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Yumara Rodrigues: O ato final da estrela do teatro baiano


 

A cerimônia de cremação da atriz aconteceu no Cemitério Campo Santo, recheada de aplausos e despedidas

  • Marina Branco

Salvador
Publicado em 03/11/2024 às 21:52:22
Cerimônia de cremação de Yumara Rodrigues. Crédito: Arisson I CORREIO

“O filme não foi cortado. Por que eu estaria fora dos seus pensamentos agora que estou apenas fora de suas vidas? Eu não estou longe, estou apenas do outro lado do caminho”

Essas foram as palavras que se ouviam enquanto a família, os amigos e o mundo do teatro baiano se despediam de uma Yumara Rodrigues. Atriz, artista, amiga, tia e, muitas vezes, mãe, a lenda do teatro brasileiro faleceu no dia de Finados, em 2 de novembro de 2024, aos 90 anos de idade. Ou, como ela gostava de pensar, ‘passou para o outro lado do caminho’.

Sua despedida final foi acompanhada do som que a seguiu por toda a vida - os aplausos de pé, e os gritos de “bravo” para uma das maiores figuras da história do teatro baiano. Em uma cerimônia de cremação realizada no Cemitério Campo Santo, um dia após sua partida, pétalas de rosas caíram sobre ela, acompanhadas do som de uma mensagem para todos que a amam e admiram.

“Que meu nome seja pronunciado como sempre foi, sem nenhum traço de tristeza. A vida continua, linda e bela, como sempre foi”, dizia a mensagem, acompanhada de lágrimas em um adeus que não se pode dizer que foi triste. Com muita música, admiração, sorrisos e abraços, sua cerimônia foi uma verdadeira homenagem à potência que ela foi, alegrando palcos e telas com seu brilho.

Nas primeiras fileiras e nos últimos carinhos em seu rosto, estavam os sobrinhos, que a vida inteira a tiveram como amiga, ou quase mãe. A atriz que, como conta sua família, abriu mão de casamento e filhos pelo amor ao teatro, encontrou nos sobrinhos e primos aqueles que ficaram com ela até o final de sua vida.

Cerimônia de cremação de Yumara Rodrigues. Crédito: Arisson I CORREIO

Foram eles que estiveram em seu quarto, em casa, em seus momentos finais de uma luta contra a suspeita de câncer de pulmão. Já sem tratamentos indicados, ela passou os últimos dias em casa, rodeada do amor que plantou ao longo de toda a vida.

Lygia Quintella Lins

Lygia Quintella Lins (Conde, Bahia, 1934), como era chamada por sua família, onde além da estrela Yumara, era uma fonte inesgotável de amor, ouviu todo o carinho dos que a amavam se manifestar pela última vez em sua cama, na véspera de sua partida.

“Oi, Lygia, eu sei que você não está vendo, mas deve estar ouvindo. Eu quero que você saiba que, haja o que houver, você vai estar sempre no meu coração. Que Deus acompanhe você, hoje e sempre. Que você seja sempre, por onde andar, essa pessoa maravilhosa, tão querida, tão amada pelas pessoas boas”, dizia a mensagem enviada a ela por Terezinha Quintana, sua prima.

Mas as palavras de amor ainda estavam longe de se encerrarem - na cerimônia, qualquer um que apurasse o ouvido poderia ouvir os depoimentos de carinho a Lygia.

“Ela é como minha irmã, minha amiga, minha prima, meu tudo. Ela se deu por inteira para a família e para todos os amigos, para as pessoas que precisavam dela. Ela é, mais do que tudo, uma vitoriosa”, elogiou Terezinha, prima de Lygia.

“Para mim, ela era irmã, era amiga, e muitas vezes, era uma mãe, acho que pra muita gente. Em tudo que fazia, ela se jogava, e daí vem não só a grande atriz que ela era, que amava a profissão, mas também a boa filha, boa irmã, boa amiga”, disse Patrícia, outra prima da atriz.

Cerimônia de cremação de Yumara Rodrigues. Crédito: Arisson I CORREIO

“Ela era intensa, não sabia fazer nada mais ou menos. Era intensa em tudo - nas relações, no sentimento, na solidariedade, onde ela se sentia feliz em agradar os outros. Ela se preocupava com os menos favorecidos, e nunca fazia propaganda disso, mas sempre ajudava doando para instituições. Ajudava até mesmo quando não podia, pedindo o que era preciso aos que podiam oferecer, fazendo isso para o bem dos outros. Ela não tinha vaidade nenhuma se fosse para agradar, fazer alguém feliz, ajudar. Ela era amor”, completou.

Para Dorgália, esposa de seu sobrinho que morava no apartamento ao lado do de Lygia, a palavra que a descreve é admiração. “Ela foi uma mulher altiva, forte, à frente do tempo dela. Uma que escolheu não casar, não ter filhos, para ser livre, para se dedicar ao teatro. Uma mulher admirável, boa e justa. Uma que vai me fazer muita falta, mas também vai fazer falta ao teatro, aos amigos e ao mundo”, homenageou ela.

Já o marido de Dorgália, José Carlos Lins, pôde ver todo o brilho da tia e do teatro de perto ao longo da vida. “Pude acompanhar toda a trajetória bonita de arte dela, dos movimentos de teatro, das celebrações, dos saraus que ela fazia na casa dela. Ela tinha um prazer de receber os amigos de teatro, as pessoas da música, e ela só era alegria. Ela amava essas celebrações, que eram tudo pra ela”, contou.

