Uma latinha nada inocente: alto consumo de refrigerantes entre adolescentes é fator de risco cardiovascular
Dá para diminuir a ingestão? Especialistas apontam cinco dicas para ajudar na redução de bebidas açucaradas nessa faixa etária
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Priscila Natividade
priscila.oliveira@redebahia.com.br
Coca, coquinha, refri. Gelada com ou sem limão. Aquele barulho borbulhante da latinha abrindo pode parecer irresistível até alguém parar e ler o rótulo. Está lá – em letras nada garrafais, a gente deve admitir – um monte de açúcar, cafeína, corante, aromatizante e extrato de mais alguma coisa. Gerações e mais gerações vão dizer que a Coca-Cola vai sempre ter o seu lugar na mesa do almoço de domingo, no lanche diário na cantina da escola ou seu espaço cativo na geladeira de casa com abastecimento garantido. Porém, é aí que mora o perigo, sobretudo, para os adolescentes.
Segundo um novo estudo publicado na última edição do International Journal of Cardiovascular Sciences (IJCS), periódico da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), adolescentes brasileiros que consomem em média 450 ml de refrigerantes por dia (um pouco mais do que uma latinha) apresentam risco de desenvolverem doenças cardiovasculares. No artigo Association between Cardiovascular Risk in Adolescents and Daily Consumption of Soft Drinks: a Brazilian National Study (Associação entre Risco Cardiovascular em Adolescentes e Consumo Diário de Refrigerantes: um Estudo Nacional Brasileiro), a análise mostra que o alto consumo está associado ao risco de hipertensão, sobrepeso e obesidade em adolescentes com idades entre 12 e 17 anos.
“O que mais chama atenção na pesquisa é o elevado consumo diário de bebidas açucaradas por adolescentes e o impacto na saúde a curto e longo prazo. Estamos falando de riscos cardiovasculares, associados ao aumento de peso, dislipidemias (nível elevado de gordura no sangue), hipertensão arterial e hiperglicemia em decorrência do estilo de vida sedentário e consumo diário desse tipo de bebida, em especial as industrializadas”, explica a principal autora do artigo e doutora em Ciência da Nutrição pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Ana Flávia Gomes de Britto Neves.
Ana Flávia Gomes de Britto Neves
"O que mais chama atenção na pesquisa é o elevado consumo diário de bebidas açucaradas por adolescentes e o impacto na saúde a curto e longo prazo."
A pesquisa avaliou informações de quase 37 mil jovens de todo país a partir de dados disponibilizados pelo Estudo de Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (ERICA), projeto em parceria do Ministério da Saúde com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O recorte temporal da análise abrange os anos entre 2013 e 2014. “A informação existe, mas ainda há muito a ser feito. A desigualdade econômica, facilidade de acesso e investimento das empresas no marketing para venda de seus produtos, sem dúvida, ainda são gargalos que dificultam a difusão dessa consciência”, opina.
Nem diet, nem light
Foi durante a pandemia que a pedagoga Juliana Oliveira notou que o refrigerante que tinha na geladeira terminava muito antes do previsto. Filha de Juliana, Ana Luiza Oliveira, de 18 anos, estava tomando de quatro a cinco latinhas por dia. “Observei que ela tomava refrigerante até no café da manhã. Tentei fazer com que diminuísse mostrando o quão prejudicial o refrigerante é para a saúde a longo prazo. Cheguei a diminuir a quantidade que costumava comprar, no entanto, Luiza foi ficando mais ansiosa”, afirma.
Existe um limite mínimo para consumo de refrigerante? Quem responde é a pesquisadora e doutora em Ciência da Nutrição pela UFPB, Ana Flávia Gomes de Britto Neves: “Não acredito em limite de segurança para consumo de um produto isolado, mas na mudança de um estilo de vida. A promoção da saúde e a diminuição de riscos cardiovasculares envolvem múltiplos fatores”.
E se ainda resta alguma dúvida se o refrigerante diet ou light pode ser uma saída, Ana Flávia reforça que não. “Um destaque da pesquisa foi a conclusão que possivelmente os adolescentes que já possuíam essas condições consumiam menos refrigerantes tradicionais, substituindo por outras bebidas industrializadas, como as versões diet e light. Surgem oportunidades de bebidas açucaradas industrializadas substitutivas dos refrigerantes que parecem saudáveis, mas o que vemos é que fogem dessa proposta”.
E nem o suquinho de caixinha e as bebidas lácteas escapam. “Assim como os refrigerantes, bebidas lácteas e leites fermentados industrializados aumentam as calorias na dieta e podem favorecer hábitos alimentares não saudáveis”.
