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Mais de um ano: insegurança acaba com as aulas à noite em escola estadual de Mussurunga


 

Pouco mais de 50 alunos do EJA foram prejudicados

  • Bruno Wendel

Publicado em 17/06/2024 às 05:00:39
Guerra entre facções acaba com aulas à noite em escola estadual em Mussurunga. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Quando não tira vidas, a violência armada ceifa sonhos. As trocas de tiros entre o Comando Vermelho (CV) e o Bonde do Maluco (BDM) acabaram de vez com as aulas noturnas da Escola Estadual Raul Sá, em Mussurunga I. Os relatos dão conta de que pouco mais de 50 alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), em sua maioria pais e mães de família, não foram mais às aulas, com medo de serem atacados pelo BDM, facção que controla o tráfico em Mussurunga – boa parte deles mora em Vila Verde, área de atuação do CV. Além disso, neste fogo cruzado, estão também os docentes, que, apavorados, abandonaram a unidade de ensino.

“Tudo começou no ano retrasado, quando a guerra entre eles (traficantes) passou a ser quase todo o dia e também perto do colégio. Aí, os professores, que chagavam ou saiam de carro corriam risco de bala perdida.  Mesmo sabendo disso, tentei uma vaga lá, mas não consegui. O pessoal da secretaria disse que eu teria que ir para outro colégio, pois não haveria mais as aulas à noite”, declarou uma diarista de 54 anos, moradora de Vila Verde, que tentou no início do ano passado o EJA na Escola Estadual Raul Sá.

Amedrontada, a diarista passou 2023 sem estudar e permanece assim até hoje. “Mandaram tentar uma vaga em São Cristóvão, mas a situação de lá é bem pior. O colégio fica numa ‘bocada’ do BDM, diferente do Raul Sá. Por causa disso, já perdi um emprego este ano. Tenho experiência em serviços gerais, mas quando fui à Prefeitura-Bairro não tinha escolaridade suficiente e não fui chamada para a seleção”, disse ela.

Insegurança encerra aulas à noite no Colégio Estadual Raul Sá. Crédito: Marina Silva/CORREIO

A reportagem esteve na Escola Estadual Raul Sá, localizado na Rua Doutor Arthur Couto, onde à noite estudavam pouco mais de 50 alunos entre 18 e 60 anos, sendo que a grande parte era formada por trabalhadores que “queriam estudar para melhorar de vida”. “Eram pedreiros, diaristas, seguranças, mas, como se não bastassem os problemas do dia a dia, como o cansaço, filhos doentes, eles ainda enfrentavam a questão da insegurança, o medo de não conseguir voltar para suas casas”, relatou um docente, confirmando o fim das aulas noturnas no ano passado. “Os professores foram redistribuídos para outras unidades de ensino, algumas daqui mesmo, do bairro”, complementou. Atualmente, a unidade tem 767 estudantes, distribuídos nos turnos matutino e vespertino.

Transferências

Segundo ele, o motivo principal foi a evasão escolar gerada pelos conflitos armados entre BDM e o VC. “Era preciso ter uma certa quantidade de alunos para se ter aula. Às vezes, de 50, só havia dois, três, às vezes ninguém em dias de tiroteio. São dois grupos que se digladiam violentamente e a todo momento. E ainda é assim”, contou o professor.

Ele relata ainda que muitos alunos iam andando de Vila Verde até o colégio. “Vinham pela Aliomar Baleeiro. Só que no trajeto, era preciso passar em frente à Colinas de Mussurunga, que fica atrás de um grande supermercado, justamente onde está concentrado o pessoal de um grupo (BDM). Quem não abandonou foi transferido para o Pinto de Aguiar”, disse o docente, fazendo referência ao Colégio Estadual Pinto de Aguiar, que também tem o EJA e está na mesma rua do Raul Sá.

Mas nem todos os alunos deram sorte. A reportagem conversou com uma senhora que estava no Raul Sá e teve que ir para o Pinto de Aguiar. No entanto, ela não ficou nem um mês na nova unidade. “Logo na primeira semana, quando souberam que eu era daqui, do Vila Verde, começaram a me ameaçar. Me chamavam de ‘alemona’. Um dia cheguei na sala e estava escrito no quadro que iam cortar a minha cabeça”, contou. Ela disse que na mesma hora procurou o diretor e relatou a ameaça de morte. “Ele disse apenas que se acontecesse novamente, que era para chamá-lo. Mas quem vai esperar tempo ruim? Não voltei mais lá”, disse ela. Desestimulada, ela ainda não retomou os estudos.

