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'Ter uma reitora negra é uma marca do quanto temos que avançar', diz primeira mulher à frente da UFRB


 

Nova reitora da instituição, a professora Gina Gonçalves tomou posse no último dia 30, depois de ser eleita pela segunda vez. Em 2019, venceu a consulta pública e não foi nomeada

  • Thais Borges

Publicado em 17/09/2023 às 11:49:18
Recém-empossada, Gina Gonçalves falou sobre os planos para os próximos anos na universidade. Crédito: Divulgação/UFRB

O dia 30 de agosto foi, ao mesmo tempo, a data de um desfecho e também de um início para a professora Gina Gonçalves. Naquele dia, em Brasília, ela foi nomeada reitora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), depois de um revés em 2019 - na ocasião, foi eleita pela primeira vez na consulta pública feita dentro da instituição, mas não nomeada pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) - que não seguia a prática de empossar o 1º colocado da lista tríplice.

Quatro anos depois, ela voltou a concorrer - e ganhou novamente a consulta pública. A posse simbolizava, portanto, o fim de uma espera e o começo de seu período à frente da instituição de ensino mais negra do Brasil. Agora, ela será a primeira mulher e a primeira negra a ser reitora da universidade em que 81% dos estudantes se declaram negros e que também tem maioria de docentes e servidores técnicos-administrativos pretos ou pardos.

"Ter uma reitora negra numa universidade como a UFRB me parece uma marca do quanto a gente avançou no processo de democratização das instituições federais de ensino e o quanto a gente tem a tarefa de fazer avançar as agendas de ações afirmativas", diz.

por

Gina Gonçalves

"Ter uma reitora negra numa universidade como a UFRB me parece uma marca do quanto a gente avançou no processo de democratização das instituições federais de ensino e o quanto a gente tem a tarefa de fazer avançar as agendas de ações afirmativas"

Segunda universidade federal na Bahia, a UFRB foi criada em 2005, numa espécie de introdução para o que viria a ser o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), formalizado dois anos depois. De lá para cá, cresceu e já formou mais de 10 mil estudantes, mas também enfrentou os cortes orçamentários que afetaram as instituições federais desde 2015. Dos campi localizados em sete municípios, dois - Feira de Santana e Santo Amaro - ainda não têm estrutura própria.

"A gente tem uma tarefa importante que é garantir a potência da UFRB. A gente precisa garantir o direito ao ensino superior para o nosso território, para o nosso estado, para o país. Eu quero ver a UFRB potente e cheia", reforça Gina, que tem graduação em Serviço Social pela Universidade Católica do Salvador (UcSal). Mestra em Educação pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e doutora em Educação pela Universidade de Paris 8, ela é professora da UFRB desde 2009. Entre 2015 e 2019, foi vice-reitora da instituição.

Em entrevista ao CORREIO, Gina falou sobre os desafios e metas para a universidade nos próximos quatro anos.

Como é assumir a reitoria agora, depois de ter sido eleita em 2019 e não ser nomeada?

Eu estou muito emocionada, no plano pessoal mesmo. É como se fosse uma recompensa existencial. Foi muito difícil o que aconteceu no plano político mas também no pessoal, até porque o político é também pessoal. Eu desconfio, não tenho certeza, mas disse isso numa nota lá atrás, em 2019, que ficava muito a desconfiança de misoginia, de preconceitos de um modo geral dos signos que eu represento. Então assumir agora, voltar, ir para a consulta, reencontrar a comunidade, ter um resultado positivo muito parecido com o que tivemos em 2019, com a comunidade em um ambiente nacional que, com todas as dificuldades que a gente tem, é mais voltado a valores democráticos, esperança, garantia de direitos… Voltar agora tem esse misto de enfrentamento de desafios, de se colocar diante dos desafios, mas tem também um gosto bom de que a gente vive no país um momento de esperança.

É a primeira vez que a UFRB terá uma reitora mulher e negra, sendo que a maior parte dos estudantes é negra, assim como servidores e professores. De que forma acredita que sua atuação pode refletir no corpo estudantil, docente e técnico-administrativo?

