'Que atriz feia': série da Netflix desperta discussão sobre beleza física da protagonista
Emma vivida por Ambika Mod em 'Um Dia' foi rotulada de 'feia' nas redes; no Brasil, Alice Carvalho, a Joaninha de 'Renascer' também foi alvo de comentários por conta da aparência
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Priscila Natividade
priscila.oliveira@redebahia.com.br
Quantos filmes de romance já disseram às mulheres que, para serem vistas e amadas, primeiro precisariam se mostrar fisicamente desejáveis? Boa pergunta. Principalmente para quem se deparou nas últimas semanas com os milhares de comentários circulando nas redes sociais que rotulavam a mocinha da nova série romântica da Netflix como “feia para ser colocada como protagonista”. Houve também quem escrevesse que “não conseguiu sentir carisma na atriz”, que “achou o casal estranho” ou “não sentiu química”.
Um Dia (Reino Unido, 2024), adaptação do best-seller de David Nicholls, chegou ao streaming no último mês e vem, por semanas, alcançando o topo das paradas da Netflix, ocupando a segunda posição do Top 10 Global. Segundo números da plataforma, foram mais de 7,5 milhões de visualizações da série de 14 episódios curtinhos que mostram a história de amor ‘impossível’ entre Emma e Dexter, vividos por Ambika Mod (This is Going to Hurt) e Leo Woodall (The White Lotus), com criação e roteiro de Nicole Taylor.
A gente poderia dizer que a história é quase a mesma da versão de 13 anos atrás do longa estrelado por Anne Hathaway (O Diabo Veste Prada) e Jim Sturges (Across the Universe): uma festa aleatória, 15 de julho, um casal e 20 anos de encontros e desencontros - e aqui eu paro de contar mais para não cair em um spoiler, caso alguém ainda não tenha assistido ou lido o livro. Até aí, tudo bem, se a produção da Netflix não trouxesse para os holofotes a grata surpresa de uma Emma de origem indiana, empoderada, ácida e politizada, que rasga e joga para cima qualquer ‘rótulo Hathaway’.
“Nosso olhar e, por consequência, nossa concepção de beleza vem sendo treinada há décadas pela produção audiovisual hollywoodiana. Nosso imaginário sobre quais corpos merecem figurar nas telas foi e é alimentado pelas obras de arte e de entretenimento que estabelecem a branquitude como norma e a beleza como uma das principais qualidades esperadas das mulheres. Pele branca, corpo magro, cabelos lisos e/ou cuidadosamente modelados compõem um padrão proclamado”, analisa Kellen Xavier, doutora em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCOM/UFMG) .
Você se apaixonaria por uma Emma ou Dexter na sua vida? Ambika Mod, incomoda. “A atriz é ‘feia’ porque não é branca e incomoda uma história de amor em que uma mulher não precisou pagar o pedágio da beleza para ser amada e admirada – não só pelo seu ‘grande amor’, mas como por vários outros homens. A Emma de Ambika Mod parece concebida para ser menos dócil à personalidade efusiva da Dexter, transmite mais de um humor atribuído ao Reino Unido, talvez menos gentil à autoestima frágil dele”, acrescenta a especialista.
Britânica e filha de pais indianos imigrantes, a atriz do reboot da Netflix tem 29 anos e é comediante. O trabalho mais conhecido de Ambika Mod é na produção This is Going to Hurt, onde ela dá vida a Shruti Acharya, uma médica júnior. A atriz deve aparecer novamente em breve, dessa vez em uma série de suspense da Disney+. Ainda sem data para estrear no Brasil, Playdate é uma adaptação do romance homônimo de Alex Dahl, que conta a história de uma mãe que teve seu filho sequestrado.
Kellen Xavier
"A atriz é ‘feia’ porque não é branca e incomoda uma história de amor em que uma mulher não precisou pagar o pedágio da beleza para ser amada e admirada"
As ‘Emmas’ desconstruídas não ganham mais protagonismo nas telas por um acaso, como argumenta Kellen Xavier: “Investir mais em ‘diversidade’ tem sido uma estratégia adotada pelas produtoras audiovisuais para tentar estabelecer diferenciais em relação à produção cinematográfica de Hollywood e à TV aberta dos Estados Unidos. Independentemente de quando as mudanças étnicas ou de padrão corporal são bem recebidas ou não, elas movimentam comentários da mídia e nas redes sociais, o que colabora na divulgação das obras. Por outro lado, expandir as representações na mídia contribui para que mais pessoas se vejam nessas obras e que mais pessoas possam também vislumbrar o entretenimento como caminho profissional”.
Forma e expressão
No Brasil, a atriz potiguar Alice Carvalho, a Joana do remake de Renascer (Globo, 2024), também foi alvo de comentários sobre a sua aparência, ao ser rotulada de “feia” e “inadequada” para o papel. Na versão anterior, a personagem foi vivida por Teresa Seiblitz. Ainda que a atriz tenha tido um imenso destaque como Dinorah Vaqueiro, na bem-sucedida série Cangaço Novo (Amazon Prime/2023), inúmeras postagens que circulam nas redes são até preconceituosas.
“Algumas posturas e alguns corpos atraem mais simpatia e solidariedade do que outros. Temos uma história de narrativas que trataram mulheres como frágeis de modo a afirmar o poder dos homens. Precisamos ver as outras e a nós mesmas de formas mais gentis com nossas qualidades - que vão além de sermos bonitas e/ou agradáveis para as outras pessoas”, completa Kellen Xavier.
Para a psicóloga Bárbara Guimarães, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental e professora de Psicologia da UniRuy Wyden, mesmo diante de movimentos que desnaturalizem um padrão hegemônico físico e estético, ainda existe um caminho longo a ser percorrido frente as reações internas e externas provocadas por essa idealização do que é belo.
“É preciso descolonizar nossa estética também. Mas, talvez, seja uma conversa que muitos e muitas não conseguem ter ainda. E se a protagonista fosse mais velha? Teríamos outro viés da mesma moeda. Ainda temos muito que avançar e precisamos falar mais sobre os padrões de beleza, de relações, de convenções. As coisas e pessoas são como são e são belas naquilo que conectam”. E esse é só o começo: “Contra este novo momento de desconstrução, temos muitos séculos de ideal de beleza colonialista eurocêntrico”, defende.