A auxiliar administrativa Ingrid Santos é mãe de Sivanildo Neto, de 13 anos. Mesmo sem o refrigerante entrar na lista de compras de casa, ela percebeu que o filho consumia muito a bebida quando ia em algum aniversário, restaurante ou na casa de amigos. “Quando ele era menor fugia para casa da avó para consumir refrigerante escondido de mim. Até que ele começou a apresentar o açúcar alto e alteração nos triglicérides nos exames periódicos. Foi aí que decidi tomar uma atitude mais séria e levei ele ao nutricionista. Eu e o pai dele também nos consultamos e voltamos dispostos a colocar em prática um plano alimentar mais saudável”.
Alerta
Dados divulgados no início da semana pela consultoria global especializada em insigths de consumo, a Kantar, mostram que ainda falta um pouco para que o setor de bebidas volte ao nível de consumo pré-pandêmico. No caso dos refrigerantes, no primeiro trimestre de 2020, o produto tinha 53% de valor no mercado mundial. Caiu para 39% no mesmo período de 2021, subiu para 49% no ano seguinte e permanece com a mesma porcentagem agora.
Ainda assim, marcas crescem na contramão, muito por conta do consumo fora de casa, conforme aponta o levantamento. E adivinha? Das empresas mais escolhidas mundialmente, Coca-Cola e Fanta são as principais favorecidas. A primeira registrou 2442 CRP (Consumer Reach Point) em 2022, enquanto a segunda marcou 473 CRP. A métrica original da Kantar mensura quantos indivíduos estão comprando produtos de determinada companhia e com que frequência isso ocorre. Os dados acima fazem parte do último relatório OOH Barômetro, que tem foco no consumo global de lanches e bebidas não alcoólicas fora de casa.
Para a presidente do Departamento de Medicina do Adolescente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Alda Elizabeth B. Iglesias Azevedo, os dados surpreendem. Jovens acabam desenvolvendo fatores de risco cardiovascular muito precocemente, doença que é a principal causa de morte no Brasil.
“Entre os 20 alimentos mais consumidos pelos adolescentes brasileiros, os refrigerantes estão entre os seis primeiros, à frente das hortaliças, e as frutas sequer aparecem na lista. Nesse cenário, o aumento de riscos cardiovasculares em adolescentes tem se configurado como um problema de saúde pública”.
Alda Elizabeth B. Iglesias Azevedo
"Nesse cenário, o aumento de riscos cardiovasculares em adolescentes tem se configurado como um problema de saúde pública"
Embora a divulgação desses produtos em meios de comunicação tenha sido reduzida, há muito que se fazer para frear a publicidade dirigida às crianças e adolescentes assim como um longo trabalho de conscientização, além de políticas públicas que possam frear o consumo exagerado. “Entretanto, sabemos que alimentação não é o único fator que predispõe os riscos cardiovasculares. Por isso, estudos que levem em consideração tempo em tela, arbitrariedade e estilo de vida, atividade física e consumo de alimentos in natura seriam interessantes”.
Apenas em 2022, foram registradas na Bahia 49 mortes por doenças cardiovasculares em jovens adultos - entre 20 e 24 anos. Esse ano, até o momento, os números somam 14 casos. Os dados são da Secretaria de Saúde do Estado.
Freio
Segundo dados divulgados no primeiro trimestre do ano pela Federação Mundial de Obesidade (WOF), o número de crianças com obesidade no mundo pode mais que dobrar até 2035, quando comprado aos níveis de 2020. Estimativa que representa 400 milhões de crianças com quadro de obesidade. No Brasil, a projeção de crescimento anual é de 4,4%, o que é considerado um estado de alerta muito alto.
Com base no Mapa da Obesidade da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica, o Ministério da Saúde e a Organização Panamericana da Saúde apontam que 12,9% das crianças brasileiras entre 5 e 9 anos de idade têm obesidade, assim como 7% dos adolescentes na faixa etária de 12 a 17 anos.
No consultório da hebiatra Lindnalva Borges Gonçalves, é comum chegar justificativas para o consumo de bebidas açucaradas como as refeições rápidas no ambiente domiciliar, falta de tempo por conta do trabalho, praticidade e fast food. “Trabalho com adolescentes e jovens de 10 a 24 anos e é uma faixa etária que, sim, extrapola um pouco. Hoje o que a gente vê é que essas bebidas açucaradas - independente dos refrigerantes - são preponderantes no Brasil”.
Entretanto, ao contrário do que os pais costumam pensar a relação de consumo exagerado refrigerante não é uma questão de dependência, mas sim de preferência de paladar. “Ou seja, o uso regular desde a infância, tornam essas bebidas parte do cotidiano. Além disso, reforça a incorporação como algo palatável e refrescante”. Por isso, a necessidade de intervenção passa tanto pela rotina do adolescente, como também da família, como pontua Lindnalva:
“Reduzir o consumo é um compromisso que as escolas precisam assumir também. Porém, dentro de casa é fundamental que os pais tenham acesso a informações sobre os riscos para que orientem seus filhos e refaçam rotinas alimentares da família”.