Acho que é importante esse lugar de representação. Nós da UFRB, como você bem disse, temos um perfil bastante característico. Entre os estudantes, 81% são negros. Isso também é verdade entre nossos colegas servidores técnicos e servidores docentes. Temos uma maioria feminina, de quase 60% entre estudantes, e também esse perfil é muito parecido em relação a técnicos e docentes. Tem esse lugar de representatividade.

Essa é uma marca distintiva da UFRB, e portanto, da agenda das ações afirmativas nesse momento, sobretudo em que se reconfigurou, no plano nacional, o próprio perfil discente. O perfil de estudantes têm essa característica, na sua maioria negros e negras com renda per capita de 1,5 salário mínimo. Mais de 80% dos estudantes têm essa renda per capita.Temos uma universidade hoje com uma característica bastante diferente, pelo menos nas instituições federais.

Ter uma reitora negra numa universidade como a UFRB me parece que está sendo vivido como um prenúncio, uma marca do quanto a gente avançou no processo de democratização das instituições federais de ensino e o quanto tem a tarefa de fazer avançar as agendas de ações afirmativas tanto para dentro das universidades quanto para fora.

Temos dito isso ao MEC (Ministério da Educação), que é preciso ter uma pauta relacionada às ações afirmativas que dê conta de garantias materiais, bolsas, ou seja, recursos materiais, mas também de recursos subjetivos. Tem que garantir a relação com o conhecimento, com o aprender. A gente está se debruçando sobre isso nesse momento porque é uma marca distintiva do nosso lugar.

Um dos grandes desafios nas universidades federais é garantir a permanência de estudantes em situação de vulnerabilidade. Qual é o cenário atual na universidade e o que pode ser feito para minimizar esses efeitos?

Nós temos um conjunto de dispositivos em relação ao atendimento de estudantes em políticas em ações afirmativas. Para você ter uma ideia, nós temos algo em torno de quase 900 estudantes que recebem auxílio alimentação, mais algo em torno de 1,3 mil a 1,4 mil que são assistidos por auxílios emergenciais e temos quase 200 estudantes que são nossos residentes. Ou seja, temos residências aqui, gente que está na residência universitária somado a 440 estudantes com auxílio moradia. Temos ainda um programa de permanência do MEC específico para a população quilombola e indígena em que atendemos quase 500 estudantes. Estamos com necessidade, inclusive, de ampliação desse número de atendimentos porque nossa população indígena e quilombola tem aumentado numa proporção relevante. Estamos em tratativas com o MEC no sentido de garantir isso.

Foi votada a lei (de Cotas) no mês passado. Nós estamos garantindo a ação afirmativa também para a pós, mas como eu disse, a gente precisa avançar em programas que garantem a permanência e garantam a saída desse estudante, quer para o mundo do trabalho, quer seja para o mundo acadêmico. Somos uma universidade afeita ao conhecimento, então é importante que nós possamos garantir que a saída desse estudante seja um encaminhamento para a vida profissional mas também para a vida acadêmica. Então nós temos hoje pouco mais de 2 mil estudantes com bolsa de mestrado.

São 63 cursos de graduação, temos 35 de pós-graduação. Isso é bastante, mas não o suficiente pra gente. Essa instituição tem 18 anos, é do recôncavo e precisa se firmar como uma instituição local e que tenha repercussões no estado.

Qual é o perfil dos estudantes?

Nós contamos em torno de 81% de população discente negra. Dela, entre 3% e 4% é quilombola, de pessoas que vêm dessa origem e têm essa origem comprovada. Estamos falando de uma população de 0,3% de indígenas aldeados e 0,3% de indígenas não-aldeados. Na nossa população preta, 32% é não quilombola, 45% é parda. Somente 13% é branca.

Nós estamos começando a notar que precisamos ter uma atenção a essa população (indígena e quilombola). Me parece que será uma tendência nas universidades baianas, aqui, na UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia) talvez, ter um aumento considerável dessa população. Isso se explica porque a gente tem a proximidade dessas comunidades e acho que a gente vai avançando na compreensão de setores da população em relação aos seus direitos e é preciso que a gente compreenda isso. Política social, política pública é uma dimensão da democracia. Apesar da polarização, a gente acabou de sair de uma disputa importante em relação a valores democráticos. Vivemos quatro, seis anos de constrangimento confronto com a sociedade brasileira.

