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Tradição familiar: conheça histórias de quem herdou a obrigação de dar caruru


 

Tradição foi declarada patrimônio imaterial da Bahia

  • Gil Santos

Publicado em 27/09/2024 às 05:00:00
O caruru também é uma tradição herdada na família do cozinheiro Maurício Ribeiro, através da avó dele, dona Mundinha. Crédito: Ana Lúcia Albuquerque/Correio

Quando tinha sete anos, a pequena Matilde pegou a imagem de São Damião e colocou de cabeça para baixo. Depois dessa brincadeira, ela adoeceu e, apesar de todos os esforços, a menina não melhorava. Quando a mãe descobriu a travessura, mandou que ela desvirasse o santo e fizesse uma promessa para ficar boa. A criança prometeu 50 carurus em setembro e foi assim que nasceu uma tradição que já dura 80 anos. Conheça essa e outras histórias de quem oferece caruru de sete meninos em Salvador.

Matilde cresceu, casou, teve sete filhos e cumpriu a promessa. Durante 50 anos, ela ofereceu o caruru de sete meninos na Rua Velha do Pero Vaz, a festa era um acontecimento no bairro e a fila começava cedo. A família montava a banca do lado de fora e distribuía as quentinhas na calçada, mas as sete crianças tinham prioridade. Elas sentavam no tapete e comiam juntas no mesmo prato, como manda a tradição.

Quando dona Matilde morreu, em 2008, os filhos e netos fizeram uma reunião para discutir o futuro do caruru na família e decidiram manter a tradição. A pedagoga Deise Sousa, 53 anos, conta que a avó era católica e uma mulher de muita fé e que essa devoção foi passada para as outras gerações. Hoje, parte deles são iniciados no candomblé e a festa mudou de endereço, agora é realizada na Santa Mônica. Este ano, são esperados 500 convidados.

"Resolvemos dar continuidade porque já tinha se tornado uma tradição. Ela fez a promessa e nós levamos adiante. Em todos esses anos, a única vez em que não oferecemos caruru foi em 2022, mas tivemos um ano tão pesado, tantas coisas deram errado, que percebemos que não dá para parar. Esse ano, já tivemos a graça alcançada. Dois irmãos conseguiram emprego. A festa será para agradecer", contou Deise.

O caruru também é uma tradição herdada na família do cozinheiro Maurício Ribeiro, 45 anos. A avó dele, dona Mundinha, era figura conhecida na Liberdade. A mulher trabalhava como lavadeira, era rezadeira, mãe de seis crianças e devota de Santo Antônio, São Lázaro, Santa Bárbara, São Cosme e São Damião. Mesmo vivendo de forma humilde, ela adotou uma menina que era gêmea e foi separada da irmã, foi quando passou a oferecer o caruru.

"Foi para proteger minha tia. Era uma festa feita em casa, só para a família. Os sete meninos comiam no mesmo prato, com as mãos, era uma balburdia. Depois, o pano usado para limpar os dedos era colocado sobre o altar. A gente fazia orações e cânticos. Era tudo muito lindo e emocionante", conta Maurício.

Quando dona Mundinha foi ficando idosa e já não conseguia mais preparar o caruru, a filha dela assumiu a tarefa. A mulher preferia não fazer o alimento, mas mobilizava o bairro, arrecadava o valor e entregava a um terreiro. Depois que avó morreu, Maurício consultou os orixás e foi aconselhado a dar continuidade à tradição. Isso já faz 15 anos. Assim como a avó, ele começou a festa em casa, mas, nos últimos anos, cresceu tanto que ele precisou alugar um espaço. Este ano, serão cerca de 100 convidados.

"Minha tia, a gêmea que deu início a tudo isso, participava da preparação no tempo de minha avó e me ajuda também, toda a família participa. Todos os anos, eu digo que não sei como vou fazer, mas minha mãe começa a se mobilizar, um tio manda uma quantia, uma sobrinha vem ajudar e a festa acaba saindo", disse Maurício.

Na casa da servidora pública Natália Lima, 35 anos, em Cajazeiras, a tradição também começou com os avós. Eles prometeram caruru quando um dos seis filhos sobreviveu a uma cirurgia cardíaca. "Depois que meus avós morreram, minha mãe e minhas tias continuaram fazendo e, nos últimos anos, as netas é que estão à frente da celebração. É uma tradição linda que pretendo passar também para minha filha", disse.

São Cosme e São Damião nasceram na cidade de Egéia, na Arábia, por volta do ano 260 d.c. Eram gêmeos, filhos de família nobre e foram médicos famosos pelas habilidades e pela caridade. Os santos não cobravam pelos serviços médicos, por esta razão espalhou-se a ideia de que os gêmeos não gostavam de dinheiro. Eles foram perseguidos, presos, torturados e executados por não renunciar a fé cristã.

No candomblé, eles estão associados ao orixá Ibejis. É uma divindade que na tradição Iorubá significa gêmeos, por isso, eles estão relacionados ao princípio da dualidade e são representados como crianças. A tradição é tão forte que no dia 19 de setembro de 2024 o caruru de São Cosme e Damião foi declarado patrimônio imaterial da Bahia pelo Conselho Estadual de Cultura (CEC).