Cura que vem do quintal: conheça tradição das mulheres do Quilombo Cangula
Elas voltaram para a escola em busca do reconhecimento da prática ancestral e vão construir horto com recurso de edital da ONU
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Carolina Cerqueira
ana.cerqueira@redebahia.com.br
O professor sugere a pausa para o almoço. “Ainda não, vamos terminar esse assunto primeiro”, responde o grupo, em consenso. Com caderno e caneta nas mãos, as mulheres que sabem ler e escrever anotam cuidadosamente os conhecimentos que complementam seus saberes passados de geração em geração sobre as plantas medicinais.
A outra parte delas sairá de lá, à noite, direto para as aulas no Colégio Municipal Miguel Santos Fontes, alimentando o sonho de um dia poder saber registrar no papel o que aprende e perpetuar também através da escrita a tradição oral que passa de geração em geração.
“O segredo é se permitir florescer”. A frase que estampa a parede da sede da Farmácia Verde reflete o propósito do projeto, formado por cerca de 25 mulheres agricultoras do Quilombo Cangula, que fica na zona rural de Alagoinhas. Nascido em 2017, celebra a força feminina e a cultura da confecção de medicamentos a partir do que é plantado no quintal de casa.
A renda, por enquanto, vem da agricultura familiar, mas o objetivo é que também possa vir da venda dos produtos terapêuticos naturais, chamados de fitoterápicos quando industrializados. Para isso, elas aceitaram o desafio de voltar à escola depois de décadas sem segurar um lápis. O Ensino Médio completo é requisito para os cursos de fitoterapia e naturoterapia, que representam a qualificação que elas buscam para formalizar a tradição quilombola.
Inis de Carvalho, de 64 anos, foi uma das quilombolas que voltaram à escola e já concluiu o Ensino Médio. “Foi a melhor coisa que eu fiz; deveria ter feito muito antes. Eu ficava deixando para depois porque apareceram outras coisas que eu fui colocando na frente, achando que não ia precisar aprender mais nada.”
O poder das plantas
Para Inis, usar plantas como remédio é como abrir os olhos ao acordar e a palavra ‘tintura’ não significa tinta de cabelo e, sim, a prática de utilizar álcool para extrair as substâncias ativas das plantas. Outra opção é a confecção de chás (que podem ser preparados com as partes secas ou frescas, com as flores, folhas, caule ou raiz) e de óleos (aplicados sobre a pele ou ainda como aromaterapia).
Os recursos podem ser usados para prevenir ou tratar doenças e as mais requisitadas são ansiedade, gripe, dor de cabeça, candidíase, gases, hemorroida e infecção urinária. Inis conta que usou folha de barbatimão como anti-inflamatório para a lesão no fêmur da mãe, Severina.
“Eu preparava um caldeirão com as folhas que eu pegava no quintal para fazer a compressa. Ela ficou um ano em cima da cama e eu achei que não fosse voltar a andar, mas voltou”, conta a filha. “Minha mãe não queria ficar internada e não queria fazer cirurgia de jeito nenhum. Respeitei a vontade dela”, completa.
Assim como a mãe temia o hospital quando era viva, Inis teme os remédios fabricados pela indústria farmacêutica. “Os médicos passam um monte de remédio. Além de serem caros, eles melhoram uma coisa mas pioram outra, é um perigo”, defende. Mas ela também sabe que os remédios que faz não podem ser consumidos sem cuidados. “Faço um chá com as folhas da manga para o meu açúcar alto, mas não tomo todo dia porque apesar de ser natural, é remédio e não é para usar de qualquer jeito”, pondera.
Inis conta que faz os medicamentos para ela mesma e sua família, mas o que não falta é gente pedindo e até querendo comprar. “A gente não pode sair distribuindo e nem vendendo”, reconhece. Só quem pode manipular remédios são farmacêuticos e há uma série de legislações que regulam a confecção e a comercialização dos produtos.
Através dos cursos ministrados por farmacêuticos com o apoio da Bracell - empresa brasileira produtora de celulose que tem sede florestal em Alagoinhas -, as quilombolas se capacitam e ganham o suporte para a confecção dos fitoterápicos, que será autorizada após a construção da sala de produção e do horto, conquistada em um edital do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
O horto vai substituir as ruínas de um antigo galinheiro, hoje cercado pelo mato alto e seco, e concentrar as plantas espalhadas pelos quintais de cada uma das integrantes do projeto, de onde elas colhem caules, flores, frutos e folhas para auxiliar no aprendizado prático coletivo.
A sala de produção vai ocupar o abrigo de cerca de 20m² usado como sala de aula. O local castiga no calor - a temperatura ultrapassa os 30°C nos dias mais quentes por conta das faltas constantes de água e energia elétrica que fazem os cadernos serem usados também como leques.
Valcineide Santana, de 39 anos, é a coordenadora do projeto Farmácia Verde e sonha com os dias de glória do projeto. Ela já havia concluído o Ensino Médio, mas não ficou imune ao poder de transformação do grupo. Fez um curso técnico sobre meio ambiente e outro de naturoterapia. Agora, pensa no próximo passo: a faculdade de farmácia, para que os conhecimentos do Quilombo Cangula não precisem da validação de profissionais de fora.
Cura do corpo e da alma
Apesar do foco nos estudos, o que Valcineide aprende com as outras mulheres vai além do que os livros podem oferecer. “Eu cheguei na primeira reunião de mansinho, meio tímida. Quando acabou, começaram a montar a mesa para o almoço, cada um colocou o prato que tinha levado e me chamaram para comer. Eu disse que não tinha levado nada e que iria para casa, mas insistiram. Fiquei tocada com aquele espírito comunitário e não desgrudei mais”, lembra.
A união tem fundamento. A comunidade é formada por descendentes de povos escravizados que fugiram de fazendas da redondeza, que até hoje guardam porões e pelourinhos como marca dos tempos sombrios. De acordo com os quilombolas, o nome Cangula vem de uma planta espinhosa presente na região, usada como barreira de proteção pelos refugiados.
Foi o espírito de união que segue forte até hoje que fez Eliana dos Santos, de 49 anos, se libertar do ciclo de violência do qual fazia parte e realizar o sonho de voltar para a escola.
Durante a infância, o pai até tentou que a filha pudesse estudar, mas a mãe a tirou do colégio alegando que “a verdadeira caneta é a enxada”. Quando casou e teve filhos, o marido, violento, exigia que ela ficasse em casa para cuidar das crianças. Com a força encontrada nas outras mulheres do grupo, se separou e voltou a estudar.
O capim que, trançado, formava as únicas bonecas que podia ter na infância, agora compõe o estoque de matéria-prima que tem em seu quintal dos medicamentos que produz do jeito que aprendeu com a avó, que era parteira.
“As mulheres recém-paridas batiam à porta dela pedindo ajuda. Ela indicava folha de mastruz para os bebês com fome porque a mãe não tinha leite e tinha um ritual também para quando eles sentiam cólica. Tinha que deitar o menino no umbigo da mãe e fazer um sinal da cruz na testa dele com o leite do peito esquerdo”, lembra Eliana.
Cultura e tradição
O professor de Farmácia da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Ygor Jessé destaca a importância das práticas ancestrais. “Elas refletem a nossa origem enquanto civilização e as plantas estão na base disso. Foram descobertas enquanto elementos curativos – a partir da observação do comportamento de animais – e, por isso, também usadas para práticas ritualísticas, muito ligadas à religião”, aponta o doutor em biologia vegetal, especialista em plantas medicinais e também quilombola.
Jessé representa a união entre senso comum e ciência e alerta que a pesquisa e a legislação não são inimigos que querem apagar o lado cultural, mas garantir “segurança, eficácia e qualidade” ao que é produzido.
“A partir de uma crença popular, colhemos a planta para levá-la a laboratório e comprovar ou não a eficácia. Isso facilita muito porque a descoberta de um medicamento sintético leva de 15 a 20 anos e, com o fitoterápico que parte de uma medicina popular, esse tempo é reduzido pela metade”, ressalta o professor de Farmácia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) Jackson Roberto Guedes.
Mas Jessé pondera que há lacunas. No Brasil, há regulamentação para os medicamentos feitos a partir das plantas e dos conhecimentos tradicionais pela indústria farmacêutica, mas não há para os produzidos artesanalmente em comunidades como o Quilombo Cangula.
“É preciso ampliar esse debate, até mesmo para garantir a preservação da biodiversidade das comunidades de onde vem a matéria-prima e assegurar que esses povos não sejam explorados e que se beneficiem enquanto detentores desse conhecimento tradicional”, defende.
Criado em 2017, o projeto Farmácia Verde, apoiado pela Bracell, surgiu para potencializar esses conhecimentos ancestrais, possibilitando a confecção regulamentada dos produtos com base natural – como aromatizantes, medicamentos, velas e sabonetes. A empresa apoia, ao todo, oito grupos produtivos baianos através da iniciativa Fomento a Negócios de Impacto.
“Essa iniciativa surge a partir de um diagnóstico social e da observação dos saberes da comunidade. Assim, apoiamos com capacitação técnica, contábil e de escoamento da produção. Nosso objetivo é contribuir com o território onde atuamos, desenvolvendo suas vocações naturais”, destaca o gerente de Relações Institucionais e Responsabilidade Social da Bracell Bahia, Fábio Góis.
“Queremos, através da transformação social, dar alicerces para que a iniciativa no Cangula possa se desenvolver de forma autônoma, potencializando o crescimento dos seus integrantes e melhorando a geração de renda”, complementa Mouana Fonseca, também gerente de Relações Institucionais e Responsabilidade Social da empresa.
São iniciativas como essa que podem ser validadas pelo projeto Farmácias Vivas, do Ministério da Saúde. O objetivo é que o SUS possa ofertar medicamentos fitoterápicos produzidos nesses locais. "Para concorrer aos editais de chamamento público, os proponentes devem elaborar projetos que contemplem seis eixos de trabalho: cultivo, beneficiamento, preparação, controle de qualidade, dispensação e capacitação", diz a pasta.
De acordo com o órgão, até o momento, 70 iniciativas de Farmácias Vivas foram fomentadas desde 2012, quando o projeto foi iniciado. Elas estão distribuídas em 16 estados, incluindo a Bahia, que tem quatro iniciativas nos municípios de Lauro de Freitas, Quijingue, Salvador e Santa Inês.
As Farmácias Vivas fazem parte da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, prevista no Programa Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC). A PNPIC, instituída em 2006, contemplou, inicialmente, a oferta de serviços e produtos da homeopatia, medicina tradicional chinesa/acupuntura, plantas medicinais e fitoterapia, além de medicina antroposófica e termalismo social/crenoterapia.
Nos anos de 2017 e 2018, a política foi ampliada em 24 novas práticas (totalizando 29): arteterapia, ayurveda, biodança, dança circular, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, quiropraxia, reflexoterapia, reiki, shantala, terapia comunitária integrativa, yoga, aromaterapia, apiterapia, bioenergética, constelação familiar, cromoterapia, geoterapia, hipnoterapia, imposição de mãos, ozonioterapia e terapia de florais.
Dentro das regras
Os fitoterápicos se dividem entre os manipulados (feitos nas farmácias de manipulação e personalizados de acordo com a recomendação profissional) e os industrializados (produzidos pela indústria farmacêutica). Todos eles, pela lei, precisam cumprir as boas práticas de fabricação e comercialização.
“Precisa ter elementos como bula, embalagem adequada, data de validade”, alerta a farmacêutica Eliana Fiais, coordenadora de Vigilância de produtos da Diretoria de Vigilância Sanitária da Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab).
De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), são 345 medicamentos fitoterápicos autorizados no Brasil. No site do órgão, é possível consultar a lista. Eliana ressalta que todos eles levam na embalagem o número do registro. “É preciso ter cuidado com as propagandas enganosas e os produtos falsificados. Cuidado com expressões como ‘produto natural’ ou ‘produto isento de prescrição’”, indica.
O professor Jackson Roberto Guedes acrescenta ponderações sobre o consumo de fitoterápicos. “Se for a planta certa e a parte certa e a preparação e dosagem forem adequadas, vai haver sim um benefício. A questão é que não é porque é natural que pode ser consumido de qualquer jeito. Algumas plantas podem provocar alergia ou até uma condição de enfermidade para quem tem problema no rim ou no coração, por exemplo. É um medicamento, não é mágica”, finaliza
Glossário:
Naturopatia - é uma forma de medicina alternativa que enfatiza a capacidade inata do corpo para se curar e manter-se saudável. Este conceito se baseia na utilização de recursos naturais, como ervas, alimentos e técnicas de estilo de vida saudável, para promover o bem-estar
Naturoterapia - prática terapêutica que envolve um conjunto de técnicas baseadas na naturopatia, como aromaterapia, massoterapia, fitoterapia, cromoterapia, acupuntura, etc.
Fitoterapia - técnica que estuda as funções terapêuticas das plantas e vegetais para prevenção e tratamento de doenças. Médicos, nutricionistas, farmacêuticos, fisioterapeutas e outros profissionais são capacitados para indicar fitoterápicos aos seus pacientes, com o objetivo de melhorar o organismo, ajudar no combate de doenças e atuar na prevenção de problemas de saúde
Medicamento fitoterápico - produzido para finalidade profilática, curativa ou paliativa e obtido com emprego exclusivo de matérias-primas ativas vegetais cuja segurança e efetividade são baseadas em estudos clínicos em humanos
Produto tradicional fitoterápico - obtido com emprego exclusivo de matérias-primas ativas vegetais cuja segurança e efetividade sejam baseadas em dados de uso seguro e efetivo publicados na literatura técnico-científica e que sejam concebidos para serem utilizados sem a vigilância de um médico para fins de diagnóstico, de prescrição ou de monitorização. Não podem se referir a doenças, distúrbios, condições ou ações consideradas graves, não podem conter matérias-primas em concentração de risco tóxico conhecido e não devem ser administrados pelas vias injetável e oftálmica
Espécies com os maiores números de fitoterápicos registrados:
Passiflora incarnata/maracujá (ansiedade e insônia) - 37
Hedera helix/hera (inflamação) - 31
Aesculus hippocastanum/castanheiro da índia (circulação e cicatrização) - 20
Ginkgo biloba (memória e concentração) - 18
Mikania glomerata/guaco (gripes e resfriados) - 15
Senna alexandrina/sene (bom funcionamento do intestino) - 15
Valeriana officinalis (ansiedade e estresse) - 14