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Domingos Sodré: o ex-escravizado nigeriano perseguido em Salvador por suas 'adivinhações' e 'feitiçarias'


 

Livro sobre vida de Domingos ganhou nova edição que será lançada em agosto

  • Nilson Marinho

Publicado em 08/07/2024 às 05:02:15
Nova versão do livro será lançado em agosto. Crédito: Reprodução/Companhia das Letras

O chefe de polícia João Antônio de Araújo Freitas Henriques recebeu uma denúncia. Ouviu da boca de um funcionário da Alfândega que um africano liberto estava sendo “agraciado” por outros negros pelas suas “adivinhações” e “feitiçarias”.

Em troca dos seus trabalhos, às terças e sextas-feiras, Domingos Sodré, de 70 anos, estaria recebendo objetos roubados por escravos, de seus senhores. A autoridade policial não podia permitir que aquilo acontecesse e ordenou uma operação repressiva para prender o africano.

A noite se aproximava da Baía de Todos os Santos no dia 25 de julho de 1862, quando dois inspetores e um tenente-coronel espreitaram um sobrado de quatro janelas, de número 7, localizado na Rua Santa Theresa, hoje bairro 2 de Julho, em Salvador. Era ali que Domingos Sodré morava, provavelmente com outra dezena de africanos.

Ao invadirem a residência, as autoridades deram de cara com diversos objetos de madeira e de metal, a exemplo de chocalhos e espadas curtas, além de roupas decoradas com búzios e outras porções de artefatos ritualísticos. Os materiais foram descritos em um relatório policial como sendo de "feitiçaria e de dança de pretos".

Além disso, os inspetores e o tenente também localizaram colares de corais e ouro, e correntes e anéis de prata, que eles acreditavam terem sido roubados. O sobrado foi revirado até a chegada da noite, quando foi impossível continuar a operação a luzes de vela.

Na companhia de Sodré, foram presos quatro africanos adultos e um escravo adolescente nascido no Brasil. Entre os detidos, estava Delfina, provavelmente a companheira do denunciado chefe do quilombo urbano. Todos foram enviados para a Casa de Correção, que ficava no forte de Santo Antônio.

Em vida, o africano relatou ter nascido em Onim, como era chamada a cidade de Lagos, na Nigéria, e vendido junto aos pais para Bahia, onde desembarcou na década de 1810. Também relatou ter sido escravo no engenho Trindade, em Santo Amaro, no Recôncavo baiano. É provável ter chegado a Salvador para servir à família de seus senhores e que tenha conseguido sua alforria aos 45 anos mais ou menos.

Domingos talvez tenha sido babalaô, um sacerdote de Ifá, como os indícios históricos apontam. Mas não se sabe, no entanto, o seu grau de treinamento para exercer o sacerdócio iorubá. É possível que Domingos tivesse feito pelo menos uma parte da formação de adivinho em sua terra natal.

A história do africano foi contada no livro Domingos Sodré, um sacerdote africano, originalmente publicado em 2008 pelo historiador João José Reis. No próximo mês, a obra ganhará nova edição revista e ampliada. O livro discute a repressão policial contra as atividades de culto deste e de outros pais e mães de santo, curandeiros, adivinhos.

Domingos foi por isso preso em 1862 e quase expulso do país, não fosse a intervenção de poderosos apoiadores. A vida dele no candomblé oitocentista serve como uma porta de entrada para o historiador explorar a conturbada história dessa religião no período, mas também para discutir a formação e dinâmica da comunidade africana, seus escravos e libertos.

historiador João José Reis. Crédito: Divulgação

Entrevista

Quais foram os maiores desafios que você encontrou ao pesquisar a vida de um sacerdote africano em um Brasil escravocrata do século XIX, e como conseguiu superar as lacunas documentais que dificultam muitas vezes a reconstrução de biografias de pessoas negras e escravizadas dessa época?

Personagens com esse perfil – africano escravizado ou liberto – demandam paciência do pesquisador na busca por informações documentais. Pois os arquivos da escravidão, em geral, documentam suas vidas em momentos especiais, apenas. Naturalmente, o escravo era registrado enquanto propriedade em arrolamentos eclesiásticos e fiscais. O assento de batismo é uma fonte típica a informar o nome do escravo, o de seu dono, de seu padrinho e sua madrinha, além do local onde residiam. Da mesma forma, o escravo era arrolado como propriedade inventariada após a morte do senhor. Se conseguia a sua alforria, há boas chances de esta se encontrar registrada no livro de notas de um tabelião. Se o escravo liberto prosperava, seus bens imóveis e semoventes (escravos) também serão registrados em livros de notas. Ao se preparar para a morte, muitos libertos ditavam um testamento, e ao morrer, seus bens eram inventariados para pagamento de dívida e distribuição entre herdeiros. Seu nome também aparecerá registrado no livro de óbito de sua freguesia, esclarecendo muitas vezes as circunstâncias da morte. Se durante a vida o escravo ou liberto foi preso por algum crime ou contravenção, podemos encontrá-lo na correspondência policial, e se sua prisão redundou em processo, teremos os documentos do inquérito e do julgamento do caso. O próprio liberto podia iniciar um processo judicial contra alguém. Por regra geral, ao se tornar pessoa liberta, as chances de ter sua vida documentada nos arquivos aumentam, e aumentam ainda mais se ela prospera na vida material.

