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'Quer boa vida': o que pais dizem para fugir de pensão dos filhos


 

Do contato com oficiais de justiça às audiências, ações judiciais de reconhecimento de paternidade e pensão são marcadas por estratégias contra mulheres

  • Fernanda Santana

Publicado em 20/08/2023 às 05:00:59
Fórum das Famílias do Tribunal de Justiça da Bahia. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Em um ano de briga judicial com o ex-marido, Alícia* já teve de ouvir dele que ela "quer boa vida" e que "se não trabalha, que dê a guarda dos filhos". O pai das duas crianças tenta fugir do reajuste da pensão alimentícia dos filhos, que moram com a mãe. Para isso, apela a argumentos que se repetem em ações judiciais do direito de família.

O que a estudante ouve está na base do que mulheres escutam, leem e vivem em processos judiciais de reconhecimento de paternidade ou pensão alimentícia. A reportagem conversou com advogadas e mães para elencar quais alegações homens pais mais utilizam nessas ações. Todas concordam que, confrontados no sistema judiciário, eles as atacam.

"Ela não para em casa", "Ela só quer estar produzida", "Me mato de trabalhar para ela curtir", "Ela quer ser sustentada", "Ela quer boa vida" e "Não vou sustentar malandro" [insinuação de que a pensão dos filhos serviria para outros fins] são seis dos argumentos mais comuns nesses processos. 

Na Bahia, estão ativas 116,8 mil ações judiciais de pensão alimentícia (não só de pais para filhos) e 17,9 mil sobre reconhecimento de paternidade. 

Nelas, há homens que apelam para ameaças, como "Se ficar me apertando [por pensão], eu vou pedir demissão". E aqueles que se demitem para driblar as obrigações financeiras com filhos menores de 18 anos, como contou um oficial de justiça.

Principais demandas do direito da família são por pensão e reconhecimento de paternidade. Crédito: Marina Silva/CORREIO

O ex-marido de Alicia quer destinar R$ 800 dos R$ 15 mil do salário – 5% do que ganha - à pensão dos filhos. O juiz que analisou o caso foi a favor de subir esse valor para R$ 4 mil, mas o pai recorreu da decisão. "Sendo que eu e minha família pagamos tudo, eu crio eles e ele passa meses sem encontrar as crianças", contrapõe Alícia.

No processo, a advogada do ex-marido de Alícia insinua que a estudante adultera os gastos dos filhos e quer ser sustentada. Alícia diz querer o justo – financeiramente.

Quando namorava com Alícia, o engenheiro dizia à companheira que o sonho dele era "ser pai". Mais de uma década depois, ele diz para Alícia que ela “não vai conseguir nada dele”. “E que se eu não trabalho que eu desse a guarda para ele", conta ela, que ganha um salário-mínimo (R$ 1,3 mil).

Cada tentativa de prolongar o processo arrasta, consequentemente, as ações no tempo e intensifica o desgaste emocional dos envolvidos. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o tempo médio de um processo (sem distinção de tema) no acervo dos tribunais é de 4 anos e 7 meses. “É muita ansiedade, tenho muita queda de cabelo, perda de peso”, compartilha Alícia.

‘Todos têm o perfil de se esconder’, perfila oficial de justiça

As ações de reconhecimento de paternidade e pensão são as mais corriqueiras no direito da família, que tratam ainda de questões de casamento, divórcio e guarda de menores. Elas são resguardas por sigilo processual desde 1973. Os depoimentos dos profissionais jurídicos para esta reportagem, por isso, não são personalizados.

Itailson Farias, oficial de justiça. Crédito: Marina Silva/CORREIO

As estratégias para driblar a paternidade começam, judicialmente, de frente para um oficial de justiça. Durante duas décadas, Itailson Farias, 51, trabalhou só com demandas da Vara de Família. De porta em porta, cumpria mandados que comunicavam a citação de pessoas em processos ou a intimação.

A primeira dificuldade do servidor, no entanto, é encontrar os citados nessas ações: muitas vezes, segundo o servidor, eles fingem não estar ou se escondem. Nesses casos, é acionada a “citação de hora certa”: o oficial avisa um familiar ou vizinho do citado que, no dia seguinte, voltará ao endereço. Caso ele não esteja, a comunicação do processo é tida como concluída.

Quando são achados, os homens continuam com os argumentos de negação ou deslegitimação da mulher.

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Itailson, oficial de justiça.

"'Só saí com ela uma vez’, ‘Estou desempregado’, ‘Não posso pagar’. Coisas assim que ouvi milhares de vezes. Tem homens que largam o emprego formal para viver de ‘bicos’ [emprego informal] para tentar não pagar."

Entre as histórias com as quais se deparou no trabalho, uma marcou o oficial. É a de uma mãe que cobrava judicialmente o pagamento da pensão ao ex-companheiro, com quem tinha uma filha. O homem se negava a quitar as dívidas e um mandado de prisão contra ele foi aberto.

Isso porque, depois de três prestações devidas, esse pedido pode acontecer. Neste ano, 1.956 pessoas tiveram a prisão decretada por essa razão, calculou o Tribunal de Justiça da Bahia.

Sem dinheiro para pagar o transporte escolar da adolescente, a mãe levava a filha, de 14 anos, até a escola de moto. Em março de 2013, elas foram atropeladas por um ônibus. A jovem morreu. 