“Minha tia foi uma mulher que se dedicou a vida inteira ao teatro, dedicou-lhe muita coisa e viveu para o teatro. Ela adorava o que ela fazia. Tinha uma determinação muito grande, personalidade forte e era perfeccionista. Gostava de fazer as coisas com bastante carinho, bastante amor e perfeição”, afirmou ele.

Cerimônia de cremação de Yumara Rodrigues. Crédito: Arisson I CORREIO

Esse brilho, dedicação e vontade no trabalho saíam até mesmo das peças roteirizadas, e tocavam as vidas reais que se entrelaçavam com a dela pelos palcos. É o caso de Gideon Rosa, parceiro de tantos espetáculos.

“Quando cheguei aqui na cidade, ela era uma atriz que acolhia. Muito generosa, compartilhava tudo que sabia. Ela não era uma atriz qualquer, era muito, muito grande. Sabia coisas da cena e compartilhava isso com uma generosidade imensa. Tinha um temperamento forte, e trabalhar com ela era um privilégio, era sempre uma aula”, comentou ele.

Cerimônia de cremação de Yumara Rodrigues. Crédito: Arisson I CORREIO

Yumara Rodrigues

Ao longo da vida, a atriz, diretora e produtora marcou eternamente o universo das artes cênicas baiano, onde chegou, ainda jovem e nunca tímida, pelo magistério que começou na cidade de Salvador. Tal qual um filme ou peça de teatro, desde o começo sua história nunca foi comum - no início de sua carreira, aos 24 anos, ela fez seu primeiro teste para um papel grande com o diretor Graça Mello, buscando integrar o elenco do espetáculo que inaugurou o famoso Teatro Castro Alves.

A peça que levaria o brilho de Yumara aos palcos recém-criados de um dos maiores teatros da cidade se chamava “Um Bonde Chamado Desejo”, escrita por Tennessee Williams. Mas, como em todo roteiro surpreendente, as coisas não saíram como planejado. Antes da grande estreia, o teatro pegou fogo, cancelando a programação.

A próxima história à qual Yumara deu vida foi “O Canto do Cisne” de Tchekhov, em 1960. De lá, seguiu para “A Moratória”, de Jorge Andrade, onde recebeu seu primeiro grande prêmio como atriz - a medalha de ouro de melhor atriz no primeiro Festival do Autor Brasileiro, em Natal, no Rio Grande do Norte.

Foi esse ouro que levou Yumara às telonas, quando saiu dos palcos e passou a viver também personagens em tela plana. Novamente pioneira, ela foi convidada a estrelar a primeira novela da TV Itapoan, que havia acabado de chegar a Salvador. Na obra “Colégio Interno”, de Luiz Maranhão, ela uniu os dois lados de sua profissão, gravando uma novela apresentada ao vivo, com toda a vivacidade que ela levava aos palcos. Em seguida, foi para o mundo do cinema, com “O Pagador de Promessas”, filme de Anselmo Duarte.

Nunca deixando o teatro de lado, Yumara iniciou em 1965 sua história com o Teatro Vila Velha, ao qual levou histórias desafiando a censura dos anos de chumbo da ditadura militar brasileira, e misturando arte com voz e política. Lá, ela integrou o elenco da peça “O Zoológico de Vidro”, com a Companhia Baiana de Comédias, pela qual recebeu mais um prêmio de melhor atriz.

Entre Marcio Meirelles, Amir Haddad e Luiz Mendonça, Yumara trabalhou ao lado de diretores marcados na história do país, buscando a liberdade de expressão nos palcos de teatros como o Dzi Croquettes. Seu nome ficou marcado em espetáculos inesquecíveis, como as peças “O Pelicano", “Stopem Stopem” e “A Flor dos Vinicius”.

Foi aos 47 anos que Yumara decidiu viver outro lado do teatro - em 1981, a atriz fez um concurso na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, e se torna atriz na Companhia de Teatro da Ufba. Como em todos os lugares onde se aventurou, ela preencheu o novo desafio com sua vivacidade, concluindo uma graduação em direção teatral na Ufba três anos depois.

Nessa mesma fase da vida, Yumara seguiu atuando no teatro, no cinema e na televisão, e se tornou o destaque do ano do jornal Correio da Bahia em 1983, por sua atuação em A Mais Forte, de August Strindberg, personagem que repetiu em 1997 em uma nova versão da obra.

Yumara Rodrigues. Crédito: Divulgação/Vila Velha

Sua despedida dos palcos foi no Teatro Vila Velha, onde em 2023, um ano antes de sua partida, foi homenageada na leitura cênica de “Os Dias Lindos de Celina Bonsucesso”, peça de Paulo Henrique Alcântara. Nesse adeus final, a atriz, diretora e produtora finalizou seu legado ao teatro baiano, que segue para sempre marcado. Em sua carreira, Yumara chegou a trabalhar até mesmo na Rede Globo, no Rio de Janeiro - mas decidiu voltar à Bahia por amor à sua terra.

É como comentou, ao se despedir dela em sua cremação, Gideon Rosa, um de seus colegas mais próximos durante toda a sua história com os palcos: “O Brasil deveria ter conhecido mais essa atriz, mas ela fez o que pôde. Quanto ao teatro baiano, eu espero que as novas gerações jamais esqueçam quem foi Yumara, e o quanto ela foi importante para a arte deste mundo”.