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Caruru para agradecer, celebrar e pedir cura


 

Devoção aos ibejis e aos santos católicos atravessa gerações

  • Maysa Polcri

Publicado em 27/09/2023 às 05:00:00
O quiabo, ingrediente do caruru, simboliza renascimento e continuidade. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

Quem reúne familiares e amigos para oferecer caruru em setembro na cidade de Salvador, certamente tem uma boa história para contar. A refeição é servida no dia seguinte à comemoração dos santos Cosme e Damião, e marca a saudação aos ibejis, divindades gêmeas das religiões de matriz africana, neste dia 27. Tradição ancestral, o preparo do caruru leva quiabo, alimento que representa a descendência e continuidade, dois pilares de quem mantém o legado familiar.

As tradições não têm endereço e nem horário para começar, por isso, as origens do que é passado através de gerações surgem das situações mais inusitadas. Foi assim com o comerciante André Nery. Na véspera do dia 28 de setembro de 1973, data do seu nascimento, a mãe, grávida de nove meses, foi até o hospital sentindo fortes dores na barriga. O motivo? Um caruru que tinha comido numa celebração de Cosme e Damião, em Santo Amaro. Não deu outra: ainda na unidade de saúde, ela deu à luz ao filho mais novo.

Para a mãe, aquele só poderia ter sido um sinal claro da interferência dos santos católicos e daí surgiu a missão de servir o caruru todos os anos. Foi nesse ambiente de sincretismo religioso e devoção que André Nery cresceu. Ao se mudar para Salvador para tomar à frente da loja do Chapéu de Couro, box voltado à venda de artigos religiosos no Mercado Sete Portas, decidiu que daria continuidade ao legado da mãe, já falecida. Neste dia 27, o caruru solidário completa 25 anos e a expectativa é receber 500 pessoas.

Mas afinal, porque a refeição escolhida para a data é o caruru? O antropólogo e autor do livro “Comida de Santo que se Come” Vilson Caetano explica que a tradição tem origem no culto dos africanos iorubás aos gêmeos crianças, chamados de ibejis. “A presença negra em Salvador foi lendo os conteúdos religiosos a partir do universo africano e entendeu a relação de irmandade entre santos Cosme e Damião”, explica. Os ibejis, assim como os santos, têm o dom da cura. Com a relação entre as religiões estabelecidas, teve início a comemoração de ambos.

“O caruru de preceito é o cumprimento de uma promessa, que retribuiu aos santos uma dádiva e atravessa gerações. O que chamamos de caruru é um conjunto de pratos e o quiabo tem a ver com as ideias de renascimento, descendência e continuidade, que resume os ibejis”, ressalta. Já que a festa é em homenagem às crianças, nada mais justo do que elas comerem primeiro. A tradição conta que sete meninos que comeram o caruru com as mãos curaram uma pessoa doente no passado, daí o costume de que as crianças sejam as primeiras a serem servidas.

André Nery é daqueles que faz o caruru seguindo todos os preceitos religiosos, inclusive a prioridade das crianças na hora de comer. “Cada item do caruru representa um orixá e eu faço um pouco de cada para não faltar nada. É como uma troca, eu peço saúde e caminhos abertos para que seja possível continuar a tradição”, diz. Em Salvador, André Nery virou babalorixá do terreiro Ilê Asè Ìsegun, em Lauro de Freitas, onde o caruru é feito com a ajuda de 15 filhos de santo. “A gente começa a cortar o quiabo às 20 horas e eu faço o caruru durante a madrugada. Oferecemos um grande prato aos erês e fazemos nossas orações”, ressalta.

Promessa

Se o ditado diz que promessa é dívida, quem promete aos santos Cosme e Damião ou aos ibejis, paga com um delicioso caruru para MUITA gente. Há 20 anos, o cantor e compositor Diumbanda, líder da banda Companhia do Pagode, dá continuidade a tradição iniciada pelos pais de servir a refeição, em setembro.

Tudo começou na década de 80, quando Diumbanda pediu para os santos que conseguisse passar no concurso da Polícia Militar, em Salvador. A maioria das vagas era para o interior do estado e ele não queria se afastar da família. “Foi uma dificuldade porque só tinha vaga em Feira de Santana, Camaçari e Itaberaba. Fui ao pé dos meus santos e pedi para conseguir uma vaga na capital e deu certo: fui para o batalhão de choque da capital”, relembra. “A promessa é que eu iria manter o caruru dele enquanto estivesse vivo e com saúde”, completa.

O cantor ajuda no preparo do caruru até hoje. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

O caruru que começou pequeno foi ganhando força e a expectativa é que a 20º edição do Galo de Diumbanda reúna cerca de 3 mil pessoas, nas proximidades do Mercado das Sete Portas. “Eu sou herdeiro de uma tradição de décadas que só me traz felicidade”, descreve. Para alimentar a grande quantidade de pessoas que participam do evento, serão utilizados 30 mil quiabos.

Para a jornalista Silvia Costa, o início da tradição começou há 30 anos, quando se casou com Paulo. Ele já tinha o costume de servir o caruru no dia 27, quando faz aniversário e a esposa abraçou a data. Neste ano, 250 convidados, entre familiares e amigos, vão participar da grande festa. A celebração ganhou contornos ainda mais especiais com a espera da primeira neta da família, que deve nascer em janeiro.

Silvia abraçou a tradição do marido e há 30 anos serve caruru no dia 27 de setembro. Crédito: Acervo pessoal

“É um momento muito gratificante. Precisamos dessa fé para renovar o que há de bom no nosso coração e não há nada melhor do que partilhar o alimento”, conta. Além da reunião de pessoas queridas, Silvia Costa e a família aproveitam a data para fortalecer a fé. “Desejo continuar fazendo isso por muitos anos e espero que minhas filhas continuem com a tradição”, diz.