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Festa do Marujo, na Feira de São Joaquim, tem demonstração de fé há 30 anos


 

Evento é realizado anualmente pela feirante mais velha do mercado

  • Brenda Viana

Publicado em 02/09/2024 às 05:00:00
Marujada na Feira de São Joaquim. Crédito: Marina Silva / CORREIO

Em uma portinha escondida, dava para observar o azul, o branco, várias flores amarelas, um barco gigante e uma entidade negra arrumada em cima da embarcação prestes a navegar pelos becos e vielas da Feira de São Joaquim na manhã deste domingo (1º), em Salvador, com banda puxando pontos de Umbanda e Candomblé, e a fé sendo exaltada a cada barraca.

A Festa de Marujo do Olho Vivo começou justamente quando os pingos de chuva foram embora e o sol chegou para esquentar o evento, que já existe há mais de 30 anos na feira - segunda casa dos filhos de Santo soteropolitanos.

Dona Dadá, de 81 anos, a feirante mais velha de São Joaquim, realiza a parte profana da Marujada ao lado da família, 7 filhos e alguns vários netos, já que não recorda direito quantos são, mas que estavam acompanhando a líder mais antiga.

O cortejo pelo mercado ao ar livre começou atrasado, às 12h10, ao som de ‘Marinheiro Só’, composição de uma sambista mulher, a paraibana Clementina de Jesus. Nessa caminhada, Dona Dadá contou que começou a Festa para Marujo porque sentiu que precisava fazer e agradecer a entidade sagrada, mas tudo com muito sacrifício.

“Foi com a ajuda da clientela mesmo, sabe? Eu faço tudo isso aqui com muito amor. É um legado que eu sei que comecei há 30 anos, mas que vai ficar para a Feira de São Joaquim. Aqui tem 80% do ‘mulherio’ como chefe das bancas, barracas e chefiando as famílias, como foi o meu caso”, disse Dadá.

Dona Dadá, criadora da Marujada do São Joaquim. Crédito: Marina Silva / CORREIO

Antes de colocar o barco no cais da Feira, oito dias antes, o terreiro Centro de Ogum da Cana Verde, que fica no Largo do Tanque, faz a celebração em homenagem a Marujo. No local, são realizadas as oferendas, rituais em prol à entidade ‘beberrão’ das águas.

Enquanto isso, entre dois a quatro meses antes, a família de Dona Dadá se prepara para fazer 300 pratos de feijoada para distribuir durante o evento da Marujada. Segundo Denise Andrade, filha do meio da matriarca da família, eles tentam arrecadar em torno de R$ 10 mil, já que precisam comprar os alimentos, pagar o samba de viola, as baianas e outras peças importantes para a realização do evento.

"A gente tenta juntar metade durante todo o ano, e a outra metade recebemos doações, clientes fiÉis que já fazem parte da feira também vão ajudando como podem, contribuem ao longo do ano. Aí, pagamos o samba, as baianas e o restante é por nossa conta. A gente vende cerveja e vamos arrecadando como pode. São entre 10 a 15 pessoas que trabalham para colocar o evento na Feira", explica.

Filho de Ogum, Mário Silva é frequentador da barraca de Dona Dadá há muitos anos. Segundo suas lembranças, pode ter começado a curtir a Marujada ainda na adolescência e persiste até os dias de hoje, com 55 anos. Visivelmente emocionado com a grandeza que a festa foi tomando ao longo dos anos, o frequentador assíduo rasga elogios à Feira São Joaquim e, claro, à criadora do evento.

"Eu vejo puxando o cortejo, segurando o barco com os outros, cantando as músicas para Marujo e há cinco anos que virei um dos responsáveis pelo cortejo. É emocionante ver que a Feira tem ficado cada vez mais respeitada, principalmente para nós, que somos de uma religião de matriz africana. A gente clama para que isso tudo não se perca com o tempo."

Mário Silva na Marujada. Crédito: Brenda Viana / CORREIO

Diretor financeiro da feira e presidente do Bloco Vem Sambar, o amigo de Dona Dadá, Jairo da Mata, conta ao CORREIO que tem observado com bons olhos o crescimento do evento ao longo dos últimos anos. Para ele, Dadá da Feira tem uma importância fundamental para a parte cultural da região da Calçada, Água de Meninos, visto que ela eleva o nome do mercado pela Cidade Baixa.

"Dadá preserva a identidade da Feira de São Joaquim. Mãe exemplar, comerciante impecável, além de ser uma figura materna, que recebe todo mundo com carinho. É a referência para esse mercado. Coloca a religião dela em primeiro lugar e a fé sempre inabalável", elogia.

É de conhecimento quase geral que a Feira de São Joaquim é, praticamente, o lugar sagrado para quem é filho de Santo. Há feirantes evangélicos, ateus, católicos, mas em sua maioria, principalmente aqueles que vendem adereços e outros produtos de matrizes africanas, são adeptos do Candomblé, Umbanda e Quimbanda. 

Cortejo pelas ruas da Cidade Baixa. Crédito: Marina SIlva/ CORREIO

Para Denise, por ter vivido pelas redondezas do mercado, ela nunca sofreu nenhum preconceito, mas deixa claro que a vizinhança respeita cada um. "A gente procura respeitar cada um para sermos respeitados."

O samba, mesmo começando cedo, acaba também cedo. Às 18h, o batuque deu seus últimos acordes, o agogô com seus sinos também ficaram em silêncio, dando lugar ao som da vassoura limpando a região, os sacos de lixo sendo levados de um lado para o outro e a feira ficando arrumada para a chegada dos comerciantes que vão começar mais uma semana de trabalho.

"Quando todo mundo chega no dia seguinte, já vê tudo arrumado, tudo limpo, não deixamos nada fora do lugar justamente para não ter ninguém falando nada. A gente mesmo observa que cristãos não vêm domingo, dão espaço para a gente e fica tudo tranquilo", detalha.

Depois da saída do cortejo, a entidade desceu e incorporou em Dona Dadá. No cais da Feira, ele fez sua reverência no mar, jogou Alfazema nas pessoas que estavam perto, abençoando os caminhos, além da água do mar que também foi jogada entre os mais próximos. A família bateu cabeça três vezes no chão, pediu a benção e Marujo foi embora.

Marujo em terra por meio de Dona Dadá. Crédito: Marina Silva / CORREIO

O barco retornou para parte do concreto e seguiu em direção ao meio do mercado, que começou com o sambão de lei. Dona Dadá, quase uma vereadora da feira, passava soltando beijos, abraços pelos colegas e amigos que conquistou ao longo dos mais de 50 anos em São Joaquim.

No entanto, aos 81 anos, a filha do meio confessa que não ficará à frente do legado, e sim, o filho mais velho. Para ela, a parte importante é a religiosa, enquanto a profana, Denise vai deixar para o restante da família. Até então, Dona Dadá deixou claro que não vai embora para o plano espiritual tão cedo e quer continuar sendo chamada pelo apelido famoso da Feira: "Sou a Dona Dadá do Pirão gostoso!".

Dona Dadá do Pirão, aos 81 anos. Crédito: Marina Silva / CORREIO