulheres negras no Curuzu: Maria Célia de Santana, 73 anos, e Viviane Soares, 40. Elas conversavam na porta de casa quando foram atingidas. “E como essa lógica perversa é cotidiana, Viviane era tia do menino Railan Santos da Silva, de 7 anos, que foi morto por uma bala da polícia enquanto assistia ao futebol em um campo do bairro. A Bahia tem a polícia mais letal do Nordeste”, diz trecho do documento.
No ranking dos seis estados, a Bahia está à frente de Pernambuco – das 112 pessoas mortas pela polícia, 109 eram negras; Em seguida está o Ceará – 39 óbitos, 34 de pessoas de pele negra. No caso do Maranhão, foram 97 pessoas mortas em ações policiais no ano passado. Mas, de acordo com a pesquisa, o estado não monitora a cor da pele dos mortos pela polícia.
Chacinas
Em relação às chacinas, a Bahia tem o maior índice entre os estados do Nordeste monitorados pela Rede nos últimos dois anos, com 74 registros. Também fica na Bahia a cidade onde a polícia mais mata pessoas negras no país: Santo Antônio de Jesus. Esses dados e outros serão detalhados na apresentação do levantamento nesta terça (14).
O estudo diz ainda que a Bahia ocupa a terceira posição nacional de mortes de pessoas negras – fica atrás apenas do Rio de Janeiro (939) e São Paulo (488), que é o estado mais populoso do Brasil.
A reportagem procurou a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), para repercutir o estudo. Em nota, a SSP ressaltou que "a polícia é treinada para usar armas letais somente em situações de legítima defesa, após esgotar todas as tentativas de capturar suspeitos". O órgão acrescentou que "as operações e patrulhamento diário são promovidos levando em consideração a taxa de crimes e também denúncias de moradores".
Sobre capacitação, a SSP informou que tem investido nessa área e que está em fase de testes das câmeras corporais que "protegerão os policiais e também as pessoas abordadas".
Polícia Violenta
O coordenador da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia, Dudu Ribeiro, comentou os números: “É uma demonstração nítida da política de distribuição de violência no Estado: ela tem cor! Isso já foi apontado em outros estudos da Rede e mostra que a polícia da Bahia continua agindo sobretudo contra a população negra, sem, no entanto, reduzir os índices de violência”.
Segundo ele, os autos de resistência são em grande maioria nos bairros periféricos. “É uma atuação violenta baseada nessa lógica da guerra às drogas e que na verdade não tem impactado, não tem demonstrado nenhum tipo de eficiência. Veja como exemplo as ações na Pituba. Lá, há apreensões de drogas maiores em relação aos bairros periféricos da cidade, mas o índice de mortes em ações policiais quase não existe, diferente da região do subúrbio, Cajazeiras, Beiru, Nordeste de Amaralina, onde há mais mortes nas ações policiais do que apreensões de drogas. Na verdade, isso não é uma guerra ao tráfico e sim uma guerra à população negra”, pontua Ribeiro.
Integrante do coletivo Incomode, Ingrid Santos Sena falou da importância do estudo. “Esta é mais uma forma de luta contra esses abusos do Estado. Tornar esses dados públicos é a forma de gritar que é preciso combater a triste realidade que, infelizmente, tem endereço e cor: os negros periféricos”, declarou ela, que teve um primo morto por policiais em 2016 no Complexo de Amaralina. O Incomode atua na luta contra o hiperencarceramento e o extermínio da juventude negra do subúrbio ferroviário de Salvador.
Laudo
Além da dor diária, a feirante Cássia Pereira tem que lidar com a morosidade do processo de investigação da morte de seu filho de apenas 9 anos. A mãe de Ryan disse que o inquérito sobre a morte do filho está parado, aguardando um laudo do Departamento de Polícia Técnica (DPT). “A polícia disse que o caso está parado aguardado o laudo das armas dos policiais. Até agora não ficou pronto, mas o meu sofrimento é diário”, diz. Ryan foi morto em operação policial no Complexo do Nordeste de Amaralina (Foto: Arquivo pessoal) Ryan Andrew brincava com os amigos quando policiais militares chegaram atirando na rua no dia 26 de março, no Vale das Pedrinhas, um dos bairros que compõem o Complexo do Nordeste. Após a perda do filho mais velho, ela deixou o local onde vivia.
“Depois que ele morreu, tive que deixar a casa de minha mãe, onde morávamos. Tudo me lembrava ele. Bastava entrar na rua e ver os coleguinhas dele, para uma dor imensa me tomar por completo”, disse ela, que preferiu não revelar o atual endereço por questões de segurança.
Ela disse que quer justiça, apesar de temer represálias. “Mas tenho que continuar lutando, porque tenho outro filho, um menino de seis anos que precisa de mim. Mas não está fácil conviver com essa dor. Tenho muita raiva, ódio, pois vejo eles [policiais] passando por aqui como se nada tivesse acontecido. Temo pelo meu outro filho e meus sobrinhos”, afirma.
A Policia Militar (PM) informou que o "fato foi apurado em Inquérito Policial Militar (IPM) e após a conclusão foi encaminhado ao Ministério Público". Já a assessoria de comunicação do DPT confirmou que falta apenas a entrega de um laudo, o que deve ser feito até essa segunda-feira (20). Trata-se do laudo de um projétil que foi encaminhado por populares depois da realização da perícia, o que justificaria o atraso. "Fora esse, todos os outros laudos já foram entregues", reforçou o DPT.
A Rede
Sete organizações, de sete estados, conectadas com um objetivo: monitorar e difundir informações sobre segurança pública, violência e direitos humanos. A Rede de Observatórios da Segurança é uma iniciativa de instituições acadêmicas e da sociedade civil da Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo dedicada a acompanhar políticas públicas de segurança, fenômenos de violência e criminalidade nesses estados.
Com metodologia inspirada na bem-sucedida experiência do Observatório da Intervenção, projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), que monitorou as ações das Forças Armadas no Rio de Janeiro durante a intervenção federal em 2018, a Rede acompanha 16 indicadores, além dos dados oficiais e orçamentos governamentais que são apresentados ao público em relatórios, infográficos, seminários e encontros.
Além do CESeC, as organizações que formam a rede são: Iniciativa Negra Por Uma Nova Política de Drogas, da Bahia; Laboratório de Estudos da Violência (LEV), do Ceará; Rede de Estudos Periférico (REP), do Maranhão; Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), de Pernambuco; Núcleo de Pesquisas sobre Crianças, Adolescentes e Jovens (NUPEC), do Piauí; Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP), de São Paulo.
Outra dimensão do trabalho da Rede é a criação de diálogo com pesquisadores de segurança pública; ativistas de favelas e periferias; ONGs e movimentos sociais; grupos de mães e familiares de vítimas de violência policial; movimento negro; movimento LGBT; mandatos de parlamentares; Judiciário e Ministério Público; tecnologia e transparência; e comunicação.