Problemas de saúde afastam cinco professores por dia
Na Bahia, de janeiro a agosto, 1361 tiveram que deixar sala de aula
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Gil Santos
gilvan.santos@redebahaia.com.br
Fazer a chamada e ouvir dos alunos a palavra “presente” faz parte da rotina de qualquer professor. No entanto, todos os dias, ao menos cinco da rede estadual de ensino entram numa lista que os impedem de confirmar a própria presença em sala de aula.
Segundo a Secretaria da Administração do Estado (Saeb), de janeiro a agosto deste ano, 1.361 educadores foram afastados por problemas de saúde. Ou seja, são 3,4% de um total de 40 mil profissionais da ativa. Diretor executivo da Associação dos Professores Licenciados do Brasil – Secção da Bahia (APLB-BA), João Santana diz que, em média, os afastamentos crescem 2,5% ao mês.
“No Diário Oficial, todos os dias as listas de afastados são enormes por conta dos problemas de saúde. Os motivos vão dos mais simples como a Lesão por Esforço repetitivo (LER) até casos como alcoolismo, drogas e depressão”, explica.
Segundo a Saeb, entre as principais causas de afastamento estão as neoplasias (tumores), doenças musculoesqueléticas, nos olhos, no coração e nos aparelhos respiratório, circulatório e digestivo.
A professora Rita de Cássia Lima, 48 anos, sabe o que é o peso de trabalhar 60 horas por semana na rede pública e se revezar entre a sala de aula, vice-diretoria e coordenação. O corpo já ligou o sinal de alerta e a obrigou a tirar uma licença de 30 dias para tratar uma LER, problemas de garganta e estafa.
“Já não sinto mais minha capacidade produtiva em 100%. É uma questão de sobrevivência. O médico recomendou o afastamento do trabalho neste período em um dos turnos”.
Rita conta que, até então, só havia se afastado durante a licença maternidade. “Nunca fui nem de gripe. Agora, vou ao médico três vezes na semana e isso me deixa muito desconfortável. Percebo que estou prejudicando não só a mim, mas a escola. Estou no meu limite, sobretudo, à noite”.
Os problemas de saúde interferem, inclusive, nas relações pessoais. “Me falta paciência. Vivo suportando dor, tomando remédios para vir trabalhar. Isso complica não só a vida da gente, mas em todos os âmbitos da escola”, desabafa.
Na avaliação de João Santana, tudo isso é provocado pelo ambiente de trabalho do professor. “Falta tudo: se trabalha com insegurança, sendo ameaçado por quadrilha. Juntando isso ao estresse e ao salário que a gente ganha, o professor acaba tendo que trabalhar 60 horas para conseguir uma remuneração melhor”, avalia.
Para ele, a demora da liberação das aposentadorias também afeta esse quadro. “Até o ano passado, tínhamos 10 mil professores com idade e tempo para se aposentar. São profissionais que perdem o estímulo justamente porque continuam sendo espremidos desse jeito”, acrescenta.
Estresse
No caso da professora aposentada Evandir Andrade, 62, os anos dedicados à sala de aula deram origem a dores nas pernas que se transformaram em bursite e ela desenvolveu ainda tendinite e LER. O estresse diário provocou ainda alterações na pressão. Hoje, além de hipertensa, ela é diabética. “Foram muitos anos dando aulas e esses problemas foram surgindo. Os médicos sempre avisavam que as duas coisas estavam relacionadas”.
São quase 40 anos desde quando ela começou a ensinar na zona rural de Paripiranga, no Nordeste da Bahia. “Tive várias colegas que adoeceram por conta do trabalho. Depois de Paripiranga, fui professora também em Salvador e não vi muita diferença na sala de aula. A realidade é a mesma. Muito estresse e muito trabalho”.
Mãe de quatro filhos nas redes estadual e municipal, a cuidadora de idosos Marilu Ferreira sabe bem como é quando falta professor na sala de aula. “Sempre acontece de um dia ou outro não ter aula porque algum professor ficou doente. Se ele demora de voltar, o estudante fica esperando o substituto. Essa semana, minha filha de 11 anos ficou um dia sem ir para escola por falta de professor”.
Na escola onde Cristiane Santana trabalha, essa ausência já chegou a durar quatro meses. Nesse período, os alunos ficaram desamparados e sem resposta de quando voltariam à rotina. A Secretaria de Educação diz que cabe a cada unidade repor as aulas.
“Meu afastamento foi rápido. Sabia que se eu não voltasse, eles ficariam sem aula, porque não havia professor. Isso provoca um déficit na aprendizagem. Mais que isso, provoca uma evasão escolar”, avalia.
