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'Canudos não acaba. A cada invasão militar numa favela, a história se repete', diz pesquisadora


 

Estudo da UFRJ e do IME encontrou e decodificou telegramas secretos da guerra no sertão da Bahia

  • Thais Borges

Publicado em 10/03/2024 às 16:00:00
Em 2 de outubro de 1897, o fotógrafo Flavio de Barros registrou 400 pessoas feitas prisioneiras em Canudos. Crédito: Flavio de Barros/ Acervo Museu da República / Imagem recuperada digitalmente pelo Instituto Moreira Salles

Investigar a Guerra de Canudos é importante porque, na avaliação da professora Cristiane Costa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apesar de ter sido dizimada há quase 130 anos, a história do Arraial de Belo Monte segue viva. Ela é uma das autoras de uma pesquisa que descobriu o que aconteceu com o corpo do coronel Moreira César, comandante da terceira expedição que tentou destruir a comunidade, há 127 anos. 

"Canudos não acaba. A cada vez que tem uma invasão militar numa comunidade, num complexo de favelas, a história de Canudos se repete. Cada vez que se tem uma teoria da conspiração criada por militares para jogar uma cortina de fumaça em um erro deles, Canudos se repete. Cada vez que a imprensa embarca em fake news, Canudos se repete", reforça Cristiane.

A grande contribuição da pesquisa, na avaliação da professora, é conseguir entender exatamente o que aconteceu naquele dia de combate - desde o momento em que Moreira César disse 'vamos almoçar em Canudos' até o dia seguinte, quando a tropa fugiu. "Tem quase um filme do que aconteceu nessas 24 horas", pontua.

Em sua pesquisa no Arquivo Histórico do Exército, no Rio de Janeiro, a professora Cristiane chegou a se deparar com documentos da década de 1940 que ordenavam que toda a documentação sobre Canudos fosse reunida, com o objetivo de fazer um livro 'vingador' - que reescrevesse a história.

"Eles queriam um livro que se vingasse do que eles consideravam que eram as mentiras e exageros de Euclides da Cunha, essa mancha. Porque se você lê Euclides da Cunha, você fica contra o Exército. Eu já encontrei oito tentativas de reescrever Os Sertões".

Telegramas

O envio de uma expedição comandada pelo coronel Moreira César a Canudos, no início de março de 1897, por parte do então presidente interino Manuel Vitorino, tinha um objetivo bem determinado: acabar com o movimento messiânico liderado por Antônio Conselheiro. O desfecho esperado pelos militares que ocupavam o governo federal, porém, foi diferente - ou, ao menos, adiado.

Moreira César, que era conhecido como ‘Corta Cabeças’ pela fama de decapitar opositores, acabou morto no dia 4 de março daquele ano; a tropa de 1,2 mil soldados fugiu e deixou um rastro de sangue. Não seria daquela vez que Canudos seria destruída - foi apenas na quarta expedição, em outubro de 1897, teve sucesso. O que permaneceu sem respostas por mais de 120 anos, porém, foi o que teria acontecido com o corpo do coronel.

Agora, 127 depois, esse mistério foi finalmente solucionado. Os pesquisadores encontraram quatro telegramas criptografados em pastas guardadas no Arquivo Histórico do Exército, no Rio de Janeiro (RJ). Essas correspondências eram trocadas entre os militares que estavam aqui na Bahia e oficiais do antigo Ministério da Guerra, no Rio.

"Quando você fala em segredo, a gente se anima. Fiquei com aquilo na cabeça: 'eu tenho que descobrir esses telegramas'. O meu trabalho foi contextualizar tanto com base no que Euclides (da Cunha) dizia quanto com base em outras testemunhas o que os militares estavam falando", explica a professora Cristiane Costa. O artigo com as descobertas foi publicado no mês passado.

Os telegramas não tinham assinatura, assim como exigiam uma chave para que fossem decodificados. No artigo, os professores explicam que isso era feito para garantir que informações sensíveis permanecessem confidenciais, uma vez que o telégrafo deixa mensagens expostas. O problema é que, por vezes, as chaves se perdiam. A troca de correspondências aconteceu em 20 de março de 1897, 20 dias após a morte do coronel.

Era uma conversa entre dois generais: Arthur Oscar de Andrada Guimarães, comandante do Segundo Distrito Militar, em Recife (PE), e o ajudante-general do Exército, general Bibiano Sérgio Macedo de Fontoura Costallat, que estava no Rio de Janeiro. Havia um medo geral de que os ingleses conseguissem ter acesso às correspondências do Exército brasileiro. Isso porque a Inglaterra era vista como um dos países interessados na volta da monarquia no Brasil. A República brasileira era muito recente - datava de 1889 - e o movimento liderado por Antônio Conselheiro era monarquista.

"Nos telegramas, eles dizem que o corpo de Moreira César foi abandonado, que a tropa fugiu e que largou os mortos lá. Alguns foram decapitados, outros foram deixados em paus. Mas Moreira César foi deixado para os urubus pela ameaça que ele representava. Foi uma vingança", conta a professora. A ordem foi dada pelo próprio Conselheiro.