Guerra entre BDM e CV encerra aulas noturnas no Colégio Estadual Raul Sá. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Má fama

As consequências dessa violência são antigas. “Há três anos, um aluno foi morto. Chamaram ele para tirar uma foto no fundo da escola, mas na verdade deram mais de 30 tiros nele. Estamos numa área de risco. Enquanto estivermos aqui dentro, estamos seguros, porque aqui estudam os filhos, as mulheres, as mães deles. Mas é só cruzarmos o portão que somos vulneráveis como todo mundo”, pontuou o professor.

Apesar dos relatos do colega, uma professora negou o clima de insegurança no entorno da escola e disse que tudo isso se deve à fama que a instituição levou após o assassinato de um dos alunos no passado. “Ele usava a farda quando foi morto. A escola ficou estigmatizada por isso”. O crime aconteceu no 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.

O estudante Diego Jesus de Oliveira, 17 anos, foi assassinado a tiros na Avenida Aliomar Baleeiro. Ele estudava à tarde e voltava para casa, em Vila Verde. “Sequestraram, desbloquearam o celular e filmaram tudo o que fizeram com ele”, completou uma outra professora.

Outros colégios

Uma outra professora do colégio pontuou que a insegurança é enfrentada também por outros colegas e estudantes  no bairro. “Isso não é exclusivo do Raul Sá, é de toda rede estadual em Mussurunga”. De acordo com ela, a violência armada causou o fim também das aulas à noite do Colégio Estadual Professora Leila Rubens Fonseca. A unidade de ensino fica na Rua Maria de São Pedro, no setor J, uma região mais afastada do centro do bairro. “Muitos alunos eram do Bairro da Paz, onde é a mesma facção daqui (BDM), por isso o motivo não foi a questão da guerra. Eles não vieram mais porque passaram a andar muito para cruzar a Paralela (Avenida), porque a passarela foi colocada para mais distante com a estação do metrô. Isso já tem mais de dois anos”, argumentou um funcionário. Mas uma moradora rebateu. “Isso é o que ele diz. Rolava é tráfico pesado lá dentro, por isso que acabou”, disse ela, sem dar mais detalhes.

Com o fim das aulas noturnas no Raul Sá e no Leila Rubens Fonseca, restam em Mussurunga apenas dois colégios com o Educação de Jovens e Adultos. Um deles é o Pinto de Aguiar, já citado nesta matéria, com o caso da estudante do Vila Verde, ameaçada de morte na sala de aula.

Procurados, professores negaram qualquer situação de violência - atualmente, dos 275 alunos, 135 estão no EJA. No entanto, moradores reforçaram a sensação de insegurança. No ano passado, um estudante, que residia em Vila Verde, precisou da polícia para deixar a escola. “Uns caras de moto rondavam a escola atrás dele. Ele era irmão de um dos responsáveis pelo assassinato de um homem, após deixar um show de arrocha na Avenida Paralela”, lembrou um morador. No dia 6 de agosto de 2023, Uanderson Santana Santos, 26 anos, morador de Mussurunga, foi morto a facadas, pouco depois de deixar o Parque de Exposições. O autor foi preso em flagrante.

Colégio Pinto de Aguiar ainda tem aulas à noite e também episódios de insegurança . Crédito: Marina Silva/CORREIO

Dos 736 estudantes, 150 fazem o EJA no Colégio Estadual Padre Palmeira, na Rua Adriano de Azevêdo Pondé. Funcionários também negaram que a violência externa faça parte do cotidiano da escola. Mas não é o que dizem os alunos. “Só porque puxei o braço de um colega, para entrar na sala, ele disse que ia atirar na minha cabeça. Tive que ligar para o meu padrasto vir me buscar”, relatou o estudante.

