Menos commodities, mais amêndoa de alta qualidade: qual o futuro do chocolate baiano?
O cacau renasceu e colocou a produção brasileira entre as mais sustentáveis do mundo
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Priscila Natividade
priscila.oliveira@redebahia.com.br
Se antes o cacau era cultivado à sombra de dendezeiros e seringueiras em vastas propriedades de grandes coronéis, hoje, o 'fruto de ouro' é plantado com espécies exóticas e nativas, combinado com árvores frutíferas.
Ligar a televisão, mais de 30 anos depois, e ver no remake de Renascer (Rede Globo) um José Inocêncio (Humberto Carrão/ Marcos Palmeira) mais sustentável - que usa agroflorestas para varrer a praga da vassoura de bruxa – definitivamente, não é só coisa de novela.
A realidade é que aprender com os erros da monocultura e buscar conhecimento (o cultivo sustentável e o beneficiamento do cacau) levou a cacauicultura baiana a quebrar o ciclo de produção de décadas e a velha estrutura fundiária, se tornando mais resiliente e presente em todo processo, desde a plantação até a comercialização direta ao consumidor, em forma de barra de chocolate. Sim, o cacau renasceu e colocou a produção brasileira entre as mais sustentáveis do mundo.
“Aquilo que praticamos aqui representa uma referência no mundo do cacau. A produção baiana não apenas se destaca pela qualidade das amêndoas, mas também pela consciência e compromisso socioambiental que permeiam todo o processo produtivo até porque também estamos testemunhando mudanças climáticas cada vez mais severas, o que reforça a necessidade de práticas agrícolas capazes de enfrentar esse desafio”, defende o cacauicultor da Fazenda Camacan, em Itabuna (BA) e gerente de Desenvolvimento Territorial do Instituto Arapyaú,Ricardo Gomes. A entidade promove iniciativas que possam tornar o sul da Bahia uma referência brasileira de desenvolvimento sustentável na produção cacaueira.
Parte da quinta geração de produtores de cacau da família de imigrantes sírio-libaneses que chegaram à região na década de 20, Ricardo foi um dos integrantes da comitiva brasileira que esteve recentemente em missão na Conferência Mundial de Cacau, a Amsterdam Cocoa Week,realizada na Holanda. “Embarcamos em uma missão para a Europa visando mostrar ao mundo o cacau sustentável do Brasil, ampliando e fortalecendo conexões com o mercado externo para atrair investimentos para a cacauicultura. Inclusive, o Brasil conquistou duas medalhas de ouro e uma de prata no concurso mundial de cacau de excelência, o CoEx, que também ocorreu durante a conferência mundial de cacau”.
Na nova era do chocolate, a barra que alguém pensou em comprar hoje no supermercado não vai demorar muito de mudar o rótulo. “A previsão é que o chocolate tradicional encontrado em supermercados possa perder espaço gradualmente, inclusive deixando de ser considerados chocolate e passando a ser uma guloseima. Essa tendência aponta para uma nova era no mundo do chocolate, onde a qualidade, a sustentabilidade e a ética serão os principais impulsionadores do mercado”.
Leia mais na entrevista.
O que difere esse novo ciclo do cacau da cacauicultura de antes?
No passado, a ênfase estava na produção e na resposta exclusiva às demandas do mercado de commodities. Hoje, a região ressurge no cenário nacional como zona cacaueira, porém, com um direcionamento mais concentrado na produção de amêndoas de alta qualidade, visando a inserção em um mercado diferenciado e a busca por melhores preços. Além disso, atualmente, almejamos a valorização do sistema de produção sustentável, especialmente os Sistemas Agroflorestais (SAFs), que em nosso caso é o sistema Cabruca. Estou me referindo ao Decreto da Cabruca, uma legislação que estabelece regras e diretrizes para isso. O decreto permite o manejo de espécies arbóreas exóticas para garantir a luminosidade adequada, possibilitando um maior adensamento de cacaueiros por hectare.
A Bahia ficou por muito tempo conhecida pela sua produção de cacau até que a vassoura-de-bruxa praticamente dizimou as plantações. Que lições a vassoura de bruxa deixou para os produtores?