Vivemos tempos de confronto e essa entrevista comigo é um pouco resultado desse confronto que as instituições universitárias viveram. Não ter sido nomeada não era contra mim especificamente, mas contra o símbolo do que eu podia representar com meu corpo. Portanto, o aumento da população quilombola e indígena tem a ver com esse sentimento que a sociedade experimenta com esperança e valores democráticos. Sorte da universidade que pode se aproximar de tanta sabedoria.

Vivemos um cenário pós-pandêmico em que muitas universidades públicas relatam evasão e esvaziamento dos campi, inclusive com uma frequência menor de alunos matriculados. Como está essa situação na UFRB?

Esse é um cenário nacional e é também da UFRB. Essa semana eu estava em reunião, na segunda-feira (4), com nossos pró-reitores dando conta de levantamentos desses números, que estão bastante significativos. A gente não pode esquecer que a gente ainda vive repercussões de uma crise social e política com uma dimensão muito particular porque ela foi se intensificar com uma crise sanitária. Coincidentemente, o Brasil, diante dessa crise sanitária, vivia um momento de crise política profunda e de crise social profunda.

Por isso, ações afirmativas são tão importantes e ações para assistência estudantil precisam ser garantidas pelo Estado nas universidades como estratégia de permanência. Estamos em processo de levantamento mas ainda em conclusão de determinados programas e projetos para enfrentar essa situacao de evasão porque é preciso que a universidade pública seja esse espaço de direito para o jovem trabalhador brasileiro, para a jovem trabalhadora brasileira, para a jovem negra, para o jovem negro, indígena, quilombola, ou seja, pra esses espaços da população que não tiveram esse direito garantido pelos quase 100 anos de ensino em universidade no Brasil.

Desses últimos menos de 20 anos se a gente pensar em Reuni, em política de expansão de do ensino superior, seis anos pelo menos são resultado de confronto. Estamos celebrando e confirmando a necessidade, a potência da UFRB, mas nós somos um projeto de expansão do ensino superior e o que a UFRB materializa é também um projeto de disputa. A evasão é reflexo dessa crise social, econômica e política e a instituição universitária tem obrigação, junto com o Estado brasileiro, com o governo do país, de confrontar isso e buscar caminhos para resolução. Garantir a permanência de estudantes em universidades públicas do Brasil tem que entrar na agenda de direitos de jovens, de trabalhadores, de negros.

Temos uma universidade jovem, criada em 2005, mas que já é a segunda federal mais antiga do estado. Apesar de ter sido criada em um momento de expansão da rede, as instituições federais sofreram muito com cortes a partir de 2015. Como está a situação financeira da UFRB hoje?

A gente ainda vive repercussões de todo esse constrangimento orçamentário e financeiro. Na semana passada, lá na minha posse, eu fiz uma menção especial à bancada de deputados federais que ajudaram a gente nesses últimos anos com suas emendas. Isso é atípico, isso não deve ser a regra para sustento de itens básicos na universidade. Mas a gente vive um momento diferenciado.

Nós entramos na agenda do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e temos uma série de tratativas no sentido de garantir recursos orçamentários junto ao governo federal. Nós temos um compromisso do ministro da educação (Camilo Santana), que esteve aqui em meados de junho, de garantir e colocar na agenda a efetivação de obras que estavam paradas. Mas a agenda da universidade é muito grande. Quando eu falo para você que destes quase 20 anos de Reuni, é preciso que a gente diga que, em função dessa crise política e social, alguns pactos do Reuni não foram cumpridos para um conjunto de universidades e para nós também.

Temos obras paradas nos sete campi da nossa universidade e temos obras ainda a se concretizar. Dois campi do projeto de nossa universidade, e falo especificamente de Santo Amaro e Feira de Santana, ainda estão no papel. Os pactos foram concretizados em número de professores, mas não em número de servidores muito menos em espaço físico. Vivemos em espaços físicos que não são nossos, da universidade, e que precisam ser implementados.

Um dos grandes gargalos da maioria das instituições brasileiras é a dificuldade de internacionalização, inclusive da produção científica, o que permitiria melhores classificações nos rankings internacionais. Como a senhora pretende trabalhar esse aspecto?

Nós temos uma superintendência de assuntos internacionais. É uma superintendência pequena, que ainda não tem a pujança de outras universidades, mas já temos hoje convênios com 11 países, em todos os continentes. Temos algo em torno de 20 instituições conveniadas e quase 300 estudantes beneficiados. Estamos avançando nessa área e é uma tarefa.