Ela acredita, inclusive, que o número de professores afastados seria ainda maior se não houvesse perda salarial. “Tem professor que evita pedir. Tem uma aqui na escola, mesmo, que não tira a licença por isso”, conta. "Eu, primeiro, tive um acidente de trabalho. Estava estudando na faculdade para melhorar minha atuação enquanto professora, ao atravessa a rua, dentro da própria área faculdade, um carro me atingiu. Fiquei dois anos afastada. Depois tive que me readaptar e voltei para sala de aula sem poder. Isso porque eu tive uma perda enorme no salário. Antes da Lei dos Readaptados 12904/2013, era isso que acontecia. Nessa época [1997], eu tive 17 fraturas de costela, laceração, traumatismo craniano.
Eu me afastei para me cuidar durante quase dois anos. Os médicos até queriam me aposentar por invalidez. Mas não fui aposentada. Voltei mesmo sentindo muitas dores. Quando voltei, falava baixo na sala de aula. Não tinha força, voz. Entrei em depressão, chorava tanto. Isso durou anos. Chorava porque não conseguia ser uma boa professora. A que eu queria ser para meus alunos. Eu me controlava muito para seguir. Fiquei com depressão nas salas de aula. Para piorar, minha rotina era tão exaustiva. Saía do Teixeira de Freitas [no bairro de Nazaré, centro de Salvador] e ia para o Edvaldo Boaventura, no Stiep. Ficava 60 horas no trabalho, se não eu não teria dinheiro. O afastamento não me ajudou em nada, porque eu tive que voltar com sequelas para trabalhar. Só em 2008, 11 anos depois, eu conseguir me aposentar. (Luzia Gomes, ex-professora da rede estadual que pediu afastamento, voltou por conta do salário e ficou depressiva)Substituição
Quando um professor é afastado o Estado tem que abrir concurso para contratação de um novo profissional. Mas o que acontece muitas vezes, segundo a diretoria da APLB, é a contratação de profissionais Reda.
Segundo a Secretaria de Educação do Estado, se houver disponibilidade de carga horária de outro concursado, a substituição é imediata. Caso contrário, a SEC diz que há uma contratação emergencial e, paralelamente, é providenciada a convocação de candidato concursado, quando existe aprovado. Os convocados pelo Reda têm dez dias úteis para ocupar a vaga, segundo a secretaria.
Para conseguir o afastamento, o professor precisa ir ao médico ou ao psicólogo e ter a situação clínica confirmada. Depois, o especialista da Junta Médica da Bahia concede ou não o afastamento. O professor pode ser afastado do cargo por, no máximo, dois anos. Depois disso, é preciso se aposentar por invalidez.
Professor de Medicina Social na Ufba, Eduardo Borges dos Reis acredita que a própria atividade do professor pode ser danosa à saúde. “A relação de aluno e professor é, por essência, conflituosa. Aparentemente, não haveria riscos chamativos, mas há o risco psicossocial”, explica.
Já os problemas físicos são fundamentalmente ligados às condições de trabalho – embora tenham ligação com as relações dentro de sala.
Doenças comuns
Nos ambientes de estresses e cobrança, ele acrescenta, as doenças cardiovasculares são muito comuns. Assim como as doenças ligadas ao aparelho digestivo. “Já doenças musculoesqueléticas tem relação com os movimentos repetitivos, como confecção de trabalho, correção da avaliação. A tendinite do ombro também é muito comum, por conta desses movimentos repetitivos e uma carga horária muito grande ”, diz.
A psiquiatra Shirley Moraes tem observado um aumento na frequência de professores no consultório no último ano. Na maioria das vezes, eles chegam com queixas de dores no corpo, depois de ter passado por diversos médicos e feito muitos exames sem resultado claro.
“São pessoas que têm um acúmulo grande de trabalho, estão cansadas, não sentem mais vontade de trabalhar e tem a sensação incompetência. Algumas não sentem vontade nem de sair de casa e estão com a autoestima bastante comprometida. São muitos os sintomas”.
A média é de três professores por mês no consultório dela. Na prática, são trabalhadores que, quando estão de férias ou de folga, passam bem, mas quando precisam sair para trabalhar sentem dores físicas, principalmente, na cabeça e na lombar, insônia, vômitos e náuseas. Muitos acabam sendo diagnosticados com a Síndrome de Burnout.
“Essa síndrome acomete pessoas que têm muitas responsabilidades, que lidam com o público e não se sentem valorizadas. Ela provoca cansaço excessivo e, entre outros problemas, compromete a produtividade e a vida dos pacientes. Isso é mais comum do que se pensa. Professores, profissionais de saúde e policiais são os mais afetados”, explica.
Ansiedade afeta 68% dos professores
Uma pesquisa nacional feita pela Associação Nova Escola, aponta que 66% dos professores já precisaram se afastar do trabalho por questões de saúde em todo o Brasil. Os problemas mais frequentes são ansiedade, (68%), estresse e dores de cabeça (63%), insônia (39%), dores nos membros (38%) e alergias (38%).
O levantamento também mostrou que 87% dos professores acreditam que o problema é ocasionado ou intensificado pelo trabalho. A pesquisa online foi realizada entre os meses de junho e julho de 2018, com mais de cinco mil educadores no país.
