Até 14 horas de trabalho e 80 km pedalados por dia: conheça os entregadores por aplicativo
Trabalhadores chegam a triplicar a renda e antecipam novo modelo de inserção no mercado
-
Thais Borges
thais.borges@redeabahia.com.br
Jônatas nunca teve um emprego com carteira assinada. Cansou de escutar que precisava de experiência, sem mesmo ter tido uma oportunidade. Se alistou no Exército, mas, depois do período obrigatório, não foi convocado. Silvânia passou mais de um ano procurando uma vaga, depois de ser demitida de uma fábrica de calcinhas. Israel tem um trabalho formal: é marinheiro de píer, mas queria uma renda extra.
Com histórias diferentes, tiveram destinos parecidos: se tornaram entregadores por aplicativo. Sem nunca ter trabalhado com entrega antes, viram, em plataformas como Rappi, Uber Eats e Ifood, uma alternativa para o desemprego. Como eles, Antônios, Leandros, Robsons e Claudemirs cruzam a cidade entregando encomendas, sempre a bordo de uma moto ou de uma bicicleta.
'Passa a existir uma concorrência selvagem entre os entregadores', diz pesquisador
Em um novo contexto digital em que pesquisas recentes indicam que mais de 5,5 milhões de brasileiros trabalham com aplicativos de transporte, os entregadores chamam atenção. Eles encaram jornadas flexíveis, mas que podem chegar a 14 horas, em um único dia, todos os dias da semana. Ao mesmo tempo em que não contam com proteção alguma – seja legal, seja de sua integridade física, chegam a triplicar a renda que tinham. “Eu trabalhava como marinheiro, mas já tinha um ano e meio desempregado. Quase dois anos, na verdade. O mercado está difícil. Aí, um amigo sugeriu e eu me inscrevi”, conta o entregador Claudemir Oliveira, 30 anos, enquanto espera por seu primeiro pedido do dia em um shopping de Salvador. Era seu 16º dia na função e passava das 11h30 quando ele conversou com o CORREIO. É mais ou menos o horário que começa a trabalhar, todos os dias. Dali em diante, leva direto até por volta de meia-noite. Morador de uma comunidade às margens do Solar do Unhão – que não é a Gamboa, como faz questão de dizer –, Claudemir pedala 4,5 quilômetros só para chegar ao shopping, que fica na Barra.
Aquele local tem duas vantagens: fica perto de muitos restaurantes e lanchonetes e é um dos três que mais recebem pedidos, segundo os próprios entregadores. Para bater a Barra, só o Rio Vermelho ou a Pituba. “Por dia, ando uns 30, 40, 50 quilômetros. Tudo vai depender de suas pernas. Eu almoço antes de vir e trago um lanche. Se a fome apertar, vou rapidinho e faço uma boquinha”, conta. Claudemir começou a fazer entregas há menos de um mês, de bicicleta (Foto: Marina Silva/CORREIO) Claudemir poderia representar diversas estatísticas sobre desemprego e desocupação em Salvador e no Brasil. No primeiro trimestre de 2019, por exemplo, a taxa de desocupação na Bahia era de 18,3% - ou seja, 1,3 milhão de pessoas desocupadas no estado, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em Salvador, esse percentual ficou em 15,8% no mesmo período, chegando a 265 mil pessoas nessas mesmas condições. Nesse contexto, um processo que ficou conhecido como ‘uberização’ – em alusão a um dos representantes mais tradicionais dessas plataformas, o Uber tradicional, que transporta pessoas em carros de passeio –, tem despertado debates jurídicos, legais e econômicos. Para muitos especialistas, essa nova forma de trabalho pode ser tão inovadora quanto contraditória. Até perversa, diriam alguns.