Pois bem, esse quadro, acrescido de outros detalhes e fontes, favoreceu a minha reconstrução da vida de Domingos Sodré desde seu desembarque na Bahia em torno do início da década de 1820, vindo de Lagos (na Nigéria), onde nascera, até sua morte em 1887. Encontrei informações sobre Sodré em cada um dos conjuntos documentais acima citados, além de outros que seria cansativo listar. Minha pesquisa, além de muitas outras sobre biografias africanas têm demonstrado ser um mito a ausência de dados sobre tais personagens. Há lacunas, há, mas resta muita coisa. Contudo, conforme disse acima, esses personagens precisam cumprir certos critérios para se tornarem visíveis. Muitos desses critérios, aliás, se aplicam a personagens brancos e livres, pessoas comuns que não faziam parte da elite. Ou seja, assim como havia africanos ricos e bem documentados, havia brancos pobres e pouco ou nada documentados.

A quais fontes bibliográficas você recorreu e quanto tempo de pesquisa foi necessário para a criação do livro?

Não recorri a fonte bibliográfica porque nenhum outro livro ou artigo havia sido antes escrito sobre Domingos Sodré. Sua vida foi reconstruída a partir de documentos primários, manuscritos encontrados em diversos arquivos, sobretudo no magnífico acervo do Arquivo Público do Estado da Bahia. Aliás, devo registrar que este arquivo é propício à pesquisa biográfica, pois conta com catálogos muito bem feitos, há já algum tempo, herança de algumas gestões passadas daquela instituição. Esses catálogos nos permitem fazer buscas nominais nas coleções de inventários, testamentos, processos crimes, cíveis e outros, bastando digitar os nomes dos personagens buscados. Sem esses repertórios, que usei intensamente no livro sobre Domingos Sodré, a vida deste adivinho africano não poderia ter sido contada com a riqueza de detalhes ali encontrada. Isso não significa que encontrei tudo que procurei, absolutamente. Restam muitos buracos a serem cobertos por futuros achados, ou que continuarão descobertos para sempre porque a informação desapareceu ou nunca existiu. Cabe ao historiador avisar ao leitor sobre os limites de suas pesquisas: isso eu não consegui encontrar, fim de papo.

Em que medida você acredita que Domingos e outros líderes religiosos afro-brasileiros contribuíram para o desenvolvimento de formas de resistência contra o sistema escravocrata?

Uma das acusações contra Domingos Sodré foi justamente que ele fornecia a seus clientes escravizados beberagens (ou garrafadas) para "amansar senhor". Ou seja, infusões de diferentes ervas locais e africanas que, colocadas na comida ou na bebida do senhor, poderiam amolecer tanto seu juízo quanto seus músculos, diminuindo sua inclinação para a tirania e facilitando a vida do escravizado tanto no cotidiano, quanto quando tivesse de negociar os termos de sua alforria. Naturalmente, Domingos fazia outros trabalhos para seus clientes, típicos da prática da adivinhação africana, que diziam respeito à solução de problemas na vida amorosa, material, na saúde, ou destino neste e no outro mundo. Em todos esses aspectos, a escravidão entrava como entrave a ser superado ou pelo menos amenizado. Neste sentido, a atuação de pessoas como Domingos Sodré pode ser considerada como facilitadora da resistência escrava. Mas Domingos Sodré, do mesmo modo que outros sacerdotes do candomblé na época, não eram santos. Se por um lado, ajudava os escravos em seus conflitos contra senhores, Domingos era ele próprio senhor de escravos. Teve vários.

O que foi revisto e ampliado na nova edição de Domingos Sodré?

Difícil de detalhar, mas destaco duas novas e importantes informações. A primeira é eu ter encontrado, finalmente, a carta de alforria de Domingos Sodré, o que me permitiu corrigir uma hipótese lançada na primeira edição. Agora sabemos exatamente a data e quem assinou a carta de liberdade do africano. A outra, é ter confirmado que Domingos lutou na Guerra da Independência, tendo inclusive sido ferido durante uma batalha, levando-o a uma hospitalização que durou cerca de um mês. Essa última informação me foi repassada pela extraordinária pesquisadora da vida africana na Bahia oitocentista, Lisa Castillo. Ao longo de todo o livro, introduzo nova documentação aqui e ali, refino interpretações e argumentos, corrijo pequenos erros factuais e de revisão, e melhoro a redação.