Desde a primeira metade do século XX até o final dos anos 80, o Brasil figurava entre os três maiores produtores mundiais de cacau, o que garantiu décadas de fartura e extravagâncias aos coronéis do cacau de Ilhéus e mais 82 municípios dos arredores. O ápice da safra nacional aconteceu em 1986, quando a Bahia, sozinha, produziu quase 400 mil toneladas do fruto, representando 86% do total do país. Hoje a gente vê que as lições deixadas pela praga da vassoura incluem a importância da diversificação de culturas para reduzir o risco de perdas catastróficas devido a doenças ou pragas. A experiência serviu como um lembrete da vulnerabilidade da agricultura a doenças e pragas e destacou também a importância da inovação e da adaptação contínua na produção agrícola.
Qual o caminho que os cacauicultores percorreram até conseguir trazer o cacau de volta para a cena?
Atualmente, nossa fazenda produz cerca de 6 mil arrobas de cacau. Antes da devastação causada pela vassoura-de-bruxa, o conjunto de fazendas da família chegou a produzir 90 mil arrobas. Ao longo do enfrentamento da vassoura-de-bruxa, houve uma curva de aprendizado significativa. Apesar de ainda não termos uma variedade resistente, temos variedades tolerantes à doença. A agregação de valor não apenas através da qualidade da amêndoa, mas também da diversificação para outros produtos via agroindústrias, como geleias, polpa de frutas, foi mais um aspecto importante. Além disso, o acesso à tecnologia e a disseminação do conhecimento, por meio do Centro de Inovação do Cacau (CIC) e da divulgação de artigos e recomendações nas redes sociais, foram elementos-chave para avançarmos nesse caminho.
Qual a posição atual da Bahia e do Brasil nesse mercado?
A busca é por uma posição de liderança não apenas em volume, mas também em qualidade e sustentabilidade na produção de cacau. De acordo com dados da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC), a produção brasileira de cacau em 2023 foi de cerca de 220 mil toneladas, sendo a Bahia responsável por 61,9% do volume total de amêndoas nacionais adquiridas pelas processadoras. Já a produção mundial, o Brasil foi responsável por apenas 4,43%, o que o coloca na sexta posição entre os países produtores de cacau no mundo. Mas nosso país tem potencial para se tornar novamente um dos principais produtores de cacau do mundo, aproveitando áreas com oportunidades, como as de pastagens subutilizadas. Essa realidade oferece uma chance única para restaurar essas áreas a partir da implementação de sistemas agroflorestais com cultivo de cacau, ampliando assim os esforços de produção.
O que é tendência no setor?
A produção de amêndoas de alta qualidade destinadas à fabricação de chocolates finos, que, embora representem atualmente menos de 5% da produção nacional de cacau, têm um impacto significativo no mercado devido a sua qualidade superior, destacando indiscutivelmente a sustentabilidade na produção. A importância desse aspecto é evidenciada pelo movimento da União Europeia em direção à implementação do Regulamento para Produtos Livres de Desmatamento (EUDR), previsto para entrar em vigor no próximo ano, quando só poderão importar commodity agrícola livre de áreas de desmatamento. A tendência do setor é buscar um aumento no volume de produção, com a meta de alcançar 400 mil toneladas até 2030.
E que novo cacau é esse? Como o mercado também tem se diversificado?
Estamos testemunhando uma cacauicultura mais moderna, que prioriza a consciência social e ambiental e que se mostra economicamente viável, promovendo a sustentabilidade e garantindo a manutenção dos envolvidos na atividade, ao mesmo tempo que incentiva as novas gerações a permanecerem no campo. Inúmeras abordagens de produção de cacau em sistemas agroflorestais estão sendo desenvolvidas, incluindo o cultivo de cacau com espécies exóticas e nativas, combinado com outras frutíferas, além de sistemas agroflorestais mais diversificados. Vale destacar que, embora a produção de cacau esteja historicamente concentrada na Mata Atlântica do sul da Bahia e na Amazônia, há um crescimento notável também no cerrado, especialmente no oeste da Bahia. Nessa região, o cacau está sendo cultivado com alta tecnologia, transformando áreas anteriormente utilizadas para pastagem e até mesmo para o cultivo de soja e milho em pequenas florestas arbustivas.
E sobre o ‘bean to bar’, o que dizer sobre esse movimento na zona cacaueira da Bahia?