Jornada longa O CORREIO conversou com sete entregadores dos três principais aplicativos de entrega disponíveis em Salvador. Como a maioria dos entregadores ouvidos pela reportagem, Claudemir encontrou uma saída para seu sustento. Em casa, a noiva também trabalha fazendo bicos como babá. Ele, que já era adepto da bicicleta, diz não ter tido dificuldade com o que poderia ser uma rotina de exercícios puxada. Se estivesse sem fazer nada, explica, talvez estivesse pedalando com amigos ou batendo um ‘baba’ com os vizinhos. “Do jeito que eu ando correndo, consigo entregar um pedido em 15, 20 minutos. Se eu for devagar, os pedidos vão para outra pessoa”, diz ele, que garante tomar cuidado no trânsito. Não usa equipamentos de proteção individual como capacete, joelheiras e camisa com proteção UV. Acredita que o pisca traseiro, na bike, cumpre bem a função. Os quatro primeiros dias foram mais difíceis. Se fez duas entregas em cada um deles, foi muito. Do quinto em diante, o ritmo aumentou. No Dia dos Namorados, dia 12, fez 12 entregas. O saldo final da semana anterior ao dia em que falou com o CORREIO foi de R$ 355. O esquema foi o mesmo ao longo dos sete dias: sem folga, trabalhando pelo menos 12 horas por dia.
É o que acontece com o entregador Antônio Dórea, 43. “Minha rotina começa às 10h, quando os apps começam a chamar e vai até meia-noite. Rodo Salvador toda. É pauleira”, adianta ele, que é do time dos motociclistas e usa os três apps: Rappi, Ifood e Uber Eats.
Morador do Nordeste de Amaralina, Antônio era dos poucos que tinha trabalhado na área antes. Por oito anos, foi entregador em pizzarias, mas sempre contratado por empresas terceirizadas. Trabalhava das 18h às 22h, sem benefícios trabalhistas. Antônio trabalhava como entregador em pizzarias antes de migrar para os apps, há três meses (Foto: Marina Silva/CORREIO) Há três meses, se deparou com um vídeo, no YouTube, que falava sobre as entregas por apps. Decidiu tentar. Gostou da flexibilidade de horários e achou o processo mais seguro. Tem justificativa: nas pizzarias, se começasse a chover, tinha que encarar o trânsito de qualquer forma. No aplicativo, se o cacau cai, desliga a opção de receber chamadas. Espera a chuva passar.
O fato de não ter um ‘intermediador’ – no caso, uma empresa terceirizada – também fez o trabalho ganhar pontos.“Na pizzaria, dava para tirar bem uns R$ 2 mil por mês. Hoje, eu com os aplicativos faço R$ 3 mil, R$ 3,5 mil. Mas eu trabalho duro mesmo, sem folga. Só vou para casa quando bato a meta de R$ 100 num dia. O ruim do app é que a gente entra em todo lugar, inclusive lugar perigoso”, diz Antônio. Antônio chegou a influenciar o próprio irmão, Robson Dórea, 41, a entrar no ramo dos aplicativos. Robson já tinha uma moto e uma experiência em rodar pela cidade: trabalhava como mototáxi. O problema é que as corridas andavam devagar. Achou que, depois da regulamentação municipal, em 2017, as coisas fossem melhorar.
No entanto, a oferta de mototaxistas andava tão alta que não via muitas possibilidades de lucro. Decidiu explorar o serviço de entrega. Mas, há um mês e 15 dias, ele não anda muito otimista. “Até agora, está sendo viável. Mas vamos ver como vai ser daqui para frente, que vai entrar muita gente ainda”, estima.
Robson trabalha quase no mesmo ritmo que o irmão. Começa às 10h e só vai parar lá pelas 22h, se tiver completado a meta dos R$ 100 no dia. Esse valor é importante para ter um lucro mínimo. Do total, separa entre R$ 20 e R$ 30 para a gasolina do dia seguinte, além de outros R$ 15 para almoçar na rua. No fim, ele avalia que precisa ter tido pelo menos R$ 45 de lucro para que valha a pena retornar no dia seguinte. Robson trabalha como mototáxi. Diz que, se encontrar um emprego com carteira assinada, sai dos apps: 'O trânsito é feroz' (Foto: Marina Silva/CORREIO) Se tivesse um emprego por carteira assinada, como frisou mais de uma vez, já teria “caído fora”. Mesmo se for para ganhar um pouco menos – sua melhor semana, até então, foi de R$ 585 –, vai largar. Mas, pai de dois filhos, reconhece que encontrar um emprego formal não tem sido fácil. Para ele, a maioria das vagas hoje acaba selecionando pessoas por indicação. “Posso até ficar no aplicativo para ter uma renda extra, mas não quero fazer disso o meu sustento. O trânsito é feroz. A cada momento que você senta para rodar em uma moto, você põe sua vida em risco”, reflete ele, que prefere só usar um único app. Desde que começou, sua escolha é o Uber Eats. Através da assessoria, o Uber Eats informou que oferece gratuitamente ao entregador parceiro um seguro com cobertura de até R$ 100 mil em caso de acidentes pessoais que ocorram durante as entregas. Outra parceria dá acesso ainda ao Vale Saúde Sempre, um cartão pré-pago com desconto em atendimentos médicos e exames laboratoriais.
