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Maysa Polcri
Publicado em 14 de março de 2024 às 05:15
Com sua pluralidade de cores, aromas e sabores, a Feira de São Joaquim é unanimidade em Salvador. De Jorge Amado a Carybé, muitos foram os artistas que buscaram palavras para descrever a grandiosidade do histórico entreposto comercial da Bahia. Para se manter de pé, o espaço conta com a resiliência dos feirantes, que acordam com os primeiros raios de sol e só descansam depois de um longo dia de trabalho.
Numa época em que as rodovias não eram movimentadas como hoje em dia, os insumos que abasteciam Salvador chegavam do interior em saveiros que cruzavam a Baía de Todos-os-Santos. A localização estratégica atraiu comerciantes na década de 30. Antes de se instalar no local em que hoje ocupa, o comércio ficava próximo ao sétimo armazém das Docas e recebia o nome de Feira do Sete.
Quando o porto de Salvador foi modernizado, passou a se chamar Feira de Água de Meninos. “O principal ponto do sucesso da feira ao longo dos séculos é seu papel estratégico entre os espaços da cidade. Ela está no caminho para o eixo norte de Salvador, Bonfim e Calçada, e também no caminho da direção oposta: do centro político e comercial”, analisa o historiador Rafael Dantas.
Após um incêndio em 1964, a feira foi completamente destruída e os comerciantes transferidos para o local que ocupam hoje. Entre os feirantes que perderam sua fonte de sustento naquele período estava o pai de Marcílio Costa, 74. Um dos comerciantes mais antigos, ele começou a trabalhar nos becos e vielas da Feira de São Joaquim aos 16 anos.
“Naquela época os empregos eram escassos e o único meio de sobrevivência era trabalhar na feira”, relembra. O boca a boca diário transformou Marcílio em um exímio comerciante e uma das personalidades mais conhecidas da feira. Há 30 anos, ele migrou para o segmento de artigos religiosos e está à frente da Casa do Preto Velho, que vende, entre outros produtos, itens para a confecção de ebós.
“Se você parar para analisar, o feirante é uma classe muito trabalhadora. A carga horária começa às 5 horas da manhã e vai até às 18 horas. Quando existe aquele intuito de vender, nós trabalhamos mesmo, com sangue no olho, para conseguir alguma coisa na vida”, diz Marcílio Costa. A feira abriga mais de 3 mil boxes e 20 mil trabalhadores que circulam todos os dias pelo espaço. São 60 mil m² de vias estreitas e movimentadas onde se encontra de tudo: artigos religiosos, frutas e verduras, restaurantes e artesanatos.
Avani de Almeida, presidente da Escola de Samba Filhos da Feira de São Joaquim, vê o espaço como uma “cidade dentro da cidade”, por sua variedade de comércios e expressões culturais. “A feira é um espaço que transforma tudo que vem da natureza em economia”, resume. As expressões culturais, da música à gastronomia, são elementos essenciais para compreender a importância da feira. Só a escola de samba, que surgiu como projeto social, conta com 200 associados, que desfilaram no Carnaval.
A mistura de ritmos, religiões e culinária é justificativa para um projeto de lei que prevê o reconhecimento da Feira de São Joaquim como patrimônio imaterial da Bahia. “Importante registrar que a alma pulsante é materializada nos feirantes. Feirantes que perpetuam gerações levando cultura, gastronomia, artesanato, fé e devoção para todo o povo baiano”, diz o PL nº 25.194/2024, de autoria da deputada Fabíola Mansur (PSB).
A proposta, enviada em fevereiro deste ano, ainda não foi votada na Assembleia Legislativa da Bahia (Alba). Desde março de 2005, existe um projeto para que a Feira de São Joaquim seja considerada patrimônio pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
No site do órgão, a feira aparece entre os “bens imateriais em processo de instrução para registro”. O Iphan foi procurado, mas não se manifestou sobre o andamento do processo, assim como o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac). Para o historiador Rafael Dantas, não há dúvidas de que a feira preenche os pré-requisitos para ser reconhecida como patrimônio.
“A feira reúne todas as características de um espaço considerado patrimônio, com seus patrimônios materiais e tradições culturais. A Feira de São Joaquim é um exemplar da diversidade e pluralidade da nossa cultura”, defende.
O gosto pelo trabalho atravessa gerações de famílias como a de Nilton Ávila, 46, o Gago da Feira. Com avô e pai feirantes, o destino do baiano não poderia ser outro, senão ter a Feira de São Joaquim como sustento e paixão. A diferença foi a inovação: há oito anos, ele inaugurou o restaurante São Jorge, que tem uma das vistas mais privilegiadas da Baía de Todos-os-Santos. Ele também é um dos idealizadores do Samba da Feira, que acontece todos os domingos, à partir das 13 horas.
“Nós conseguimos mostrar cada vez mais para o mundo que a feira é um espaço de cultura, culinária e que atrai pessoas de todos os lugares”, diz. Frequentador dos boxes desde criança, ele se recorda das mudanças que a feira sofreu com o passar dos anos.
“Como não existiam feiras em outros bairros, a cidade vinha se abastecer na feira. Hoje quase tudo vem pelas estradas, mas há 30 anos, era pelo mar. Era bonito ver os saveiros encostando na Enseada de São Joaquim e trazendo de que era produzido no Recôncavo”, relembra, enquanto olha para a vista do mar que o acompanha desde criança.
Os anos passaram e a transformação do público e dos feirantes é inevitável. Neste semestre, o Governo do Estado deve dar início a nova etapa de revitalização e modernização dos boxes dos comerciantes. Por mais que o cenário e seus atores passem por alterações, a feira continua sendo um dos pontos onde a cultura baiana pulsa com mais intensidade, como bem descreveu Carybé, na década de 70. “Junto ao mar, num amontoado inverossímil de barracas divididas por becos, ruelas e passadiços, formigando de gente”, narrou.