Lindnalva Borges Gonçalves
"O uso regular desde a infância, tornam essas bebidas parte do cotidiano. Além disso, reforça a incorporação como algo palatável e refrescante"
Em nota, a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e bebidas Não-Alcoólicas (ABIR) afirmou que “o aumento da obesidade no país não se deve ao consumo de refrigerantes e bebidas açucaradas”, escreveu. No site da entidade, existe uma lista de compromissos da indústria entre eles a autorregulação sobre marketing para crianças e a oferta de um portfólio amplo com novas opções de diferentes teores calóricos, sabores e embalagens de tamanhos focados na liberdade de escolha do consumidor.
PROJETO DE LEI PREVÊ TAXAÇÃO DE BEBIDAS AÇUCARADAS NO BRASIL
Ainda em 2021, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) já haviam recomendado a tributação de bebidas açucaradas como uma saída capaz de reverter o crescimento da obesidade e das doenças relacionadas a este quadro. Na recomendação, a OPAS, mediante uma pesquisa, revelou que um aumento de 25% no preço de bebidas açucaradas resultante de impostos mais altos provavelmente levaria a uma redução de 34% em seu consumo.
Atualmente, pelo menos 85 países usam alguma medida para reduzir o consumo de refrigerantes, bebidas lácteas com sabor, energéticos, sucos de fruta industrializados. Países como o Chile e o México já haviam adotado a taxação e alcançado um número significativo de diminuição, visando reduzir ainda a frequência de casos de diabetes tipo 2, infartos e aumentar recursos para investir no setor de saúde. Já no Reino Unido, o sugar tax induziu a redução com a reformulação da receita por parte da indústria, representando 83% das reduções associadas ao SDIL (Taxa da Indústria de Refrigerantes) na ingestão calórica semanal da bebida.
Em fevereiro desse ano, a OMS lançou o primeiro manual global com informações e orientações aos governos sobre como implementar a cobrança de impostos sobre esse tipo de bebida. No Brasil, existe um projeto de lei em tramitação no Senado, de autoria do senador Rogério Carvalho (PT/SE), que estabelece a alíquota de 20% sobre refrigerantes e bebidas açucaradas. Aprovada na Comissão de Assuntos Sociais em maio do ano passado, a matéria está com a relatoria desde o mês de março.
Na Bahia existe uma lei que proíbe propaganda de alimentos e bebidas pobres em nutrientes e com alto teor de açúcar, gorduras saturadas ou sódio em estabelecimentos de educação básica. O caso, inclusive, foi parar em 2021 no Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) depois que a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) ajuizou uma ação contra a Lei estadual 13.582/2016. No entanto, o STF julgou por unanimidade a lei como constitucional mantendo proibição de propagandas de alimentos e bebidas dirigidas a crianças nas escolas.
Presidente do Departamento de Medicina do Adolescente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Alda Elizabeth B. Iglesias Azevedo, destaca que esse é um dos grandes desafios da Saúde Pública no Brasil. “Mesmo em países cujas ações já foram efetivadas, ainda existe o problema de substituição por bebidas consideradas mais saudáveis. Os sucos industrializados também apresentam quantidade elevada de açúcar em sua composição, enquanto as bebidas dietéticas contêm muito sódio. Ainda há um longo trabalho de conscientização a ser realizado acerca da temática”, analisa.
CINCO DICAS QUE PODEM AJUDAR A REDUZIR O CONSUMO
1. É importante manter sempre a atenção aos rótulos de bebidas quanto a presença e a quantidade de açúcar não só para refrigerantes, mas também para os sucos artificiais.
2. Em casa, busque alternativas que possam inibir esse consumo exagerado: dispor essas bebidas em menor quantidade, ou até mesmo evitá-las. Limitar o consumo de refrigerantes por adolescentes pode reduzir o ganho de peso e prevenir as doenças relacionadas.
3. Conscientizar os filhos a desenvolver hábitos saudáveis passa também pelo exemplo dos pais. Por isso, é importante que o adulto também reveja o seu consumo de refrigerante e bebidas açucaradas
4. A escolha por alimentos e bebidas naturais, frescos, saudáveis, sem açúcar de adição e minimamente processados é, no geral, uma melhor opção.
5. Mudar um hábito é difícil, porém, não é impossível. Os especialistas não falam de um limite de segurança para consumo de um produto isolado, mas sim na mudança de um estilo de vida. A promoção da saúde e a diminuição de riscos cardiovasculares envolvem múltiplos fatores entre eles a adoção de uma alimentação balanceada, a prática de atividades física, o cuidado com saúde mental e horas adequadas de sono.
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