Empoderados O entregador Leandro Bispo, 31, triplicou sua renda deixando a jardinagem, como autônomo. Não tinha um salário fixo. Em um mês, tirava R$ 1,5 mil; no outro, R$ 900. Mas, há quase um ano, recebeu a indicação de um amigo que já fazia corridas por aplicativo. O colega prometeu que ele ganharia mais e foi o bastante para convencê-lo a se inscrever no Ifood.
Ele, que tinha uma moto por lazer, passou a usá-la pela primeira vez para o trabalho. O app especializado em entrega de comida tem três faixas de horário: das 11h às 15h, das 15h às 18h e das 18h às 23h. Normalmente, Leandro trabalha das 11h às 18h, mas não é raro ficar direto, das 11h às 23h. “Eu consigo tirar três vezes mais do que antes, por volta de R$ 3 mil. Esse mês, especificamente, cheguei a tirar R$ 5 mil, porque peguei muito turno de 11h às 23h e, para mim, foi muito bom”, revela o entregador, que mora na Boca do Rio e costuma transitar, principalmente, entre os bairros da Pituba, Itaigara, Armação e Rio Vermelho. Há quase um ano fazendo entregas por app, Leandro reformou a casa, trocou a moto e colocou o filho em escola particular (Foto: Marina Silva/CORREIO) Nos dias de turno ‘ampliado’, estima fazer entre 20 e 25 entregas. Sua meta diária é de R$ 150. No início, rodava com uma moto ano 2010, mas, esse ano, trocou por uma de modelo 2018. Mais econômica, consegue rodar o dia inteiro com apenas R$ 10 de gasolina. O lucro, estima, é de mais de 90%.
A principal mudança, para ele, não foi a troca do veículo, mas colocar o filho de 7 anos em uma escola particular. Além disso, reformou a casa e ainda consegue ter momentos de lazer com o menino. “Antes do Ifood, eu ia para o shopping com ele e tinha que escolher entre levá-lo para merendar ou só ir nos brinquedos. Agora ele pode ir nos dois. Agradeço a Deus pelo Ifood”, diz o entregador, que não usa outras plataformas.
Para a entregadora Silvânia de Jesus, 38, o trabalho foi quase uma superação. Já estava há mais de um ano sem emprego, depois de sair de uma fábrica de calcinhas. Não sabia mais onde procurar, quando, há dois meses, viu uma mulher numa moto na rua. Mas não qualquer moto: a moça carregava uma das ‘bags’ tipo baú, com a logo de uma das empresas de entrega. “Pensei: se ela pode, também posso. Não é só homem, não”, lembra Silvânia, enquanto espera um pedido ficar pronto em uma lanchonete nas proximidades da Orla da Barra.A conversa teve que ser interrompida alguns instantes depois porque o sanduíche ficara pronto. Só voltou a ter um tempo para conversar com o CORREIO na manhã do dia seguinte, antes de voltar à maratona das corridas.
Logo ela, que nunca tinha trabalhado com entrega. Mas Silvânia tinha duas vantagens: já tinha habilitação há três anos e uma moto na garagem. Seus horários são um pouco diferentes. Começa às 9h e vai até às 18h. Acaba perdendo boa parte dos pedidos da noite – um dos horários mais movimentados – por um motivo justo. É no turno da noite que ela estuda. Cursa o segundo ano do Ensino Médio.
