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Bailarina trans é 1ª a fazer cirurgia de redesignação de gênero pelo SUS na Bahia


 

Yohana de Santana, 47 anos, esperou 10 anos pelo procedimento realizado pelo Hospital das Clínicas, da Ufba, e conversou com a reportagem após ter alta

  • Larissa Almeida

Publicado em 18/08/2023 às 06:00:00
Yohana teve alta nesta quinta-feira (17) e agora terá acompanhamento pós-operatório. Crédito: Ana Albuquerque/CORREIO

Se perguntassem quanto tempo vale a pena lutar por um sonho, a resposta da bailarina e professora de dança Yohana de Santana, 47 anos, seria: dez anos. Esse foi o tempo que Yohana, uma mulher transgênero, precisou esperar para conseguir realizar a sua cirurgia de redesignação sexual através do Sistema Único de Saúde (SUS). O procedimento, que pode ser hormonal ou cirúrgico, serve para adequar os órgãos genitais de uma pessoa à sua identidade de gênero, ou seja, ao gênero pelo qual a pessoa se reconhece, quando ele diverge daquele atribuído a ela quando nasceu. Para a professora de dança, a cirurgia foi também a conquista de um direito à saúde.

“Eu sempre falei que a cirurgia não era uma questão estética, simplesmente. É claro que eu quero me olhar no espelho e quero me ver como eu me sinto: como uma mulher e com um órgão que condiz com a minha personalidade, com meu eu, com a minha alma. Mas também é uma questão de saúde, justamente porque vai para o âmbito psicológico. Aquele órgão não fazia parte de mim e do meu bem-estar, aquilo me fazia mal, me constrangia”, afirma.

Recém-operada, Yohana teve alta hospitalar na tarde desta quinta-feira (17). O procedimento foi a primeira cirurgia transexualizadora realizada na Bahia pelo SUS, no Hospital Universitário Professor Edgar Santos (Hupes), da Universidade Federal da Bahia (Ufba). O procedimento aconteceu na quarta-feira (9). O Hupes é a primeira unidade do estado credenciado junto à Secretaria de Saúde do Estado (Sesab) para realizar cirurgia afirmativa de gênero, mamoplastia masculinizadora, histerectomia, tireoplastia e plástica mamária pelo SUS.

O caminho até a redesignação sexual foi cheio de percalços. A luta de Yohana começou em 2013 no Serviço Médico Universitário Rubens Brasil Soares (Smurb/Ufba), onde ela buscou os atendimentos médicos de endocrinologistas e psicólogos, exigidos pela portaria do SUS para iniciar o processo de acompanhamento para a cirurgia. Somente em 2018 ela começou a ser acompanhada pelo Ambulatório Transexualizador do Hupes, quando este foi fundado.

“A funcionalidade do acompanhamento era monitorar os cuidados com os hormônios e trabalhar com o psiquiatra a questão do psicológico, para saber se realmente era essa minha decisão e fazia realmente parte da minha vida. Tudo isso para saber como isso se desencadearia”, conta ela.

Yohana recebeu ainda assistência regular de uma equipe multiprofissional e foi considerada apta entre os departamentos de Endocrinologia, Psicologia e Serviço Social para passar pelo procedimento cirúrgico, que foi conduzido pelo cirurgião Ubirajara Barroso Jr.

Como é a cirurgia?

Com seis horas de duração, a cirurgia contou com três grandes procedimentos: clitoroplastia, vaginoplastia e uma labioplastia. “O sexo biológico da Yohana era masculino, então nós transformamos o pênis em uma vagina. Para fazer o canal vaginal, invertemos a pele do pênis. Fizemos um canal vaginal entre o reto e a uretra. O pênis tem uma glande, assim como o clitóris, então reduzimos a glande do pênis para o tamanho do clitóris e preservamos os vasos e os nervos, para mantermos a sensibilidade. Com a parte do prepúcio da pele do pênis, fizemos os pequenos lábios e com o escroto fizemos os grandes lábios. Por fim, nós reduzimos a uretra e fizemos uma uretra curta, que é como o canal da uretra feminina", detalha o cirurgião.

De acordo com o especialista, mais de 70% das mulheres trans expressam vontade de passar pelo procedimento. Ele explica que isso acontece por conta da disforia de gênero, uma condição que impossibilita a sensação de bem-estar com a própria genitália. “A disforia parte de um incômodo psicológico extremamente elevado com o próprio órgão sexual. A pessoa identifica o pênis como sendo uma parte do corpo que não lhe pertence e remete exatamente ao gênero que ela não se identifica. Isso traz um sofrimento muito grande. Essas pessoas muitas vezes não olham o pênis de jeito nenhum, tentam ocultá-lo de qualquer maneira, inclusive delas próprias, não só para os outros", esclarece.

No caso de Yohana, o sentimento que prevalecia em relação ao antigo órgão sexual era o constrangimento. “Eu não aceitava de forma nenhuma esse órgão e me sentia muito constrangida, principalmente nos momentos íntimos. Era por isso que eu sonhava, tanto pela minha saúde física como mental”, diz.

Agora, após a cirurgia, sua única preocupação é com o mestrado em Dança, que ela deseja retomar após a recuperação do pós-operatório. “Eu precisava resolver isso para que eu pudesse estar como eu estou me sentindo hoje, plena e realizada, porque hoje eu posso me olhar no espelho e me sentir Yohana, como sempre me senti. A Yohana de antes é a mesma de hoje, o que mudou foi a transformação da genitália”, ressalta.

Cuidados no pós-operatório

De acordo com a médica Luciana Oliveira, que coordena o ambulatório multidisciplinar do Hupes, mais de 400 pacientes já foram atendidos pelo Ambulatório Transexualizador e, atualmente, há mais de 90 pessoas trans que desejam passar pela cirurgia de afirmação de gênero. Inicialmente, o programa vai ofertar uma vaga mensal para realização das cirurgias afirmativas, enquanto aguarda credenciamento como unidade hospitalar junto ao Ministério da Saúde, quando vai poder ampliar a oferta de procedimentos.

Embora a cirurgia seja idealizada por muita gente, Luciana alerta que para que haja sucesso é preciso manutenção da hormonioterapia e bastante cuidado, sobretudo no pós-operatório.

“Nesse momento, pode sangrar muito no local se o paciente não fizer o pós-operatório correto, usando os tampõe, que garantem que a vagina fique na posição até ela cicatrizar. Se não houver cuidado, a genitália pode fechar. Depois que a pessoa vai para casa, pode haver outras complicações, por isso tem que continuar o acompanhamento, retirar os pontos e, na endocrinologia, tomar os hormônios corretamente. Se não tomar, a paciente fica como uma mulher na menopausa, com questões como osteoporose e alterações vasculares”, chama atenção.

Ainda há outras recomendações, como evitar pegar peso, evitar relações sexuais por dois meses e evitar estresse que possa elevar a pressão arterial. É indicado também equilibrar o repouso com caminhadas para evitar constipação e possibilitar a circulação adequada dos nervos inferiores, além do uso de moldes para manter a vagina na posição correta durante a cicatrização.

Vale frisar que para fazer a cirurgia é preciso ter mais de 21 anos, estar inscrito no ambulatório de transgêneros do Hupes, e ter passado pelo menos dois anos pelo programa proposto pela equipe multidisciplinar, que contempla o acompanhamento com uma equipe médica e psicológica, a mudança de nome social e a etapa hormonal, entre outros processos.

O tempo de recuperação da cirurgia é breve, podendo voltar as atividades sexuais após dois meses do procedimento. A internação é de cerca de 2 a 3 dias para mulheres trans e de 5 dias para homens trans.