“Descobri pela televisão que ela morreu no acidente de trânsito, estava de moto porque não podiam pagar pelo transporte. Isso me destruiu”, lembra o oficial.

As estratégias para escapulir da pensão seguem nas audiências. A delas é a de conciliação, uma conversa entre as partes, na presença do juiz ou um conciliador. Se houver consenso, o acordo é homologado. Se não, acontece a audiência de instrução. Os valores pensões são regidos pela harmonia entre necessidade, capacidade e razoabilidade. Ou seja, paga-se o que é possível, de acordo com o que é necessário.

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Tatiana Aragão, advogada com 28 anos de experiência em ações de família.

"A audiência de instrução é quando eles mais se destemperam, dizem coisas como: 'ela está curtindo a vida', que está 'sustentando o luxo dela'. Se a mulher estiver em um novo relacionamento, aparecem com: 'ah vou estar sustentando o malandro'. Eles adoram essa parte."

Para ela, há homens que condicionam a paternidade ao relacionamento. "Se a relação acaba, muitos pensam que a paternidade acabou também", detalha.

No livro Maternidade no Direito Brasileiro, de 2021, as pesquisadoras Sheila Stolz e Sibele Lemos apresentam um quadro de expressões e adjetivos associados a mulheres em processos da Vara de Família do Rio Grande do Sul. Neles, aparecem termos como sedutora, imatura, fantasiosa, negligente e instável.

As duas focaram nos processos de Alienação Parental, que podem ser consultados publicamente naquele estado. Para Stoltz, professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, esses estereótipos se repetem em outros processos, mas o sigilo processual impede que sejam vistos.

"Por que sigilo para pagamento de pensão? Sigilo cabe na parte de abuso, por exemplo, na preservação da criança, ou outros casos de exposição. Mas muitos absurdos que acontecem nesses processos vão ficar ocultos, a menos em casos muito específicos, que extrapolem dos tribunais para a mídia”, avalia a doutora em Direito.

Pedido de DNA também é usado para prolongar reconhecimento da paternidade

Em dezembro do ano passado, o resultado do exame de DNA mostrou que Matheus* era o pai do bebê que ele rejeitava. “Ele assumiu no início e depois me desmoralizou para se camuflar da nova namorada”, compartilha a mãe da criança.


O pedido de reconhecimento de paternidade, iniciado na Defensoria Pública, aconteceu após Clara questionar na justiça o pagamento de pensão do pai para o filho. Ele se negava a arcar com despesas do bebê, de quem passou a dizer que não era o pai. 

“Ele deixou até a barbar crescer para dizer que um bebê não parecia com ele. Mas quero mesmo que não se pareçam”, desabafa ela, depois do resultado positivo.

Como aconteceu com a manicure, o exame genético é solicitado também por quem deseja adiar a pensão alimentícia dos filhos, não só por quem precisa.

Entre agosto do ano passado e julho deste ano, 12,2 mil recém-nascidos foram registrados na Bahia sem o nome paterno - 7% dos 168 mil nascidos, segundo a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais.

O início do reconhecimento de paternidade pode ser feito em qualquer Cartório de Registro Civil. A mãe indica o suposto pai no Cartório, que comunicará aos órgãos competentes. O teste genético é o próximo passo. Desde janeiro, a Defensoria Pública da Bahia realizou 1.157 exames de DNA.

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Vivânia Mota, advogada da família.

"Muitos deles alegam: 'logo depois que a gente terminou, começou a namorar', para questionar a paternidade. Muitos sabem que são os pais e alongam o processo."

Desde março, Vivânia recorre a uma decisão do CNJ, nas petições. Naquele mês, as Diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do órgão se tornaram obrigatórios no sistema judiciário. “São acusações perversas que aparecem, então chamo atenção para as questões de gênero”, completa a advogada.

A decisão do CNJ obriga os tribunais a considerar as especificidades das pessoas envolvidas, para evitar discriminação por gênero.

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Tatiane Queiroz, defensora pública.

"Quando a gente conversa com o assistido, a gente tenta fazer ele enxergar esse machismo, que existe em toda a sociedade. Eles chegam chateados, se sentem injustiçados"

Neste ano, defensores públicos baianos participaram de um curso sobre violência de gênero nas ações de família, “para que reconhecessem o machismo nos discursos", completa Queiroz.

Esse comportamento, afinal, atinge todos os elos do sistema judiciário. Em setembro do ano passado, o Superior Tribunal de Justiça condenou um advogado a pagar indenização a uma mulher que ele chamou de "prostituta". A tentativa dele, ao chamá-la assim, era invalidar o pedido de investigação de paternidade.

Advogados que destratam a parte contrária podem ser investigados pela Ordem dos Advogados do Brasil, mas o órgão não possui uma jurimetria específica para ofensas de gênero, segundo a presidente da Comissão da Mulher Advogada, Daniela Portugal.

O ambiente de conflitos, e de abandono dos pais, prejudica principalmente as crianças, segundo a psicoterapeuta Lívia Meinking. “Ela capta tudo que acontece, mesmo que não seja dito. Ela vai tentar compensar os pais de suas dores, seus conflitos”. No futuro, continua Meinking, elas podem reproduzir, em suas relações, os sofrimentos psíquicos da infância.