Tradicionalmente, a indústria do chocolate é dividida em várias etapas, envolvendo fazendeiros que cultivam o cacau, intermediários que compram os grãos, processadores que transformam os grãos em massa de cacau ou manteiga de cacau, e finalmente os fabricantes de chocolate que produzem as barras de chocolate. O movimento ‘bean to bar’, que significa ‘do grão à barra’, encurta e verticaliza a cadeia de produção, permitindo que os fabricantes de chocolate controlem mais de perto a qualidade e o sabor de seus produtos. Nesse sentido, o ‘chocolate maker’ - como é chamado o fabricante de chocolate artesanal - tem controle direto sobre todas as etapas do processo, desde a seleção dos grãos de cacau até a produção das barras de chocolate finalizadas. Isso inclui preocupações com práticas agrícolas sustentáveis, condições de trabalho justas para os produtores de cacau e a divulgação transparente das origens dos ingredientes utilizados na fabricação do chocolate. Esse, na realidade, é o cenário que desejamos para a produção do cacau commodity no Brasil também.
Como o setor vê hoje a produção de cacau para commodities?
É importante deixar claro que, apesar do crescente interesse na produção de cacau especial diferenciado, o mercado de commodities continua a ser o principal foco do cacau no Brasil, e na Bahia não é diferente. A ênfase ainda está na produção em larga escala, combinando volume e qualidade, mas com um compromisso contínuo com a conservação ambiental. Vale ressaltar que cerca de 97% de todo processamento de cacau do Brasil é feito nas moageiras aqui da Bahia, concentradas principalmente na região de Ilhéus. A produção de cacau especial diferenciado representa menos de 5% do total, demonstrando que a grande maioria, ou seja, 95%, destina-se ao mercado de commodities. Neste momento, vivemos uma fase excepcional no mercado de commodities, com os preços atingindo níveis históricos, os mais altos desde 1977. Precisamos sim, reconhecer a existência e a importância do mercado de cacau de qualidade, embora seja necessário destacar que o mercado de commodities continua sendo o principal na Bahia.
Qual o modelo de negócio e produção que hoje impera no Sul da Bahia, quem dita o preço do mercado local? A maioria dos produtores vende mesmo para grandes moageiras?
O modelo predominante de negócio na cacauicultura ainda é, em grande parte, baseado em estruturas familiares. Cerca de 80% dos produtores que compõem a base produtiva são agricultores familiares, o que significa que há uma forte presença de famílias trabalhando diretamente na produção de cacau e alimentos. Por outro lado, se observa também modelos de negócio mais corporativos, ambos coexistindo de forma significativa. No entanto, é importante destacar que a maioria dos produtores ainda direciona sua produção para o mercado de commodities. Aproximadamente 95% do cacau é destinado às moageiras e indústrias processadoras, e o preço é determinado pelo mercado internacional, seguindo as leis da oferta e demanda. Esse mercado é influenciado tanto pelo consumo de chocolate quanto pelos subprodutos, como manteiga, torta e liquor, e é regulado pelas bolsas de Nova Iorque e Londres.
Que o futuro que você enxerga para o chocolate e por que ele não é mais o mesmo de antes?
Primeiramente, observamos uma mudança gradual em direção ao consumo consciente e de qualidade do cacau. A exigência por produtos menos ultraprocessados, com menos aditivos, e com maior teor de cacau está se tornando uma tendência. Os consumidores buscam chocolates mais refinados, que ressaltem a essência do cacau, proporcionando uma experiência agradável sem comprometer a saúde com aditivos prejudiciais. Outro ponto de conscientização do consumidor está relacionado à origem da matéria-prima do chocolate. Há uma crescente demanda por produtos que garantam práticas sustentáveis na produção de cacau, evitando o desmatamento e promovendo impactos sociais positivos. O terceiro aspecto diz respeito à crescente preocupação com as mudanças climáticas. A possibilidade de redução das áreas de cultivo de cacau é real, o que poderia tornar o chocolate um produto cada vez mais escasso devido à falta de matéria-prima. Essa relação entre mudanças climáticas e conservação das florestas se torna uma luz amarela, destacando a importância da manutenção das lavouras para garantir o fornecimento sustentável de cacau.
QUEM É
Ricardo Gomes é engenheiro agrônomo pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), pós-graduado em Gestão Empresarial, com mestrado profissional em Desenvolvimento Sustentável e Conservação pela Biodiversidade. Além de cacauicultor da Fazenda Camacan, em Itabuna (BA), Ricardo é gerente de Desenvolvimento Territorial do Instituto Arapyaú e presidente interino da Agência de Desenvolvimento Regional do Sul da Bahia (ADR).