Casada e mãe de uma filha de 16 anos, a maior parte do sustento da cada ainda vem do salário do marido. Até então, o que ganhou nos dois primeiros meses foi destinado a despesas extras, inclusive o lazer da família. No primeiro mês, sem ter ido todos os dias, conseguiu faturar R$ 800. Nos 19 primeiros dias do segundo, já tinha um saldo melhor: passava dos R$ 1,2 mil. Silvânia começou há dois meses, depois de passar um ano sem trabalhar (Foto: Marina Silva/CORREIO) A meta é sempre de R$ 70 por dia – R$ 20 que deixa para a gasolina e R$ 50 para si. Se passar disso, ótimo. “Por enquanto, estou gostando. Não é fácil, porque a gente encontra várias situações no trânsito. Tem motorista que não respeita a gente, principalmente na chuva. Tem que ter muito cuidado e atenção”, pondera.
Ela reconhece que mulheres entregadoras ainda são poucas. Diz saber que existem, mas nunca encontrou nenhuma. Porém, Silvânia está pessoalmente disposta a mudar essa realidade. Desde que começou, vive chamando mulheres que conhece que tenham moto. “Falo, ‘bora, é bom, vale a pena no tempo extra’. Você ainda tem a vantagem de conhecer a cidade”. Hoje, Silvânia roda com dois apps – Ifood e Rappi. Está esperando ser aprovada no Uber Eats para começar o terceiro.
Sustento e complemento Do alto de sua bicicleta, o jovem Jônatas de Jesus, 19, não sabe nem estimar quantos quilômetros pedala diariamente. Oscila, por dia, entre 50 e 80 quilômetros. Só para ir de Cosme de Farias, onde mora, até a Barra, onde costuma esperar pelos pedidos, são quase 10. Para aguentar o pique, ele, que trabalha das 11h às 23h, acorda às 5h para fazer exercícios.
Sai para correr diariamente por uma hora. Depois, volta a dormir até a hora de encarar as ruas da cidade. Com um boné e fones de ouvido, faz todos os percursos. Há quatro anos, tentava conseguir algum emprego para ajudar os pais. Em casa, a mãe e o pai são aposentados.
“Comecei há um mês, mesmo sem ter feito entrega antes. É a falta de oportunidade, né? Aí, a Uber (Eats) garante a oportunidade. Vi na rua, me interessei e fui atrás”, conta ele, que, desde então, trabalha de domingo a domingo. Em todo esse período, não teve uma única folga.
Ao contrário dos colegas de profissão que param de trabalhar quando começa a chover, Jônatas não desanima com o tempo. Vê, na chuva, uma oportunidade. “É quando está chovendo que a gente ganha mais”, explica ele, que faz, em média, R$ 300 por semana. Cada entrega costuma variar entre R$ 4 e R$ 6, mas, quando há tarifa dinâmica – quando a demanda está alta e há menos entregadores disponíveis –, é possível ganhar até R$ 12, R$ 15. Jônatas sai de Cosme de Farias pedalando até a Barra para receber os pedidos (Foto: Marina Silva/CORREIO) Mas ele reconhece que a vida dos entregadores de bike não é mais fácil do que os que fazem o mesmo trabalho por moto. Os motociclistas, acreditam, pegam mais corridas. Enquanto um, na bicicleta, pode levar até uma hora para fazer uma entrega, os motociclistas podem fazer uma em até dez minutos.“E, no trânsito, tem gente que é maldosa. Muitos motoristas jogam o carro em cima da gente que está trabalhando. Você tem que ser atento”, alerta Jônatas. Já a realidade do entregador Israel Nascimento, 23, é um tanto diferente. Antes de ser entregador, já era marinheiro. Com uma escala de trabalho de 12 horas a cada 36 horas, ele viu, nas entregas, a chance de complementar a renda. No verão, está acostumado a trabalhar como freelancer em saídas de terra.
