'Passam o tempo inteiro com fuzis': adoecidos pela violência, moradores sofrem com síndrome do pânico
Uma das recomendações costuma ser o afastamento do motivo do estresse - medida quase impossível para quem vive em territórios com conflitos; veja onde encontrar atendimento gratuito
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Fernanda Santana
fernanda.lima@redebahia.com.br
O filho mais novo de Maíra Pinheiro, 32 anos, aguarda vaga na agenda da psicóloga que atende na unidade básica de saúde do bairro. A fala do garoto, antes pausada, está acelerada, e a coragem que era uma característica dele cedeu ao medo. A mãe associa as mudanças comportamentais do menino à violência que a família sofreu – perder o marido e o pai em uma operação policial – e que se repete na vizinhança.
A violência urbana tem intensificado a procura de moradores de territórios vitimados por conflitos armados - como os vistos esta semana - por atendimento psíquico. É o que relatam profissionais de saúde de cinco regiões de Salvador.
Quando o marido foi assassinado, em março, Maíra precisou de atendimento psicológico. Por sorte, conseguiu vaga, mas interrompeu o tratamento, apesar de ainda sofrer com ansiedade. “Tenho tentado não pensar na situação”, conta.
No bairro, ela percebe a violência como uma doença silenciada, pelo estigma que cerca a saúde mental e a dificuldade de acesso. “Percebo que não é um assunto, ainda que todos sintam, porque é assim comigo, com minha irmã”, compartilha.
Os quadros clínicos mais associados à violência são síndrome do pânico, ansiedade e estresse pós-traumático, segundo os profissionais ouvidos.
“Estamos vendo casos que não observávamos com tanta frequência: como ansiedade, tremores, taquicardia, sudorese, associados à violência no território. Temos recebido muitos casos em que o gatilho é o tiroteio, o não conseguir sair. Tudo é medo, susto”, avalia uma profissional do Caps do Garcia, que pediu para não ter o cargo revelado.
Os próprios profissionais de saúde se vêm diante de realidades nas quais tentam intervir, mas com limitações.
funcionária do Caps.
"É um desafio enorme, temos situações de enorme dificuldade para lidar com essa realidade, porque envolvem aspectos que não são da nossa governabilidade. Quando precisamos intervir, às vezes acionamos pessoas chaves naquela comunidade, como lideranças"
A crescente demanda por auxílio psíquico na guinada da violência é percebida desde a pandemia da covid-19. Os casos de ansiedade e depressão aumentaram 25% desde então, segundo a Organização Mundial da Saúde.
“Aliado a isso, a piora de condições estressoras, como a violência, tendem a trazer novas demandas”, explica uma psicóloga do Caps de Pernambués, sob anonimato.
A unidade onde ela trabalha atende pacientes de 36 bairros, entre eles Tancredo Neves. No primeiro semestre de 2023, esse foi o bairro mais violento de Salvador, com 30 tiroteios e 18 mortos, de acordo com o Instituto Fogo Cruzado.
“Não há só medicação ou terapia que dê jeito em certas situações. É um contexto complexo. Há pessoas que precisam de suporte, mas estão prisioneiras na sua própria casa”, avalia a psicóloga.
Uma das recomendações em casos de adoecimento psíquico costuma ser o afastamento do paciente do motivo do estresse. A possibilidade dessa prescrição para pacientes pobres, no entanto, é inexistente.
Vulneráveis a situações recorrentes de violência, quadros leves podem se tornar crônicos, como depressão. Há ainda dificuldades de equipes de saúde de chegar a pacientes que precisam de suporte em domicílio.
No mês passado, uma equipe do Caps de Pernambués foi atender um paciente, depois de cancelamentos provocados pela insegurança no bairro onde ele morava. O quadro dele apresentava estabilidade, mas, repentinamente, o homem estava mais agressivo, com tendências ao isolamento. A equipe queria entender melhor o motivo.
Quando chegou à casa dele, uma das psicólogas compreendeu. “São pessoas passando na rua com fuzis, o tempo inteiro. Isso é adoecedor”, conta.
Medo, ameaça e delírio: qual é o perfil dos casos?
A porta de entrada para demandas de saúde mental, na rede pública, costuma ser a rede de atenção básica. José William Justa é médico em uma unidade de saúde de família em Cajazeiras 8, bairro com mais mortes violentas em 2022 - 31, segundo a Secretaria de Segurança Pública da Bahia. Na unidade, ele percebe a crescente no número de pacientes com queixas relacionadas à violência.
José William Justa, médico em uma unidade de saúde de família em Cajazeiras 8.
"Paciente com dor no peito e nenhum outro sintoma. Todos já pensam em infarto, mas de repente essa dor no peito vem de um quadro ansioso. Ou uma insônia, em que a pessoa acha que o problema será resolvido com um remédio para dormir."
Os pacientes podem continuar na atenção básica ou ser direcionados para a rede de atenção psicossocial. Salvador tem 20 Caps, três ambulatórios e três emergências psiquiátricas para 2,4 milhões de habitantes.
Deles, 273 mil estão no raio de atuação do Caps de São Caetano/Valéria, onde o psicólogo Danilo Cruz trabalha há nove anos, três vezes por semana. Neste ano, moradores de Valéria já acordaram sem ônibus ou ao som de tiros. O Caps já fechou as portas, entre 2020 e este ano, depois de sofrer cinco assaltos.
Cruz, psicólogo de Caps em Salvador.
"No mínimo em dois de três dias ouço pessoas falando da violência, riscos, medo. Têm muitas pessoas buscando o serviço por causa de violência. Por exemplo, vivem em território dominado pelo tráfico."
Mas nem todos que buscam auxílio no Caps, que também funciona por demanda espontânea, conseguem. O atendimento nesse tipo de unidade é direcionado para transtornos severos e persistentes. Se o quadro for diagnosticado como “leve” ou “mediano”, há transferência para um dos três ambulatórios de saúde mental da cidade.
“Fazemos o acolhimento. Mas muitas vezes a gente não tem para onde encaminhar, porque os ambulatórios estão lotados”, diz Cruz.
Segundo o Ministério da Saúde, para cada 200 mil habitantes de uma cidade deveria existir um Caps. Sem lugar na rede pública, moradoras do Calabar se reúnem em grupo, quinzenalmente, para conversar entre elas.
uma das criadoras da iniciativa, que também pediu anonimato.
"Muitas só queriam ser ouvidas, desabafar sobre o que vivem. Psicólogo é difícil, se não tem na rede pública, não vão conseguir pagar."
Como está sempre em contato com vizinhas de bairro e localidades próximas, ela reconhece o quanto a violência afeta a saúde mental de todas. “Olho principalmente para as mulheres, afetadas por violências várias. Precisamos de uma política pública urgente, porque os casos [de adoecimento] estão fervilhando”. Por medo, nenhuma integrante do projeto quis dar entrevista.
A falta de atendimento pode gerar emergências. As urgências mais comuns, quando relacionadas à violência, são quadros graves de “ansiedade, estresse pós-traumático e pânico”, perfila uma psicóloga do pronto atendimento psiquiátrico dos Barris.
psicóloga do pronto atendimento psiquiátrico dos Barris.
"A situação está tão caótica que algumas vezes temos dificuldade para diferenciar um discurso de delírio persecutório de uma situação real de perseguição. De ameaça...de medo."
O adoecimento provocado pela violência também atinge profissionais de saúde. Em um único dia, neste ano, a emergência dos Barris atendeu funcionários de duas unidades de saúde mental. Um dos grupos precisou de suporte após atender uma vítima de agressão e outro depois de ser assaltado onde trabalhava.
A Secretaria Municipal de Saúde de Salvador disse não “caber interferência da pasta” em registros de violência. Respondeu, ainda, que desconhece números de demanda reprimida e calculou 10 mil pacientes ativos nos 19 Caps gerenciados pelo município.
A Secretaria de Saúde da Bahia, que coordena um Caps na capital e duas emergências psiquiátricas, não respondeu até o fechamento desta publicação.
Como a violência é capaz de adoecer uma pessoa?
O estresse faz parte da vida. É essa reação física que, ao liberar no corpo hormônios como cortisol, nos prepara para atravessar uma rua engarrafada ou fugir de uma área de risco. A diferença entre o estresse necessário e o adoecedor é o grau de exposição a um evento estressor, a gravidade dele e a percepção de cada um sobre violência.
Quem vive em zonas onde são registrados constantes trocas de tiros, por exemplo, podem ser mais impactados pelo estresse que o restante da população.
Nas crianças, os efeitos desse tipo de estresse são mais graves, explica o psiquiatra Antônio Freire. Nessa fase da vida, o principal mecanismo de regulação dessa reação fisiológica, o eixo hipotálamo-pituitária-adrenal, ainda está em formação e pode ser alterado a depender das cargas de estresse.
Antônio Freire, que pesquisou, no doutorado em Medicina, as relações entre percepção da violência e problemas psíquicos.
"Se o indivíduo passa, por exemplo, por uma perturbação extrema, como sofrer ameaças, ver uma arma apontada para si, pode sofrer transtorno psiquiátrico agudo, como um transtorno pós-traumático, que pode evoluir para sintomas depressivos. Mas ainda carecemos de estudos que mostrem como essa percepção de violência impacta a saúde mental de adultos."
Não há dados oficiais que relacionem a violência urbana e a saúde mental, por exemplo. Desde 2006, o Ministério da Saúde obriga unidades de saúde a notificar atendimentos ligados a tipos de violência, como a doméstica e a autoprovocada. Em 2022, foram 4,8 mil registros em Salvador.
Para preencher parte dessa lacuna de dados, os psicólogos Luana Rabelo e Fábio Pinheiro analisaram 546 prontuários de pacientes de um Caps da cidade cearense de Quixadá, entre maio e dezembro de 2018. Eles queriam mostrar, com números e depoimentos, como a violência adoecia pessoas.
Dos prontuários, 17% mencionaram a violência urbana, por meio de palavras como “assassinato”, “briga”, “assalto”, “ameaça de vida”, “perseguição” e “amedrontada”. A cidade onde está o Caps pesquisado pela dupla tem 88 mil habitantes, mas Rabelo indica que, apesar das singularidades de cada território, é possível tecer proximidades com outras cidades violentas.
Luana Rabelo, psicóloga e mestre em gestão da clínica pela Universidade Federal do Ceará.
"Ainda que não se passe, diretamente, pela situação de violência, nós, moradores urbanos, já sentimos os efeitos no nosso corpo, por exemplo, quando ocupamos a cidade. Isso já modifica a nossa forma de habitar os espaços. O que pode ser visto como precaução nada mais é do que a naturalização do constante estado de alerta."
Um estudo realizado pelas ONGs People’s Palace Projects e Redes da Maré mapeou a saúde mental dos moradores do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. O resultado: um a cada três moradores sofriam mentalmente os impactos da violência. Os transtornos mais comuns eram depressão (26%) e ansiedade (25%).
Entre os entrevistados, 70% ainda responderam viver em estado de medo: o de um conhecido ser atingido por um tiro.
Onde tem atendimento na rede pública
Pelourinho: Centro de Atenção Psicossocial Gregório de Matos Caps AD, na praça XV de Novembro, Terreiro de Jesus. Tel: (71) 3283-5547
Pernambués: Caps AD e Caps Eduardo Saback Dias de Moraes, na rua Conde Pereira Carneiro, números 271 e 139. Tels: (71) 3238-2847 e (71) 3460-1957
Campinas de Pirajá: Caps AD III Gey Espinheira na Estrada Campinas de Pirajá, 61. Tel: (71) 3239-1178
Jaguaribe: Caps I Prof. Luiz Meira Lessa na rua das Mangaloeiras, 32. Tel: (71)3611-7913
IAPI: Caps Liberdade, na rua Conde do Porto Alegre, 11. Tel: (71) 3611-9011
São Tomé de Paripe: Caps Nzinga na rua Santa Filomena em frente ao PSF. Tel: (71) 3521-4706
Iguatemi: Creasi Caps I na avenida ACM, s/n. Tel: (71) 3270-575
Armação: Caps II Rosa Garcia na rua Elesbão do Carmo, 254. Tel: (71)3611-2968
Rio Vermelho: Caps II Oswaldo Camargo na rua Itabuna, 2. Tel: (71)3611-5600
Caminho de Areia: Caps II Professor Adilson Peixoto Sampaio na rua do Céu, 77. Tel: (71)3611-6585
Engenho Velho de Brotas: Caps II Aristides Novis na av. Laurindo Régis, 1. Tel: (71) 3611-2953
Cajazeiras II: Caps II Águas Claras na rua Coronel Azevedo, s/n. Tel: (71) 3611-6852
Fazenda Grande II: Caps II Nise da Silveira na rua Jerusalém, 15. Tel: (71) 3611-6854
Vale dos Lagos: Caps II Pau da Lima na Estrada da Muriçoca, 1. Tel: (71) 36117851
Garcia: Caps II Ufba na rua Leovigildo Filgueiras, 392. Tel: (71)3329-1004
Piatã: Caps II Franco Basaglia na rua Aristóteles Costa Leal, 36. Tel: (71)3611-3546
Nazaré/Jardim Baiano: Caps II Antonio Roberto Pellegrino na rua Arquimedes Gonçalves, 226. Tel: (71) 3321-3679
Praia Grande: Caps III Maria Célia da Rocha na rua José Pires Castelo Branco, 30. Tel: (71) 3397-2689