Medicina × BI: conselho alega excesso de alunos, mas professores denunciam ataque às cotas
Tema deverá ser debatido pelo Conselho Universitário, após decisão considerada "arbitrária"
-
Maysa Polcri
maysa.polcri@redebahia.com.br
Criados com intuito de democratizar o acesso ao ensino superior, os cursos de Bacharelado Interdisciplinar da Universidade Federal da Bahia (BI/Ufba) se tornaram, rapidamente, porta de entrada para graduações mais concorridas. Porém, uma decisão do Conselho Acadêmico de Ensino (CAE) quer restringir o acesso ao curso de Medicina pelos próximos três anos. A medida é vista, dentro da universidade, como um ataque à lei de cotas. Já o conselho justifica que há excesso de estudantes matriculados em Medicina.
A unidade da Ufba responsável pela oferta dos cursos de BI, o Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (Ihac), vai recorrer da decisão tomada pelo Conselho Acadêmico. O Instituto vai levar o debate ao Conselho Universitário (Consuni), instância superior ao CAE. Por enquanto, a restrição do acesso à Medicina não está em vigor. Se confirmada, ela só passa a valer a partir do primeiro semestre de 2025.
Para entender o que motivou a decisão do conselho e o embate travado entre a Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) e o BI, é preciso dar alguns passos para trás. Os quatro bacharelados interdisciplinares da Ufba foram criados em 2009, como forma de ampliar o acesso à universidade. Desde então, são disponibilizadas 41 vagas para alunos que finalizam o BI em Saúde e desejam ingressar em Medicina, sendo 32 em Salvador e nove em Vitória da Conquista. Parte dessas vagas é destinada aos alunos que têm direito às cotas.
O Conselho Acadêmico e a Faculdade de Medicina alegam que processos judiciais de alunos não cotistas têm feito com que o número de matriculados no curso cresça significativamente. Em dezembro do ano passado, uma Comissão Especial foi criada dentro do CAE para analisar o tema. Segundo um relatório feito pelo grupo no mês passado, 21 alunos ingressaram em Medicina na Ufba, em 2023, através de decisões da Justiça. O número representa um salto em relação a 2022, quando haviam sido 11 matriculados.
“O Poder Judiciário, ao longo dos anos, tem entendido que o egresso do BI, ingresso via Lei de Cotas, estaria, ao final do curso de graduação, nas mesmas condições que os demais estudantes de ampla concorrência [...] Com essa compreensão firmada, a de que haveria uma cota sob cota, a UFBA tem sido obrigada, por força de liminar, a matricular um número maior de alunos no curso de Medicina a cada semestre”, aponta o relatório o qual o CORREIO teve acesso.
O documento foi utilizado para basear a decisão de restringir o acesso dos alunos do BI ao curso de Medicina pelos próximos três anos. O Conselho Acadêmico considera que o número crescente de decisões judiciais resulta em “um número imprevisível de ingressos semestralmente no curso de Medicina”. Questionada sobre a decisão, a Ufba se limitou a dizer que o tema está sendo debatido entre os conselhos da universidade.
Luís Augusto Vasconcelos, diretor do Ihac, explica que a decisão será avaliada por conselhos superiores. O Consuni deve se reunir no próximo dia 24. "Entramos com recurso e estamos aguardando. Ainda não é uma decisão da universidade, foi apenas uma discussão que passou em um dos conselhos. A universidade é democrática, e temos instâncias de recurso", diz. O Conselho Acadêmico não respondeu às tentativas de contato.
Luís Augusto Vasconcelos
"Acreditamos que a retirada da Medicina é um equívoco. Existe uma questão social, do processo de inclusão, que foi favorecida, pelo BI, aos cursos considerados elitistas, que é o caso da Medicina"
O professor Antonio Alberto da Silva Lopes, diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, diz considerar a restrição dos alunos do BI "extremamente necessária". O diretor detalha quais são os impactos do aumento crescente do número de alunos na unidade.
"O aumento imprevisível no número de estudantes compromete diretamente a qualidade do ensino, afeta a alocação de recursos e gera uma sobrecarga insustentável nas nossas estruturas administrativas e nos campos de prática, prejudicando a saúde de alunos, professores e técnico-administrativos", pontua. O diretor nega que a suspensão de três anos de egressos do BI afete as políticas afirmativas da Ufba.
"Em ambas as formas de acesso, tanto pelo SISU quanto pelo processo seletivo interno via BI, 50% das vagas são destinadas às cotas, sendo 64 vagas pelo SISU e 16 pelo BI (Lei 14723/2023). Portanto, o compromisso com a inclusão e com as políticas afirmativas está garantido, com ou sem a alocação de vagas de Medicina para o processo seletivo interno para concluintes do BI", avalia.
Antonio Lopes
"Como diretor da Faculdade de Medicina e defensor incansável das políticas de ações afirmativas, reitero que a inclusão social e a democratização do acesso são pilares fundamentais da nossa instituição"
Ataque às cotas
Enquanto o conselho e a Faculdade de Medicina se dizem preocupados com o número crescente de alunos, professores e alunos denunciam que a medida ataca a lei de cotas. A lei prevê vagas específicas para candidatos que preencham critérios raciais, socioeconômicos e de escolaridade. Leandro Colling é professor do Ihac e avalia que os egressos dos bacharelados interdisciplinares enfrentam resistência no curso de Medicina.
“O curso de Medicina nunca aceitou muito bem os estudantes do BI. O projeto do Ihac foi acolhido por determinadas unidades e, por outras, não. Por isso, a decisão não surpreende”, avalia o docente. “Ao invés de se pensar alternativas para resolver a questão da judicialização, decide-se, de maneira radical, suspender o ingresso dos alunos do BI. É um absurdo, isso ataca o projeto do Ihac e atinge diretamente as pessoas pretas que estavam conseguindo ingressar em Medicina através do BI”, completa.
Esta não é a primeira vez que as vagas de Medicina da Ufba se tornam alvo de disputas na Justiça. Em setembro, o CORREIO noticiou que um grupo de 40 alunos do BI entraram com processo judicial depois que nove vagas do campus de Vitória da Conquista não foram disponibilizadas para os egressos do BI. Segundo o advogado Gustavo Azevedo, que representa o grupo, o processo ainda não foi finalizado.
Ele próprio é, além de advogado, estudante de Medicina egresso do bacharelado interdisciplinar. Segundo ele, o embate não é novidade. “Desde 2010, tentam acabar com o egressos do BI no curso de Medicina. É uma questão estrutural, em que os estudantes são discriminados quando entram na Faculdade de Medicina”, afirma. A notícia de que o conselho planeja restringir o acesso dos estudantes do BI ao curso de Medicina preocupa os alunos.
"É muito doloroso e desgastante ver a que ponto está chegando o desmonte do BI. É algo nitidamente programado por parte de uma insatisfação de uma faculdade que é, ainda, extremamente elitista. Há uma resistência muito grande em aceitar estudantes do BI e de outras realidades", desabafa um aluno. Os estudantes, agora, aguardam que o tema seja novamente debatido, dessa vez no Conselho Universitário.