O problema é que, na alta estação, esse ‘freelancer’ praticamente não existe. No trabalho com barcos, já recebe R$ 1,1 mil, com INSS, FGTS, 13º salário e férias. Por isso, ele encara jornadas menores nas entregas. Começa pouco antes das 12h e vai até 15h. Depois, volta às 18h e fica até 22h, 23h. Israel era o único com emprego formal: marinheiro, faz entregas nas horas livres (Foto: Marina Silva/CORREIO) Ele, que usa o Uber Eats, escolhe os horários de maior movimentação nos aplicativos. Por dia, tenta fazer entre R$ 35 e R$ 50, pelo menos, mas já chegou a faturar R$ 80. Em uma semana completa, ganha cerca de R$ 200.“Tenho um filho de 2 anos e, na casa, moram ainda minha esposa e minha sogra. Antes de sair de casa, faço alongamento, porque sinto o cansaço no corpo”, revela ele, que começou há cerca de um mês. Israel usa uma blusa de proteção aos raios UV e tem uma capa de chuva. É mais do que a maioria dos entregadores tem. Segundo os ouvidos pela reportagem, as empresas não disponibilizam esses materiais gratuitamente. Até as bags com a logo precisam ser compradas – hoje, em alguns dos apps, chegam a R$ 100, sendo pagas em quatro parcelas de R$ 25.
Contradições Para o professor Bruno Durães, coordenador do curso de Licenciatura em Ciências Sociais e professor permanente do mestrado em Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), a uberização é um processo contraditório. No início, pode parecer algo fantástico, até mesmo encantador. De fato, reconhece, facilita o acesso aos pedidos e gera uma amplitude para os serviços, com estímulo ao consumo. No entanto, existem elementos de controle nunca vistos.
Isso porque os apps funcionam com uma lógica de vigilância e de algoritmos que pode avaliar o entregador e até mesmo expulsá-lo do sistema. “E tem uma concorrência forte entre os próprios trabalhadores e trabalhadoras, que talvez não fosse tão vivenciado antes quanto agora. Isso quebra a organização coletiva dessas pessoas”, explica Durães, que é pesquisador do Centro de Estudos e Pequisas em Humanidades da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Ou seja: se, antes, os trabalhadores poderiam se organizar em associações ou mesmo em sindicatos, reivindicando condições como um piso salarial mínimo, por exemplo, é difícil que isso aconteça nesse contexto.
“Tudo isso pode cair por terra, de forma volátil. É a ideia do ‘se você não quer, outro quer’. E de forma digital, sem precisar de interferência de nenhuma associação. Se o entregador tradicional não quiser continuar na atividade, terão inúmeras outras pessoas que vão entrar”.
De fato, ficou mais barato entrar em um negócio – basta ter um celular e uma bicicleta. Para o professor, isso não deve ser desprezado e precisa ser levado em conta para o próprio entendimento dessa nova realidade. Porém, esse mesmo aspecto quebra uma barreira que protegia a profissão.
Essa ‘barreira’ seria o que resguarda a ideia de que nem todos podem virar tudo. “Por um lado, isso é interessante num momento de calamidade, mas tem aí um elemento perigosíssimo, que é o da concorrência selvagem entre os trabalhadores. Todo mundo está correndo para bater pontuação, metas, ser bem avaliado. É um grau de estresse e exigência nunca antes imaginado para esse tipo de atividade”.
Posicionamentos De forma geral, nem a Rappi, nem o Ifood e a Uber Eats divulgam dados de entregadores por cidade. O Ifood, que existe há oito anos, informou que está presente em mais de 500 cidades - inclusive mais de 30 na Bahia, desde 2012, como Salvador, Vitória da Conquista, Porto Seguro e Feira de Santana. Em todo o país, são mais de 120 mil entregadores. "Assim como outras empresas do segmento da economia compartilhada, o iFood atua como um marketplace que conecta restaurantes aos parceiros de entrega, gerando oportunidade de renda para cerca de 120 mil entregadores independentes no país. Nesse modelo de atuação, os parceiros podem ficar disponíveis para entregas quando acharem mais conveniente e, inclusive, operam também por meio de outras plataformas", afirmou o Ifood, em nota.O valor das entregas, segundo o Ifood, leva em consideração variáveis que vão desde a coleta do pedido até a distância percorrida e a conclusão da entrega. "Os parceiros de entrega operam de forma independente, mas a empresa investe constantemente em tecnologias e outros mecanismos para melhorar a experiência dos parceiros de entrega”, completam.
