Em média, 81% do ano letivo de estudantes de Salvador é afetado por tiroteios
Dados do Instituto Fogo Cruzado apontam que 161 dos 200 dias letivos registraram tiroteios nas proximidades de uma escola pública
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Elaine Sanoli
A frequência dos episódios de violência tem modificado a rotina de estudantes soteropolitanos ao longo dos últimos dois anos. Entre 04 de julho de 2022 a 30 de agosto de 2024, Salvador registrou uma média de 161 dias letivos afetados por pelo menos um tiroteio no entorno de escolas públicas, segundo dados do Fogo Cruzado, em parceria com a Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, publicados nesta terça-feira (05). São 81% dos 200 dias letivos anuais comprometidos pela violência.
Quando em agosto de 2022, alunos de uma creche, no bairro do Nordeste de Amaralina, precisaram ficar agachados para desviar das balas de um tiroteio que acontecia nas imediações da instituição, a contagem dos 728 tiroteios que aconteceram a uma distância de até 300 metros dos colégios da cidade estava apenas no início. Nesse 26 meses analisados, a média ficou em 30 tiroteios por mês. Foram consideradas 593 escolas estaduais e municipais, dessas, 75% foram afetadas pela ocorrência de 10 ou mais tiroteios em seus entornos, em horário de aulas, das 6h às 22h.
“Os dados da Bahia são profundamente alarmantes. O que a gente encontrou é muito assustador. Quando a gente pensou em fazer esse levantamento, eu estava na dúvida se iríamos encontrar um número efetivamente significativo, mas fiquei muito surpresa”, expressa a diretora de Dados e Transparência do Instituto Fogo Cruzado, Maria Isabel Couto.
De acordo com a especialista em segurança, os dados refletem como todas as esferas são afetadas pela insegurança urbana e revelam uma escalada da violência. “Isso é muito grave, porque esse número está mostrando que não é exceção, é uma rotina que precisa ser enfrentada. É importante dizer que está crescendo. No segundo semestre de 2022, 72% dos dias letivos foram afetados; em 2023 inteiro, [foram] 84%; em 2024, 87%", acrescenta.
As consequências dos conflitos armados na cidade não apenas afetam o cotidiano dos estudantes, reduzindo as oportunidades de aprendizado, como também se reverberam no futuro educacional deles. “Isso pode comprometer depois as chances de acesso à universidade, de ter uma vida melhor. No final a própria sociedade acaba pagando as consequências com uma população menos educada”, argumenta o professor de estratégia de Gestão Pública do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e da escola de administração da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Sandro Cabral. “A sociedade acaba tendo que incorrer em custos por conta da baixa produtividade decorrente de uma educação deficiente e essa violência contribui para agravar essa situação”.
As secretarias de educação municipal (Smed) e estadual (Sec) foram procuradas, mas não houve retorno até a publicação desta matéria.
Violência com endereço
Dentro dos mais com mais ocorrências de tiroteios nas redondezas de escolas públicas, os mais atingidos são: Fazenda Grande do Retiro, Beiru/Tancredo Neves e Castelo Branco. Foram registrados, durante os 26 meses analisados, 39 e 27 tiroteios, respectivamente.
A explicação para que bairros periféricos da cidade sejam mais atingidos, é a disputa por territórios de tráfico por grupos criminosos, em áreas que acabam ficando esquecidas pelo poder público. “[Nessas regiões] é onde você tem a ausência do Estado e oportunidade para o crime organizado se instalar e uma a disputa por territórios, não só em Salvador, mas outras cidades da Bahia e no Brasil, que vêm sendo palco de conflito entre diferentes facções. Aquelas facções que vêm de São Paulo e do Rio e mais as facções locais, elas entram numa espiral crescente de violência. Isso acaba sendo bastante observado em regiões menos favorecidas, onde a ausência do estado não é um convite para a instalação do crime organizado”, explica.
“[Nesses bairros] você tem concentração de pobreza e uma população negra acima da média da capital e uma concentração muito grande de operações policiais de violência policial. Um elemento que tem que ser chamado atenção é a possibilidade é dessa violência que está afetando as escolas ser inicializada pelo racismo, como um elemento de manutenção da desigualdade de oportunidade em Salvador”, opina Maria Isabel.
Confira a lista de locais onde as escolas foram mais afetadas por tiroteios:
- Fazenda Grande do Retiro
- Beiru/Tancredo Neves
- Castelo Branco
- Engenho Velho da Federação
- Federação
- Pernambués
- IAPI
- Pero Vaz
- Lobato
- Nordeste de Amaralina
Violência policial
O mapeamento partiu do número de tiroteios registrados na cidade durante o período, em 2.793, e cruzou com a localização de escolas municipais e estaduais. Desses, cerca de 26% ocorreram próximo a uma escola (728), o que representa um em cada quatro registro dos disparos. Desses, 315 ocorrências foram durante ação ou operação policial, 43% do total.
“Isso está chamando atenção para desproporção de tiroteios envolvendo as polícias que acontecem no entorno de escolas. A gente precisa pensar em protocolo de ação policial para proteger o ambiente escolar e não colocar em risco os alunos e comunidade escolar que trabalha nas escolas”, opina.
O CORREIO entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública (SSP) da Bahia, mas foi informada de que a pasta não irá comentar os dados.
A pesquisa
O Fogo Cruzado utilizou dados do fornecidos pelas secretarias de educação à Defensoria Pública da Bahia, por meio da Especializada de Direitos Humanos e do Núcleo de Equidade Racial. Foram levados em consideração as informações do próprio instituto no monitoramento da violência armada, o maior da América Latina, contendo dados de usuários no aplicativo, em grupos de redes sociais e informações produzidas pela imprensa.
Além de Salvador, o Rio de Janeiro é única cidade onde o levantamento do impacto da violência armada afeta a educação é realizado, mas leva em consideração escolas e creches tanto públicas quanto privadas.
*Com orientação da subeditora Carol Neves.