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Da Bahia para a meca do artesanato: conheça os trabalhos levados para a maior feira da América Latina


 

Fenearte reúne 700 estandes de artesanato dos quatro cantos do país numa área de ais de 25 mil m²

  • Perla Ribeiro

Publicado em 14/07/2024 às 05:01:17
03/07/2024. Abertura da 24 Fenearte. Foto: Mariana Guerra. Crédito: Mariana Guerra

No Pernambuco Centro de Convenções, em Olinda, o vai e vem de pessoas nos corredores da 24ª Feira Nacional de Artesanato (Fenearte) não cessa. É um movimento que começa com a abertura dos portões e só acaba quando encerra a programação do dia. Numa área de mais de 25 mil m² – o equivalente a 38 campos de futebol - estão apinhados 700 estandes. Só não há mais, porque o espaço não comporta. Ali, a cena se repete o tempo inteiro: é um ir e vir de gente que entra, sai, se perde, se acha, compra, pechincha ou só contempla a beleza das peças. É possível encontrar o artesanato produzido nos quatro cantos do Brasil e de, pelo menos, 30 países. Entre as peças, centenas foram produzidas na Bahia.

Elas foram levadas de várias regiões do estado, tem formas e matérias-primas distintas, mas cada uma carrega um pouco da história do seu criador. Num estande de 60 m², o artesanato produzido em extremos baianos se encontram. A diversidade e a peculiaridade do trabalho de cada artesão dividem um só espaço. Uma prateleira separa a cerâmica do mestre Reginaldo Xavier, 64, de Nazaré das Farinhas, no Recôncavo, dos santos e orixás em ferro fundido do casal de artista visual Aless Teixeira, 48, e Mônica Vieira, 37, de Itinga, em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador (RMS).

Coladas com eles estão as peças produzidas por indígenas da aldeia Pataxó de Coroa Vermelha, no extremo sul baiano. Por ali, se destacam ainda os colares e terços de mesa, moldados, com delicadeza, pelas mãos da artesã designer Geiza Santos, de Ituberá, no Baixo Sul baiano, as vestimentas tecidas com fibras naturais pela tecelã Celia Amorim, de Porto Seguro, também no extremo Sul. Saindo do estande da Bahia, em um espaço próprio, Rafaela Anjos chama atenção com o colorido dos seus mosaicos em telas. Em outro corredor, as carrancas do mestre Bitinho, 83 anos, atraem os olhares atentos do público que circula numa espécie de formigueiro humano pelos corredores do grande pavilhão.

Entre eles, é unanimidade: a Fenearte, evento que começou no dia 3 de julho e segue até o próximo domingo (14), é a meca do artesanato. É uma grande vitrine das peças de arte popular produzidas no país, um espaço pra quem quer ver e quem quer ser visto. Os artesãos contam que, além de sair dali inspirados pelo trabalho de outros artistas, encontram no lugar mais do que um ponto estratégico de vendas, mas também um espaço com forte apelo para o networking.

Coordenador de Fomento ao Artesanato da Bahia - estrutura vinculada à Secretaria de Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Estado (Setre) - Weslen Moreira levou para a Fenearte dez representantes do artesanato baiano. O estado tem, aproximadamente, 18.300 artesãos cadastrados, organizados em 20 rotas do artesanato - 90% são mulheres.

“A Fenearte é uma das principais feiras do Brasil e da América Latina. É uma vitrine importante para o artesanato da Bahia, que está entre os três estados com a maior concentração de artesãos cadastrados no programa do artesanato brasileiro. É uma grande oportunidade de mostrar nossa produção para o Brasil, já que é um espaço que concentra também um grande número de compradores. Além do público final, lojistas do país inteiro vem à Fenearte fazer negócios”, avalia Moreira.

Só para se ter uma noção, na edição passada, 315 mil pessoas circularam pelos estandes em 12 dias de evento. O volume dos negócios gerados, só nos dias da feira, chegou a R$ 52 milhões. Nessa edição, a diretora de Economia Criativa de Pernambuco e diretora executiva da Fenearte, Camila Bandeira, informa que pretende superar esses dois números, que já foram recordes em relação à edição de 2022. “Os artesãos estão aqui para vender. A gente conversa com eles e tem o retorno de que, o que eles vendem ou geram de encomenda aqui, garante a subsistência deles o ano todo. Por isso que todo mundo quer está aqui. Quem vem, vende tudo”, avalia.

Seu BO mestre das carrancas. Crédito: Cristiana Dias/Fenearte

O mestre das carrancas

Na alameda dos mestres, um estande de carrancas chama a atenção. Sentado numa cadeira, há um senhorzinho grisalho, de baixa estatura e sorriso largo, de 83 anos. O nome de registro é Severino Borges de Oliveira, mas em um momento da vida, que ele nem lembra mais, virou Mestre Bitinho. Quando fez o que considera sua maior carranca (1.80m), trazida para o Instituto Mauá, na Barra, em 1973, ainda assinava como Severino Borges.

Por trás daquela arte está um rio grandense do norte de alma baiana e coração dividido entre Juazeiro, na Bahia, e Petrolina, em Pernambuco. Dos seus 83 anos de vida, 53 foram vividos em Juazeiro, no norte baiano. É das mãos grossas desse senhorzinho, que já foi viúvo por quatro vezes, e diz que não dá pra viver sem mulher, que uma média de 30 carrancas ganham vida por mês. Muitas das criaturas chegam a ser, literalmente, maiores do que o próprio criador. Já produziu tantas, que se perde nas contas. Na verdade, até quando se refere aos próprios filhos, titubeia na quantidade: “é perto de 20”.

Volta e meia, a coluna reclama. O corpo já não aguenta mais os esforços e os pesos de outrora, mas ele não pensa em parar. Desde o começo da década de 70, quando talhou a primeira peça, não parou mais. É considerado uma das maiores autoridades vivas no universo das carrancas. Com seus ensinamentos, fez outros mestres, inclusive, um dos filhos. Hoje, sua arte está espalhada pelo mundo. Até no Japão já foi levando suas carrancas.

Mestre Bitinho conta como se fosse uma memória fresquinha a história da primeira obra, inspirada numa imagem de King Kong. Numa época em que os carranqueiros estavam acostumados a fazer as peças no modelo Guarany - numa referência ao escultor Biquiba dy Lafuente Guarany - ele lançou o estilo vampiro, com presa, olhos rasgados e orelha pontuda. Este ano, levou cerca de 400 carrancas para vender na Fenearte e estimava chegar ao final do evento sem nenhuma. No segundo dia contabilizava a venda de 100. As peças variam de R$ 10 a R$ 12 mil. “Já vendi em Brasília, São Paulo, Salvador, em vários lugares, mas depois que apareceu essa feira, não perdi mais. Só venho pra cá”, conta Mestre Bitinho, que se orgulha em falar que esteve presente em todas as edições.

Mestre reginaldo. Crédito: Perla Ribeiro

Transformando o medo em arte

Quando pequeno, Reginaldo Xavier da Silva, 64, morria de medo das histórias de sereias que povoavam o imaginário dos moradores de Nazaré das Farinhas, no Recôncavo baiano. Temia ser arrastado para o fundo do mar. Cresceu, e o medo seguiu com ele. Há 38 anos, decidiu ressignificar essa relação, tornando a imagem da sereia a principal inspiração para suas obras artísticas. “Minha mãe dizia que, quando botava o presente e ele rodava, a sereia puxava. Isso dava um realismo. Hoje, trabalho com meus medos”, diz o ceramista mestre, que vive em Iguatu, na Chapada Diamantina, há 14 anos.

De pequenas imagens a modelos maiores, de até 80cm, ele usa a criatividade e a sensibilidade para dar forma às sereias do seu imaginário. “Trouxe 26 e, no segundo dia, só tem uma. Se trouxesse 40, venderia todas. Já tenho 14 encomendas”. Essa foi a segunda vez que ele participou da Fenearte. “O que mais me impulsiona é esse contato com a criatividade do brasileiro. Cada peça é especial. É uma feira tão importante que as pessoas saem de outro estado pra vir. Encontrei que comprou casa em Itacimirim, no litoral norte baiano, e veio buscar peças para decorar aqui”.

Mônica e Aless: de santo a orixá. Crédito: Cristiana Dias/Fenearte

De santo a orixá

O artista visual Aless Teixeira nasceu numa família de artesãos, no bairro da Liberdade. Ainda adolescente, aprendeu com o pai a fazer balagandãs e berimbaus. Com o tempo, foi criando sua própria linguagem artística. O trabalho dele é marcado pela religiosidade. Tem imagens de santo, mas o que se destaca são os orixás em ferro fundido. Essa é a quinta vez que ele participa da Fenearte, ao lado da esposa, a artista popular Mônica Vieira.

“Ela foi a primeira não pernambucana a ganhar premiação na Fenearte, com arte religiosa. Esse ano, fomos selecionados para os salões, mas não ganhamos”, conta. Mônica ganhou o prêmio do salão de arte religiosa em 2019, com uma escultura do Oxum, e 2022, com uma de Nanã. A arte estava no DNA de Aless, mas no caso de Mônica, o amor foi seu principal elo para esse universo. “Meu sonho era fazer Direito, ser juíza, ter uma vida normal. Aos 15 anos, quando comecei a namorar Aless, que vinha de uma família de artesãos, fui me apaixonado, aprendendo a trabalhar com o metal. Quando aprendi a soldar, pensei: se fizesse Direito, seria infeliz”, diz, após 22 anos dedicados ao artesanato.

Hoje, o casal mantém um ateliê em Itinga, em Lauro de Freitas de onde suas peças escoam mundo afora. Para eles, em termos de feira de arte popular, a Fenearte é a meca, a maior da América Latina e tem importância ímpar. “Nossas criações, a gente gosta de lançar aqui”, diz, Aless.

fDe Ituberá para a suíte presidencial das estrelas. Crédito: Cristiana Dias/Fenearte

De Ituberá para a suíte presidencial das estrelas

Geiza Santos sempre gostou de artesanato, mas seu sustento vinha do trabalho no comércio de Ituberá, no baixo sul da Bahia. Trabalhou como caixa de supermercado, em loja de moto. Até que uma ida despretensiosa a uma oficina de artesanato, em Nilo Peçanha, mudou sua rota. O começo não foi fácil, cogitou até desistir. Aos poucos, foi encontrando novos caminhos para fazer da arte um meio de vida.

Hoje, Geiza, que se define como artesã designer, se orgulha de ter peças que levam sua assinatura (um conjunto com seis réplicas de folha de cacau)  na suíte presidencial do Tivoli Mofarrej. Com 750 m², a suíte é considerada a maior da América Latina e já recebeu nomes como Mick Jagger, Lady Gaga e Catherine Deneuve. “Um consultor do Sebrae estava assistindo ao programa Hoteis Incríveis, na Sky, viu minha peça e me avisou. Já vendi também para fora do país, para a La Maison, na França”, conta, feliz.

Geiza começou com biojóias de coco de piaçava, depois mergulhou nas peças de decoração. Chegou a dar aulas de artesanato em comunidades tradicionais – duas quilombolas e uma ribeirinha -, mas as vendas e encomendas foram tomando tempo e ela não conseguiu conciliar. “Participo de eventos o ano inteiro. Já tenho uma carteira de clientes grande e a maior parte do meu público é lojista. A Fenearte é uma grande vitrine. Encontro lojistas, arquitetos. Além das vendas, é uma forma de divulgar meu trabalho”. Geiza vê suas peças ganharem o mundo, mas se depender dela, vai manter os pés fincados na terra de onde tira o barro, a madeira e a piaçava para dar vida às suas peças. “É um trabalho muito delicado, de criação, de paciência. Gosto de caminhar no mato em busca de inspiração e depois desenhar as peças. Por isso que meu trabalho tem muita réplica de folha. Minha matéria prima está lá e também tem a qualidade de vida no interior”, defende.

Rafaela Anjos: papelão que vira arte. Crédito: Cristiiana Dias/Fenearte

Papelão que vira arte

Na infância em Salvador, Rafaela Anjos, 34, adorava brincar com papelão. Nas aulas de educação artística do Colégio Adventista, quando o professor ensinou a técnica de mosaico no azulejo, ela se viu sem jeito de manusear as pedras e buscou uma matéria-prima alternativa: o papelão. Todo trabalho de arte da escola, fazia com papelão. Adorava usar a imaginação e a criatividade para dar vida a um novo mosaico. Mas, na hora de decidir o futuro, escolheu engenharia de produção.

Os mosaicos nunca saíram da sua vida, mas era apenas um hobby. Em 2014, quando conheceu o marido, o artista plástico J. Fernando, foi estimulada a levar a arte a sério. Os mosaicos, que eram feitos sobre uma folha de papel, ganharam as telas. No mesmo ano, comercializou sua primeira peça. Pegava a folha de papelão couro, pintava os pedaços nas mais variadas cores. Depois, recortava os quadradinhos, esboçava o desenho e montava o mosaico na tela, colando cada peça, num trabalho minucioso e de muita paciência, até o colorido ganhar forma.

Hoje, faz verdadeiras obras de arte. Transforma de foto a paisagens em lindos mosaicos. Já retratou a família de Ivete Sangalo, Lore Improta com a filhinha Liz e pontos turísticos de Salvador, Recife e Olinda. Sim, embora seja soteropolitana, hoje Rafaela se divide entre a capital baiana e Olinda e não esconde a paixão pela cultura pernambucana. Esta é a terceira Fenearte que participa. “Além da parte comercial, tem a energia que é trocada com o público, o contato com trabalho de outras artistas, é uma grande vitrine. Além disso, o povo pernambucano valoriza muito a arte”.

*A jornalista viajou a convite da Fenearte