Desde novembro do ano passado, a empresa tem testado os chamados “locais de descompressão” – como são conhecidos ambientes oferecidos, por empresas, para que os trabalhadores se desconectem do trabalho e relaxem um pouco. Os locais estão disponíveis em São Paulo e Campinas e o Ifood informou que estuda a forma de ampliá-los. Em São Paulo e Campinas, o Ifood já tem locais de descompressão (Foto: Divulgação) Além disso, os sistemas usados já delimitam o raio de entrega para cada restaurante, identificando o entregador mais próximo. A distância média das rotas para motociclistas é de cinco quilômetros; para ciclistas, é de três. "Outras ações incluem campanhas que estimulam boas práticas por meio de vídeos educativos e trilhas de conhecimento, que o iFood iniciou durante o Maio Amarelo e que serão estendidos em caráter permanente".
A Rappi, por sua vez, informou que tem mais de 100 mil entregadores cadastrados na América Latina, além de 80 mil parceiros comerciais no mesmo território. Em nota, a empresa destacou a oportunidade de os parceiros gerarem renda extra e a possibilidade de se conectar e desconectar quando quiserem, sem horário fixo ou exclusividade, podendo encaixar em seu cotidiano da forma que preferirem. “Os entregadores cadastrados na Rappi são profissionais autônomos que recebem um valor de frete de acordo com as entregas realizadas. O frete não é um valor fixo, podendo variar de acordo com o clima, dia da semana, horário, zona da entrega, distância percorrida e complexidade do pedido”, informam. Além do valor da entrega, o trabalhador pode receber uma gorjeta definida pelo cliente. Se houver algum problema ou acidente, a Rappi tem um chat para que os profissionais se comuniquem com o suporte em tempo real. Eles podem reportar qualquer fato ocorrido, assim como por email. A Rappi conta ainda com um centro de atendimento aos entregadores parceiros para que possam resolver problemas pessoalmente, caso achem necessário.
“Queremos contribuir socialmente com estes agentes transformadores das cidades (motoboys), prestigiando esta atividade para que eles recebam a compensação financeira devida e alcancem seus objetivos pessoais e profissionais. Como empresa entendemos que temos um papel importante na economia ao oferecer a oportunidade de geração de renda complementar aos entregadores”, reforçam.
Já o Uber Eats destacou que quem quer fazer entregas pelo aplicativo precisa, no ato do cadastramento no app, apresentar a Carteira Nacional de Habilitação contendo uma observação chamada EAR - Exerce Atividade Remunerada. A observação é concedida pelo Detran depois de exames de aptidão física, mental e psicotécnico. Para os ciclistas e pedestres, é exigido documento que comprove que têm mais de 18 anos.
Assim como os motoristas da Uber, os entregadores do Uber Eats passam pela mesma checagem de antecedentes criminais.“O sistema do Uber Eats foi criado para dar transparência ao processo de produção e entrega da refeição, de modo que o usuário esteja permanentemente informado do progresso tanto do restaurante quanto do entregador que lhe estão prestando serviço, aliviando a sua ansiedade”, dizem. O valor da entrega também varia de acordo com a distância percorrida. Os parceiros também têm acesso a descontos, por exemplo, de 5% em combustíveis na rede Ipiranga. Claudemir, Jonatas e Israel aguardam, em um shopping da Barra, pela chegada dos pedidos (Foto: Marina Silva/CORREIO) Pedidos de restaurantes aumentam com delivery, mas entidade alerta: 'taxas são altas' Entre bares e restaurantes, há praticamente um consenso: o delivery só cresce. Os aplicativos trouxeram um novo mercado – se, até então, as entregas só eram lembradas pelas tradicionais pizzas, a tecnologia expandiu para estabelecimentos de todos os tipos. “A gente é 100% a favor dos aplicativos, porque, antes, você precisava de um apelo de marketing muito forte para o delivery ser lembrado. Hoje, quando você está em casa, recebe uma mensagem dizendo que teve desconto para pedir”, afirma o presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes – Seccional Bahia (Abrasel-BA), Daniel Alves. No entanto, o custo é alto. Segundo Alves, ao mesmo tempo que é mais fácil consumir produtos de um restaurante por delivery, parte dos clientes também deixa de frequentar o espaço físico do local. “As taxas dos apps são altíssimas. Chegam a 28% do valor do pedido. Por isso, muita gente teve que mudar a operação”.
