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Feita de escrava por 44 anos na Bahia, mulher teve útero retirado e não podia sair de casa


 

Conheça a história de Maria*, que foi resgatada de trabalho análogo à escravidão em Porto Seguro aos 50 anos

  • Larissa Almeida

Publicado em 24/09/2024 às 05:00:00
Vítima não se lembra do passado com a família. Crédito: Divulgação MPT

No ano em que a pequena Maria*, de seis anos, chegou a Porto Seguro, no extremo sul da Bahia, a abolição da escravatura já tinha sido sancionada há mais de nove décadas. A lei, no entanto, não foi um impeditivo à vida que ela levaria por 44 anos, inserida em condições de trabalho escravo: sem direito ao próprio corpo ao ter o útero retirado sem consentimento, sem direito a sair de casa, a ter um nome verdadeiro, sem acesso à educação e sem direito à memória. Foi dessa situação que, agora aos 50, Maria foi resgatada após atuação conjunta do Ministério Púbico do Trabalho (MPT), Ministério do Trabalho e Emprego, Polícia Federal e outros órgãos. Ela deve receber R$ 500 mil em indenizações.

A história da chegada de Maria na Bahia é incerta. Familiares dos patrões que a mantiveram como escravizada apontam que a menina chegou com o pai e a irmã em uma hospedaria no município de Canavieiras, após uma longa viagem de navio que teve como origem da rota um país do continente africano. Maria não sabia falar português e o pai, sem ter condições de manter as filhas, abandonou-as no estabelecimento. Enquanto a irmã foi adotada por uma mulher, Maria foi levada para Porto Seguro com Heny Peluso Loureiro, que viria a ser sua patroa.

Desde os primeiros momentos da chegada na casa de Heny, Maria foi tratada não como uma criança que precisava de cuidados, mas como uma escravizada, ficando encarregada de limpar, cozinhar e servir tanto em Porto Seguro como na fazenda da família, em Itabuna.

“Ela não tinha uma certidão de nascimento, então essa senhora fez o documento com nomes fictícios do pai e da mãe. Ela teve muita dificuldade para aprender português e não tem nenhuma memória de antes. Não lembra do pai e nem da família. Ela tinha um quartinho para dormir na casa da patroa, mas nunca foi dada a ela a permissão de sair. Ela só podia sair junto com Heny e, com o tempo, perdeu a vontade. Quando se cresce sem liberdade, isso acaba sendo natural”, conta Marta Barros, advogada da vítima.

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Sem acesso à educação, Maria não aprendeu a ler, escrever ou reconhecer cédulas de dinheiro. Por causa disso, passou por duas situações emblemáticas de violação de direitos: a perda do útero e a solicitação de benefícios em seu nome, sem que ela nunca tenha consentido nenhum dos dois. “Ela foi submetida a uma cirurgia de retirada do útero sem que entendesse o que isso implicava. A família alegou que ela estava com mioma, mas ainda assim ela tinha que saber e entender que não poderia mais ter filho e que isso ia impactar a vida dela toda”, defende a advogada.

“Nessa época em que eles tiraram o útero dela, ela ficou recebendo um auxílio por incapacidade temporária, mas ela nunca teve acesso a esse dinheiro também. Eles chegaram a solicitar o Bolsa Família, mas, no processo, funcionários do Centro de Referência da Assistência Social (Cras) perceberam algumas inconsistências”, acrescenta Marta Barros.

Momento-chave

É nesse ponto que o momento de virada na vida de Maria começa a ter início. Após a morte de Heny, que havia prometido a ela uma casa antes de morrer, Maria começou a ser um incômodo para os filhos da patroa: Joaquim Neri Neto e Maiza Loureiro Nery Santos. Durante uma visita do Cras, Joaquim chegou a separar um espaço na casa no intuito de enganar os assistentes sociais ao afirmar que Maria vivia ali, mas foi desmascarado e denunciado. Como resultado, a vítima foi expulsa da casa pouco tempo depois.

Desalojada, Maria foi amparada por uma amiga que conheceu no próprio trabalho, que chegou a ajudá-la a morar em uma casa de aluguel. Depois da investigação e de tentativas frustradas de acordo extrajudicial, foi necessário ingressar com uma ação civil pública. Em paralelo, a advogada de Maria ingressou com um processo na Justiça do Trabalho cobrando o pagamento das verbas trabalhistas.

No fim do mês passado, o MPT e os representantes do espólio da patroa e os dois filhos chegaram a um acordo, que teve a participação da vítima. No documento assinado por todos e já homologado pela Justiça do Trabalho, onde a ação corria, os empregadores não reconhecem culpa. Segundo Camilla Mello, procuradora do MPT que atuou no caso, eles defendem que a vítima era “como se fosse alguém da família” e, por essa razão, não haveria necessidade de pagamento de salário.

Essa justificativa, segundo Camilla Mello, não surte nenhum efeito diante do caso. “A eventual afetividade inerente ao trabalho doméstico jamais justificará a exploração. A alienação da força de trabalho somente é permitida mediante remuneração e garantia dos direitos básicos, e a investigação do MPT apurou um trabalho verdadeiramente indigno, degradante, que coisificou a existência de um ser humano. Configurou-se o trabalho análogo ao de escravo principalmente em face da condição degradante, que nega a dignidade humana, e das jornadas exaustivas, uma vez que a vítima estava 24h à disposição da família dos patrões, todos os dias da semana, todos esses 44 anos”, ressalta.

Apesar do não reconhecimento, os patrões se comprometeram a pagar R$500 mil a título de indenização por danos morais e a regularizar a carteira de trabalho de Maria. O valor terá que ser quitado até fevereiro de 2025, prazo limite para a venda de dois imóveis que pertenciam à empregadora, sob pena de multa de 50% desse valor.

Vida iniciada aos 50

O primeiro contato de Maria com a advogada Marta Barros se deu após a denúncia feita pela amiga. Introspectiva e com dificuldade de fala, aquele foi o momento em que Maria começou a entender o que tinha vivido, conforme conta a advogada. “Ela ficou muito emocionada quando começou a relembrar algumas situações. Quando ela relatava, ali ela entendia que tinha sido vítima de violação de direitos. Ela tem muita dificuldade de leitura externa por conta dessa bolha em que viveu”, afirma.

Durante o processo trabalhista e judicial, que durou cerca de dez meses, Maria foi amparada por uma rede de apoio e está trabalhando como doméstica, de carteira assinada, além de ter iniciado os estudos em uma escola e se alfabetizado. Ela também está vivendo o primeiro relacionamento amoroso. Para a advogada, que se tornou uma amiga, a alegria de iniciar um novo capítulo da vida de Maria é uma alegria para si também. “Eu me sinto muito honrada hoje de ter feito parte de tudo isso”, declara.

*Maria foi o nome fictício atribuído à vítima, com intenção de preservar sua identidade verdadeira.