Posicionamentos

A reportagem tentou repercutir com os órgãos competentes a questão da insegurança dos colégios estaduais de Mussurunga, em especial o do Raul Sá. O Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado da Bahia (APLB) disse que os professores e estudantes estão numa “zona de perigo” e que outras situações relacionadas à violência afetam a categoria. “Professores falam do medo à noite, dos tiroteios, mas também dos assaltos quando saem das escolas. Isso faz com que aumente a evasão escolar e caia a frequência, quando não fecha. Eles acabam não vindo e, consequentemente, os alunos também”, declarou o coordenador-geral da APLB, Rui Oliveira.

De acordo com Oliveira, a insegurança no entorno das instituições de ensino tem causado também afastamentos provisórios, comprometendo o ano letivo. “Eles [professores] têm fobia e acabam se afastando. São diversos, entre escolas estaduais e municipais em todo o estado. A gente pede segurança nas escolas, em qualquer situação de facção, a orientação é preservar vidas, é não ter aula”, declarou.

Já a Secretaria da Educação do Estado da Bahia (SEC)  enviou nota informando "seu compromisso com a Educação de Jovens e Adultos (EJA)". "Em 2024, o Estado ampliou o número de unidades escolares que ofertam essa a modalidade de ensino de 677 para 773 em toda a Bahia, passando de 110.988 para 141.028 vagas. No município de Salvador, a oferta de vagas nas escolas estaduais para estudantes EJA foi ampliada de 24.618 para 25.235", disse. 

Em posicionamento, a SEC disse que "cabe ressaltar que a oferta de Ensino Fundamental é responsabilidade do município e, conforme determina o artigo n° 10 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) n° 9.394/1996, o Estado assegura a oferta a partir da colaboração com os municípios que manifestam a incapacidade de manutenção das turmas". 

A SEC informou, ainda, que não há escola estadual próxima à localidade de Vila Verde. "Quanto às vagas para a EJA turno noturno, no bairro de Mussurunga, destaca que a oferta está garantida no Colégio Estadual Padre Palmeira, localizado a 500 metros do Colégio Estadual Raul Sá", finalizou. 

A reportagem procurou também a Secretaria de Segurança Pública e a Polícia Militar da Bahia, para saber o que cada órgão tem a dizer sobre a denúncia, mas nenhum deles respondeu até a publicação desta reportagem.

Colégio Pinto de Aguiar ainda tem aulas à noite e também episódios de insegurança . Crédito: Marina Silva/CORREIO

Insegurança fecha 22 escolas neste ano

Por causa da falta de segurança, 22 escolas municipais deixaram de funcionar neste ano por conta dos tiroteios na capital baiana. Ou seja, foram mais de 7 mil alunos que ficaram um ou dois dias sem aula de fevereiro até o dia 29 de maio – com exceção da escola de Vila Verde que ficou 25 dias fechada. O calendário letivo foi interrompido também por causa dos arrombamentos: foram seis no total. Sobre os colégios estaduais, ao menos dois deles também não abriram os portões por falta de segurança.

De acordo com a Secretaria Municipal de Educação (Smed), a grande maioria dos casos está na região do Subúrbio e relacionada com a guerra entre as facções. Mas foi no bairro de Vila Verde onde houve a situação mais crônica. Com os confrontos entre o Bonde do Maluco (BDM) e o Comando Vermelho (CV), a Escola Municipal Laura Sales de Almeida não funcionou 25 dias.

Escola Laura Sales de Almeida ficou 25 dias fechada por causa da briga entre o CV e o BDM. Crédito: Reprodução

Por pouco não foi de vez. Apesar da situação normalizada, os professores e funcionários cogitaram a possibilidade de não retornarem à escola. Os pais de alunos chegaram a ser convocados pela direção para uma reunião, em que seria comunicado o fechamento definitivo do prédio e a transferência dos alunos para a Escola Municipal Padre Manuel Correia, em Mussurunga. Em protesto, os pais não foram. Isso porque os filhos poderiam ser da mesma forma vítimas da violência, por causa da rixa entre Vila Verde (CV) e Mussurunga (BDM).

Em nota, a Smed informou que “chegou a haver proposta de transferência da unidade de ensino, que, após análise, foi afastada, uma vez que o clima de tensão se arrefeceu”.