Um exemplo dessa mudança seria tirar alguns produtos do cardápio virtual – analisando as margens de lucro de algumas das ofertas, por exemplo.“Num momento que você tem uma empresa que tira 26%, 27% do seu faturamento, você, na verdade, tem que escolher quais pratos vender”, diz. Ele reconhece que, mesmo atualmente, alguns estabelecimentos têm mantido dois tipos de entregadores: pelo aplicativo e alguns vinculados diretamente à empresa. “Ainda tem muita gente que não usa aplicativo, por mais que esteja em crescimento. A legislação trabalhista é complicada, então acho que há pessoas que tentam fazer a entrega sem ser por app, mas a tendência é que a pessoa se entregue completamente”, avalia.
Uma saída, para ele, seria fazer com que os números do alvará do estabelecimento fiquem expostos para os usuários, assim como o telefone, para que o cliente tenha a possibilidade de entrar em contato diretamente com o local. Nem sempre, explica, o cliente conhece o restaurante.
“Se tem um problema de contaminação, termina resvalando em todos os restaurantes. A gente tem que cuidar do nosso mercado, porque pega o segmento como um todo”.
O caso da hamburgueria Black Pepper, no Cidade Jardim, é emblemático. O estabelecimento foi aberto em maio do ano passado e, em setembro, começou a funcionar com o delivery. Inicialmente, trabalhavam com as três plataformas até que, em janeiro, optaram por ficar apenas com o Ifood.
De acordo com um dos sócios da hamburgueria, Sérgio Gomes, a decisão foi devido a critérios como visibilidade e retorno dos clientes. Hoje, de segunda-feira a quinta-feira, o delivery representa entre 35% e 40 das vendas da loja. De sexta a domingo, o índice fica entre 25% e 30%.
"É quando tem o maior fluxo no salão, mas, ainda assim os números de delivery crescem muito no fim de semana. O delivery cresceu na mesma proporção que as vendas da loja", diz.
O fator primordial para esse aumento, acredita, está relacionado à própria visibilidade, incluindo a possibilidade de os clientes receberem notificações para entrar no aplicativo. Para ele, é graças a esse alcance que conseguem atender clientes que estão em bairros como Barra, Canela, Liberdade e na Cidade Baixa - locais que dificilmente se deslocariam para um bairro mais longe.
Desde que começaram com o delivery, ele nunca pensou em ter entregador próprio."Eu considero que meu negócio principal é fazer comida de qualidade, então, eu quero entregar o melhor hambúrguer possível. Já tenho que gerenciar minha cozinha, salão, gerente, atendentes. A gente oferece uma gama de produtos interessantes e considero que gestão da frota não é minha especialidade. O app oferece isso de forma simplificada", diz Sérgio Gomes, sócio da Black Pepper. Leandro Bispo faz entrega há um ano; no mês passado, chegou a faturar R$ 5 mil (Foto:Marina Silva/CORREIO) MPT diz que relação com empresas de app se configura como vínculo de trabalho; associação diz que trabalhadores têm flexibilidade para escolher Ao contrário das empresas, que tratam a relação com os entregadores como uma 'parceria', o Ministério Público do Trabalho (MPT) entende que existe um vínculo que pode ser configurado como de emprego. Esta semana, inclusive, o MPT em São Paulo chegou a ajuizar duas ações civis públicas contra os aplicativos de entrega por entender que atuam na ilegalidade ao se omitir sobre o vínculo de trabalho.