Atualmente, a UFRB tem apenas dois programas de pós-graduação com doutorado. Existem planos de ampliação?

Sim. Eu acho que a gente tem condição de ampliar para pelo menos dois, talvez três doutorados. Os mestrados a gente continua num processo de ampliação. Hoje temos quatro residências, temos especializações à distância e seis presenciais, dois doutorados, 17 programas de mestrado entre profissionais e acadêmicos.

De onde eu vejo, a gente tem condição de pelo menos garantir mais dois ou três doutorados na universidade. O que é importante dizer é que a gente aprofunda nossa política, nossas ações na pesquisa e na pós-graduação. A gente tem feito alguns contatos importantes em desenho de política de pós-graduação que eu acho que se desdobram concretamente. Essas ações de pesquisa certamente se desdobrarão em ações políticas. Na semana passada, em Brasília, fechamos um convênio com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) da ordem de R$8 milhões para um projeto de pesquisa de ponta nessa área.

Há planos para expandir a graduação?

A gente tem 63 cursos de graduação. Imagino que a gente possa expandir, mas acho que muito pouco em graduação nesse momento. Fico imaginando algo em torno de 10% em cursos nas áreas de saúde, humanidades e engenharias, mas não é algo que está definido dentro do nosso plano, porque aumentar cursos de graduação significa mais vagas para professores e servidores.

Por enquanto, não é objeto de nosso foco, mas tenho conversas preliminares com colegas diretores e penso que a gente tem uma disposição de expandir inclusive para cursos noturnos, dentro dessa compreensão de espaço democrático de nossa instituição.

Vocês lançaram, em julho, um edital para a permanência de estudantes de pós-graduação. Como isso tem funcionado?

Os editais de permanência em pós-graduação funcionam dentro dessa lógica de ampliação do que é política de ação afirmativa, de aprofundamento de ação de estratégia de ação afirmativa. Vamos garantir para esses estudantes uma bolsa, tal qual a gente garante para estudantes de pós-graduação de modo geral via agências de financiamento. São recursos da universidade, mas este edital ainda é uma experiência interna nossa, que estamos garantindo com nossos recursos.

A UFRB está em sete municípios baianos. Ao longo desses anos de existência, como tem funcionado a integração da instituição com as comunidades locais?

Essa é uma tarefa que eu acho que a gente avança muito, mas precisa ser perseguida. Somos uma instituição local, somos uma instituição do interior, estamos nessas cidades e, como a gente costuma dizer, nesse território do recôncavo, com esses cursos, com ações relacionadas à pesquisa mas também relacionadas à extensão.

Ouso dizer que temos uma política de extensão muito voltada às comunidades do nosso entorno, porque são quase sete mil ações relacionadas à extensão e ela é muito voltada a programas e projetos para a nossa comunidade. É verdade que nós estamos tentando essa mão dupla, porque não é só extensão de dentro para fora, mas também disposição de aprender com esse outro.

Estamos começando agora algo que me parece bastante importante, que são ações relacionadas a projetos dentro de nossa formação curricular. Temos tarefas importantes relacionadas à cultura e à arte que estão sendo objetos de um plano mais cuidadoso e serão implementadas logo. Mas essa relação com a nossa comunidade precisa dessa compreensão que os nossos estudantes são, em sua maioria, daqui. Eles são em sua maioria dos nossos territórios. Quase 93% dos estudantes são da Bahia, 34% do Recôncavo, 12% do Vale do Jiquiriçá, 9% do Portal do Sertão.

Que outras metas destacaria para os próximos quatro anos à frente da UFRB?

Eu acho que a gente tem uma tarefa importante que é garantir a potência da UFRB. A gente precisa garantir o direito ao ensino superior para o nosso território, para o nosso estado, para o país. Eu quero ver a UFRB potente e cheia. Cheia de estudantes, cheia de possibilidades. Por isso, todas as ações que a gente implementa, toda essa perspectiva que a gente projeta em assistência, ações afirmativas, ampliação de cursos, aproveitamento de pesquisa e pós-graduação. Todas elas perseguem um objetivo maior que é ver essa universidade potente, cheia, podendo cumprir sua função política e social.