Na rede municipal de Salvador, o cenário não é diferente. Segundo a Secretaria Municipal de Educação (SMED), só este ano foram 4.656 licenças médicas de professores, que podem ter se afastado das atividades por motivos de saúde mais de uma vez. Ao todo, são 7.659 professores que trabalham na rede.
Soluções
De acordo com a coordenadora pedagógica do Instituto Chapada de Educação e Pesquisa, Elisabete Monteiro, para mudar essa realidade, é preciso rever a quantidade de alunos por sala e melhorar o apoio pedagógico aos professores.
“A formação continuada deste professor deve pensar em situações didáticas mais contemporâneas que possam reduzir esta tensão na sala de aula. O fazer pedagógico qualificado ajuda nesta transformação do ambiente escolar enquanto um lugar onde dá prazer de fazer parte e permanecer”, avalia.
A coordenadora pedagógica e coach em desenvolvimento e educação, Celeste Oliveira, concorda. Ela atua na rede pública e é ainda vice-diretora de uma escola com 1,2 mil alunos.
“Temos cerca de 50 professores e, em média, recebemos de 10 a 12 atestados médicos por mês. Só em agosto foram dois afastamentos de 30 dias por esses sintomas. O estresse desmotiva e faz com que o professor deixe de ser um mediador de conflitos e passe a somar essas questões”.
Além da capacidade técnica é preciso equilíbrio emocional. “Na minha experiência, quando apontamos os erros percebemos um certo desconforto do professor, ele se sente cobrado e frustrado, mas precisa entender que o aprendizado do aluno não depende apenas dele, mas de outros fatores que estão além do seu controle, como a história e a vida dos estudantes. Então, a instituição precisa desenvolver ações também nesse sentido”, destaca.
Em junho deste ano, a Secretaria de Educação do Estado (SEC) lançou o Programa de Apoio e Assistência à Saúde do Professor e do Estudante (Acolher). As ações acontecem nas unidades escolares, no serviço de saúde do SAC/Educação e no órgão central da Secretaria da Educação. Os atendimentos podem ser agendados pelo telefone (71) 3117-1434 ou pessoalmente no SAC Educação, das 8h às 16h.
Quase dez mil baianos são afastados pelo INSS
O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) afastou no último ano 9.766 mil baianos do trabalho por acidentes e problemas de saúde. Os dados do Ministério do Trabalho (MTE) apontam que as fraturas ao nível do punho e da mão foram responsáveis pela maior parte dos benefícios concedidos, somando 817 afastamentos, 8,37% do volume total.
“Se você juntar os dez primeiros motivos que provocaram estes afastamentos, com certeza vai encontrar um número bem grande de acidentes de trabalho de membros superiores. Esse é o principal motivo de afastamento, justamente porque ainda existem más condições de trabalho e falta de segurança para estes trabalhadores”, analisa o diretor da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT) e perito médico do INSS, João Silvestre Silva Junior.
Os números se referem aos afastamentos com mais de 15 dias. Fratura na perna, incluindo o tornozelo (779), dorsalgia (778), mononeuropatias dos membros superiores (644) e as lesões do ombro (598) também respondem por uma parcela significativa das principais causas que tiraram os trabalhadores das suas atividades.
Ainda segundo Silvestre, a maior parte dos acidentes acontece com funcionários da indústria. O setor da construção civil também registra uma boa parcela de casos. “Na fratura, o osso quebra. Já a lesão consiste, geralmente, em uma alteração que pode ser no músculo, no tendão. As repercussões físicas cuja causa é o trabalho, em geral, acontecem nos membros superiores do trabalhador”, ressalta.As 20 principais causas de afastamento no trabalho
1. Fratura ao nível do punho e da mão: 817
2. Fratura da perna, incluindo tornozelo: 779
3. Dorsalgia: 778
4. Mononeuropatias dos membros superiores: 644
5. Lesões do ombro: 598
6. Fratura do pé (exceto do tornozelo): 559
7. Fratura do antebraço: 500
8. Fratura do ombro e do braço: 352
9. Sinovite e tenossinovite: 247
10. Outros transtornos de discos intervertebrais: 245
11. Amputação traumática ao nível do punho e da mão: 207
12. Luxação, entorse e distensão das articulações e dos ligamentos ao nível do tornozelo e do pé: 205
13. Reações ao "stress" grave e transtornos de adaptação: 177
14. Ferimento do punho e da mão: 161
15. Fratura do fêmur: 156
16. Luxação, entorse e distensão das articulações e dos ligamentos do joelho: 148
17. Transtornos internos dos joelhos: 143
18. Outros transtornos articulares não classificados em outra parte: 131
19. Outros transtornos ansiosos: 109
20. Luxação, entorse e distensão das articulações e dos ligamentos da cintura escapular: 105
Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) *Colaborou a estagiária Fernanda Lima, com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier