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Nilson Marinho
Publicado em 30 de setembro de 2024 às 05:00
Mesmo que a intenção da harpia fosse chegar de forma discreta, isso jamais seria possível. Não há como os olhos de um ser humano não se voltarem imediatamente para a ave que pode ultrapassar pouco mais de um metro, com a distância entre as duas asas chegando a cerca de dois, e com uma plumagem no topo da cabeça que lembra uma coroa. >
Há um mês, o analista ambiental Luiz Felipe Schmidt Eler estava em sua casa, um condomínio na orla de Porto Seguro, Sul da Bahia, almoçando com a esposa e uma visita, quando a harpia pousou na árvore do quintal do imóvel.>
A esposa de Luiz se assustou com o animal e interrompeu a refeição: “Nossa, amor, olha ali, olha ali”. Da posição em que estava sentado, o analista ambiental não pôde ver a harpia, mas a passagem dela sob o sol provocou uma grande sombra no interior da casa. “Eu pensei: cara, pelo tamanho da sombra esse animal é muito grande”, conta.>
Luiz correu até o quintal, olhou entre a vegetação e avistou uma das mais poderosas aves de rapina do mundo. Ele já conhecia a espécie, pois trabalha na Veracel Celulose, empresa que mantém uma reserva particular de preservação de Mata Atlântica entre Porto Seguro e a vizinha Santa Cruz Cabrália. A companhia tem parceria com o Projeto Harpia Mata Atlântica, iniciativa que monitora, estuda e protege a espécie no Norte do Espírito Santo e no Sul da Bahia.>
O analista ambiental não perdeu tempo, fez vídeos curtos e tirou fotografias da ave. Todo o material foi enviado para o Projeto Harpia Mata Atlântica. Analisando os conteúdos, os pesquisadores concluíram que se tratava de uma fêmea de cerca de três anos, portanto, uma jovem que, talvez, tivesse acabado de deixar a tutela dos pais para bater asas em busca de sua própria independência.>
“Possivelmente um indivíduo que se dispersou, pois, nessa idade, as harpias estão em fase de exploração, tentando estabelecer um território. As harpias têm um cuidado parental muito longo; os pais cuidam do filhote até por volta dos três anos de idade. Esse animal parece estar nessa faixa etária, já abandonando a área dos pais e em busca de um novo refúgio, o que culminou com sua presença naquele condomínio próximo à orla”, explica Áureo Banhos, coordenador do Projeto Harpia Mata Atlântica e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).>
O avistamento é tido como incomum, sobretudo porque a ave estava em uma área urbana. Mas a hipótese é de que, pelo fato de Porto Seguro ter corredores florestais conectando grandes áreas verdes às urbanas, o animal seguiu uma dessas rotas até chegar ao condomínio onde Luiz, sua esposa e a visita almoçavam.>
Atualmente, há registros de poucos exemplares de harpia na Amazônia e outros derradeiros na Mata Atlântica, em uma área que vai do norte do Espírito Santo ao sul da Bahia. O desmatamento é o que mais tem contribuído para o desaparecimento da ave, que está classificada como criticamente em perigo de extinção. Em todo território baiano, há apenas sete ninhos e uma população de 14 casais, de conhecimento dos pesquisadores. Cada fêmea coloca dois ovos a cada dois ou três anos, mas só um deles costuma vingar.>
“A harpia é uma águia florestal de grande porte, ocorrendo do sul do México até o nordeste da Argentina, com maior presença no Brasil, especialmente na Amazônia e Mata Atlântica. Como a Mata Atlântica perdeu grande parte de sua cobertura florestal, as harpias, que dependem das árvores mais altas para nidificar e se alimentar, se tornaram mais raras nessa região”, completa o coordenador do projeto.>
As harpias são dependentes das florestas densas e suas principais presas são arbóreas, como macacos e preguiças. Quando decidem planar, preferem fazer isso entre as copas das árvores. Os pesquisadores do Projeto Harpia Mata Atlântica foram atrás do exemplar em Porto Seguro assim que receberam as imagens e o vídeo de Luiz, mas não conseguiram localizá-la.>
A grande preocupação é com a densa malha de eletrificação da cidade turística, estradas com tráfego intenso, além de pessoas que podem capturá-la e animais domésticos que, por ventura, podem interagir de forma perigosa com a ave.>
Os pesquisadores afirmam que estão registrando os últimos exemplares de harpia na Mata Atlântica. Nesse bioma, na área do norte do Espírito Santo e sul da Bahia, os estudiosos têm percebido um comportamento diferente daquelas aves que vivem na Amazônia. Os casais de aves capixabas e baianas trocam de ninhos com maior facilidade, mesmo tendendo a ser muito fiéis às árvores escolhidas para a construção de seus lares reprodutivos.>
“É um bicho de longa vida, que demora três anos para se tornar jovem, na idade de dispersão, e seis anos para atingir a maturidade, podendo viver mais de 35 anos na natureza. Eles escolhem um lugar para se reproduzir e defendem um território de até 1,5 mil hectares que seja preservado. Temos observado que eles tendem a trocar de ninho de um ciclo reprodutivo para o outro. Essa região tem um efeito de vento porque as áreas ao entorno não são protegidas, pois perderam a floresta, então os ninhos caem e eles têm dificuldade para construí-los, enquanto na Amazônia eles são mais estáveis”, conclui Banhos.>