Saiba por que grupo que representa vaqueiros que lutaram pela independência está de fora do bicentenário do 2 de julho
Os encourados de Pedrão já não participam da festividade desde 2013
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Nilson Marinho
Em 1822, chegaram às fazendas que circundavam a então pequena Pedrão, à época distrito de Irará, no centro-norte do estado, as convocações para que os vaqueiros deixassem suas esquivas rés de lado, para engrossar a luta contra os portugueses em defesa da liberdade de uma pátria que sequer havia sido formada. Ao menos 39 homens, vestidos de couro curtido, partiram do agreste em direção à região do Recôncavo e, em um segundo momento, rumo às imediações de Salvador, onde estavam seus inimigos. O exército de cavaleiros retornou para casa após a derrota dos lusos, em 1823, sem sofrer uma única baixa.
Pouco mais de um século depois, em 1948, descendentes dos soldados rurais desfilaram pela primeira vez na festividade em comemoração à libertação do Brasil das garras dos algozes portugueses. O grupo dos Encourados de Pedrão, alados em seus cavalos e sempre à frente do cortejo da independência, foram responsáveis até 2013 por anunciar ao povo da Bahia que os caboclos estavam nas ruas. Uma sequência de desarranjos nos anos anteriores, os tiraram de vez do desfile do 2 de julho. Neste bicentenário da independência, nenhum gibão poderá ser visto da Soledade até o Campo Grande.
O drama dos Encourados começou a ser desenhado em meados de 2010, quando os protetores dos animais passaram a questionar a presença de cavalos e jegues nas festividades. Um ano depois, às vésperas da maior festa religiosa da Bahia, a Lavagem do Bonfim, a 6ª Vara de Fazenda Pública do estado determinou a proibição da participação de carroças conduzidas ou puxadas por animal. A desobediência resultaria em detenção e multa fixada em R$ 90 mil.
Naquele mesmo ano, o Ministério Público recomendou para os vaqueiros de Pedrão que participassem do 2 de Julho sem a presença dos seus cavalos. O grupo cultural assumiu o risco de retaliações das organizações e entidades da causa animal e anunciou que mesmo assim cavalgariam abrindo o cortejo. Só não esteve presente porque o atraso de dois veículos impossibilitou o transporte dos equinos até o litoral.
“O vaqueiro não tem seu cavalo como apenas um animal que trabalha com ele, mas sim com parte da sua vida. O vaqueiro e o cavalo representam a simbiose do ponto de vista das relações que ele precisa articular no seu meio de trabalho, e que ele também precisou durante o processo de independência na Bahia. A 'proibição' que aconteceu com os Encourados, já no século XXI, foi o maior absurdo, não tem uma razão [...] São personagens simbólicos que, de uma hora para outra, desapareceram. Neste bicentenário, é fundamental que tenhamos novamente a figura dos Encourados na cidade de Salvador porque isso é uma questão de representatividade, relevância e valorização do interior no processo de independência na Bahia”, avalia o historiador Rafael Dantas.
Depois de quebrarem a tradição pela primeira vez, os cavaleiros retornaram ao desfile em 2012, mas, acuados, não "escoltaram" os caboclos até o Campo Grande e encerraram a montaria na Praça da Sé. No último ano de participação, o grupo não recebeu apoio municipal de Pedrão para custear a viagem até Salvador e apenas alguns vaqueiros estiveram presentes no evento cívico após arcarem com as próprias despesas.
“Os desfiles antigos tinham mais elementos, não eram só os Encourados e os carros dos caboclos, havia também os alegóricos com o do General Labatut e da Joana Angélica, que faziam parte desse cortejo, mas com o tempo tudo isso foi sumindo, acho que por falta de iniciativa do poder público de manter, e também pelo aumento da participação popular no desfile [...] Dos desfiles que participei nunca vi os Encourados causando algum problema ou alguma pessoa causando problemas aos animais”, avaliou o escritor e pesquisador, Nelson Cadena.
O presidente do Grupo dos Encourados de Pedrão, Anderson dos Santos Maia, está decidido a não ser mais fotografado com as armaduras em couro, posando ao lado de um cavalo, enquanto serve aspas a um jornalista sobre a maior tradição de sua terra natal. Agora, pensa duas vezes antes de atender a imprensa. Só o faz desde que seja, exclusivamente, para falar sobre a falta de incentivo para que os cavaleiros regressem ao desfile. "Eu represento aqueles meus antepassados que lutaram em 1823 e, agora, estou tendo que lutar como eles para voltar para o 2 de Julho".
Além da falta de incentivo do poder público, o presidente também reclama da falta de proatividade de parte dos membros do grupo que, atualmente, é formado por 56 encourados e 16 voluntários. Nem todos são vaqueiros de profissão e parte daqueles que não labutam nos currais sequer compreende o verdadeiro significado dos Encourados, diz Maia.
Parte do grupo esteve reunido neste ano com representantes da Fundação Gregório de Matos, que organiza o desfile do 2 de julho. Foi sugerido que os membros entrassem em contato com o Ministério Público para se atualizarem sobre o uso de animais em eventos cívicos na cidade de Salvador, mas nenhum membro procurou o órgão e o tempo para confirmar a participação, além da organização do traslado dos próprios Encourados e cavalos foi excedido. Em nota, o órgão informou ao CORREIO que não há qualquer tipo de proibição contra a presença de animais na festa, exceto na Mudança do Garcia e na Lavagem do Senhor do Bonfim.
O projeto Bahia livre: 200 anos de independência é uma realização do jornal Correio com apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador.