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Corpo de menino de 10 anos morto na porta de casa é enterrado em Portão


 

Gabriel Silva da Conceição Junior foi atingido no pescoço durante uma ação da Polícia Militar

  • Larissa Almeida

Publicado em 24/07/2023 às 20:44:35
Samile Costa (de joelhos), mãe de Gabriel, acompanhou toda a cerimônia, exceto o sepultamento. Ela também esteve em um protesto na Estrada do Coco. Crédito: Paula Fróes/CORREIO

A morte precoce e trágica de Gabriel Silva da Conceição Junior, 10 anos, morto ao ser atingido por uma bala perdida no pescoço disparada por policiais militares quando estava na porta de casa no bairro de Portão, em Lauro de Freitas, no último domingo (23), levou centenas de pessoas ao Cemitério de Portão na tarde desta segunda-feira (24) para dar o último adeus.

Familiares, amigos, vizinhos, colegas de escola e de futebol chegaram cedo no local. Por volta das 15h40, o corpo da criança começou a ser velado. Por causa da forte comoção, parentes precisaram ser amparados enquanto passavam mal. A mãe do garoto, Samile Costa, acompanhou toda a cerimônia, exceto o sepultamento, que ocorreu às 16h. Sem dar entrevista, ela apenas disse que seu filho era um bom menino, e que não houve troca de tiros – o que vai de encontro à versão da Polícia Militar da Bahia (PM-BA).

Samile Costa, mãe de Gabriel, acompanhou toda a cerimônia, exceto o sepultamento. Ela também esteve em um protesto na Estrada do Coco. Crédito: Paula Fróes/CORREIO

Antes do enterro, colegas da equipe de futebol de bairro em que Gabriel jogava bola carregaram cartazes pedindo justiça pela perda do amigo. Aos prantos, as crianças se recusaram a sair da frente do cemitério até formar um coro que ecoou dentro do local. "Estamos falando de Gabriel, 10 anos de idade. Dá para ver no sofrimento dessas crianças tudo que estamos passando. A força vem de pedir justiça aos nossos governantes. Até quando, governador, vamos perder Gabrieis? Nós vimos, nas redes sociais, notas dos nossos governantes. Notinhas não vão trazer a vida de ninguém. A vida de Gabriel não pode ficar impune. Nós vamos para cima dos nossos vereadores", disse a funcionária pública Noêmia de Oliveira, tia avó de Gabriel.

Madrinha de Gabriel, a atendente de padaria Taiane Santana também lamentou a morte do afilhado. "É muito difícil, porque tiram uma vida, um sonho, despedaçam a família toda", disse. Ela ainda acrescentou que não houve troca de tiros. "A Polícia Militar veio dizer que foi troca de tiro, [mas] não foi. Não deram socorro à criança. Os vizinhos pediram e eles deram as costas, depois pediram reforço. Pediram reforço para quê, se foram eles que cometeram o crime?", questionou.

Colegas da equipe de futebol de bairro em que Gabriel jogava bola carregaram cartazes pedindo justiça pela perda do amigo. Crédito: Paula Fróes/CORREIO

Um sonhador interrompido

Conhecido por todos no bairro onde morava como um garoto educado e carismático, Gabriel carregava o mesmo sonho de tantos garotos ao redor do país: jogar futebol profissionalmente. Matriculado em uma escolinha de futebol do bairro conhecida como Talentos da Capivara, ele treinava todas as terças e quintas-feiras com o professor Elenildo Eduardo, que se emocionou ao lembrar do último momento vivido com seu aluno, no sábado (22).

"Sábado teve um jogo na Boca do Rio. Ele jogou e estava alegre demais junto com meu filho. A minha própria esposa falou 'ele está numa alegria tão grande'. Depois, enquanto ele brincava com o primo, ela disse que ele também estava numa felicidade grande que transbordava", conta.

A versão foi reforçada pela mãe de Gabriel, que lembrava com muita dor dos últimos momentos de vida do filho. Elenildo não conseguiu deixar de comparar. "Olha como está a situação em que nós nos encontramos hoje. Nós não queremos que isso aconteça de novo no nosso bairro nem em qualquer outro. É uma dor muito grande, muito forte, como se estivéssemos perdendo um filho", afirmou o treinador.

Tia avó de Gabriel, a revendedora Núbia Almeida ressaltou a personalidade amável do menino, que sempre a cumprimentava com um beijo na testa. "Ele foi criado com todo amor e todo carinho, era educado. A mãe dizia que beijo na testa era sinal de respeito e ele chegava lá em casa dizendo 'bênção, minha avó' e me dava um beijo na testa. Nós não entendemos a morte dele. Procuramos entender e não achamos resposta, porque vem acontecendo longe da gente, mas só quando chega perto é que temos noção da dor que é", desabafou.

Revolta

Inconformados com a morte de Gabriel, os moradores de Portão decidiram fazer um protesto nas duas vias da Estrada do Coco, na altura de Buraquinho, logo após o sepultamento do menino. Inflamados pelo misto de revolta e tristeza, eles relembraram a morte recente de um marceneiro no bairro de prenome Ivanildo, que também foi atingido por bala perdida, cuja autoria é atribuída igualmente à Polícia Militar, que à época justificou que houve troca de tiros.

Por volta das 16h20, as duas vias foram bloqueadas com o ateamento de fogo em diversos pontos das pistas. Para isso, foram utilizadas placas de proteção de alumínio, galhos e troncos de árvores. Ainda, todo o comércio do bairro foi fechado, à exceção de um posto de gasolina. Sem passagem para qualquer veículo, os manifestantes começaram a proferir palavras de ordem contra os policiais militares que acompanhavam o ato.

Caso Gabriel: Amigos e familiares fazem protesto pela morte do menino. Crédito: Paula Fróes/CORREIO

"Polícia é para ladrão, não é para criança, não", "Queremos justiça" e "Tira a farda deles" eram gritos ouvidos por quem passava e acabava ficando no local, somando-se à multidão. A autônoma Maria Aparecida, amiga da mãe de Gabriel, fez parte do grupo e enfatizou que a PM-BA precisa mudar a forma de abordagem nas comunidades. "Estamos aqui para chamar atenção às autoridades de que na comunidade não mora só vagabundo. Na comunidade tem mãe de família, pai de família e tem crianças que têm que ter o direito de ir e vir, de brincar. A polícia tem que mudar essa forma de abordagem deles e o jeito que eles chegam na favela", falou.

Moradores do bairro, que tiveram a identidade protegida pela reportagem, afirmaram que o comportamento da Polícia Militar que resultou na morte de Gabriel é bastante comum na região. "É sempre assim. Só chega batendo, matando, xingando. E aqui não tem perigo, o perigo são eles chegando. As crianças costumam brincar na rua e foi assim no sábado, como todo final de semana. Os moradores estavam dentro de suas casas e eles chegaram atirando e batendo, colocando todo mundo para dentro e invadindo casas. A polícia aqui está pior que o tráfico", relatam.

Em nota, a Polícia Militar da Bahia informou que policiais da 52ª CIPM foram acionados na tarde desta segunda-feira (24) via Cicom com a informação de que um grupo de pessoas realizava um protesto nos dois sentidos da BA 099, Estrada do Coco, nas imediações do bairro Portão. Equipes da 52ª CIPM, de unidades especializadas da PM e do Corpo de Bombeiros estão no local.

Caso Gabriel: Amigos e familiares fazem protesto pela morte do menino. Crédito: Paula Fróes/CORREIO

A manifestação durou cerca de 3h30. Após algumas tentativas de negociação, aproximadamente às 18h30 a via no sentido Portão foi parcialmente liberada, para logo em seguida ser bloqueada novamente. Apenas às 19h40, com intermediação da prefeita de Lauro de Freitas, Moema Gramacho, via ofício, a multidão começou a se dispersar. No ofício em questão, lido para os manifestantes, a representante municipal escreveu o seguinte ao governador Jerônimo Rodrigues:

"Senhor governador, cumprimentando-o cordialmente venho, respeitosamente, solicitar a investigações acerca de ações da PM que resultaram num tiro que tirou a vida de uma criança de 11 anos no bairro de Portão, neste domingo (23), caso de grande comoção e repercussão social. Nosso pedido vem no sentido de esclarecer a população e punir os responsáveis, haja vista que em pouquíssimo tempo tivemos outro caso semelhante com outro jovem, até então sem resposta da Polícia Militar, o que causa mais indignação na população e revolta", diz o documento.

Caso Gabriel: Amigos e familiares fazem protesto pela morte do menino. Crédito: Paula Fróes/CORREIO