De acordo com a procuradora do trabalho Juliana Corbal, do MPT na Bahia, existem diversas investigações em todo o país para verificar justamente a ocorrência de fraude nas relações do trabalho. O órgão tem um grupo de trabalho para orientar e coordenar as atividades relacionadas com as novas tecnologias e possíveis efeitos nas relações de trabalho.
Ela destaca que as plataformas digitais costumam identificar os trabalhadores como autônomos ou microempreendedores individuais."Desta forma, em nítida fraude, escondem a relação que ocorre na prática, em que há evidente subordinação entre prestador de serviço e empresa que oferece o serviço, evidenciada por meio do algoritmo, que permite o controle por meios telemáticos a que se refere o art. 6º, parágrafo único da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho)", diz Juliana. A uberização, para o MPT, leva à precarização das categorias, que deixam de se relacionar com as empresas de maneira formal e não têm direitos reconhecidos. Segundo a procuradora do trabalho, os trabalhadores passam a ter atividade determinada pelo algoritmo da ferramenta - com ampla produtividade, mas menor remuneração, uma vez que precisam arcar com os gastos do veículo, combustível, tributos, seguros e outros aspectos.
"No caso dos entregadores de encomendas, que são regidos por uma lei própria – a Lei nº 12.009/2009, que regulamenta o exercício das atividades de motoboy e mototaxista – , é possível afirmar que a uberização afasta os trabalhadores cada vez mais da regulamentação nela prevista, que impõe segurança não apenas para os motoristas, mas também para toda a sociedade, sendo, portanto, objeto de grande preocupação", reforça.
Já o diretor da Associação Brasileira Online to Offline (ABO2O) Marcos Carvalho acredita que os aplicativos vieram para ajudar em um momento de fragilidade econômica do país. Em uma realidade de mais de 13 milhões de desempregados, pondera, as ferramentas se tornaram uma nova alternativa de renda. “A gente tem que avaliar o dinamismo, a liberdade, esse novo formato e o quanto ele traz de benefícios para a sociedade. É uma escolha do cidadão: ter a suposta segurança e outros aspectos da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) ou ter as flexibilidades”, diz ele. A entidade representa 65 empresas de economia colaborativa e plataformas digitais, a exemplo de Ifood, 99, Easy Táxi, e Peixe Urbano. Oliveira acredita que, para a maior parte dos entregadores, o saldo é positivo. Por isso, cita pesquisas como uma divulgada pela Fundação Instituto de Administração (FIA) em abril: de acordo com o estudo, 87% afirmaram ter um aumento significativo de renda depois que passaram a trabalhar com aplicativos. As principais conquistas citadas pelos empregadores são a educação dos filhos, compra de um carro e a reforma ou aquisição da casa própria.
Para ele, porém, não há como retroceder – ou seja, voltar para um momento em que as pessoas não estavam habituadas a usar os aplicativos. “Você vê o quanto de transformação positiva essas plataformas nos trouxeram. Não digo que determinados aspectos não possam ser melhorados, mas isso de discutir modelos de décadas atrás é praticamente incabível”, critica.
Alguns dados sobre entregadores por aplicativo: 29 anos é a idade média dos entregadores; 97,4% se identificam com o gênero masculino; 74,3% têm Ensino Médio Completo. Dos demais, 11,7% concluíram o Ensino Superior ou uma pós-graduação; 88% dos entregadores que trabalham com aplicativos são responsáveis pela principal renda da casa; 90% deles utilizam exclusivamente plataformas digitais para realizar as entregas; 87% dizem ganhar significativamente mais ao utilizar aplicativos; 96% aponta a flexibilidade de horário como um dos principais atrativos para o trabalho; 22 km/h é a velocidade média dos entregadores, segundo as plataformas digitais; 4 horas diárias é o tempo médio que os entregadores ficam conectados, de acordo com as plataformas; 81% afirmam que a quantidade de veículos circulando das ruas é um fator que causa insegurança; Fonte: pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Administração (FIA), encomendada pela Associação Brasileira Online To Offline (ABO2O). O levantamento foi feito entre fevereiro e março de 2019, com 1,5 mil entregadores brasileiros.