Bahia tem 23 cidades com mais eleitores do que habitantes calculados no Censo
No Censo de 2010, apenas uma cidade da Bahia teve mais eleitores do que habitantes. Para especialistas, fenômeno tem se intensificado ao longo dos anos
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Daniel Aloisio
Quando uma festa tem mais gente que o previsto, é comum botar água no feijão, para render. Mas isso só acontece quando o feijão é escasso, o que não é o caso de Saubara, produtora do grão em algumas lavouras temporárias. Assim, a cada dois anos, para suprir a chegada “imprevista” de quem volta à cidade apenas para votar, ao invés de faltar, é mais fácil ter sobras.
Localizada no Recôncavo, a 94 km de Salvador por via rodoviária e a menos de 20 km por via náutica, Saubara tem quase 1,3 mil eleitores a mais do que os habitantes calculados no Censo 2022. São 12.726 pessoas aptas a comer uma feijoada e votar, em um ou dois domingos de anos pares, enquanto o município contabiliza, oficialmente, 11.438 habitantes. O “excedente” de eleitores é o maior entre as 23 cidades baianas que apresentam esse fenômeno, ou seja, mais eleitores que moradores.
Os números foram constatados em um levantamento do CORREIO, que cruzou os dados de população do Censo 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com os dados de eleitores de dezembro de 2022 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O resultado chama ainda mais atenção pois, no Censo 2010, a quantidade de eleitores registrados no TSE em dezembro daquele ano só era maior do que a de habitantes na menor cidade da Bahia, Catolândia, no oeste, que também apresentou a mesma característica no Censo 2022. Ou seja, em 12 anos, essa discrepância subiu de uma para 23 cidades. Confira no final do texto a lista de municípios que registram a situação.
Mas por quê?
Cientista político e professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Claudio André diz que é muito difícil que isso seja usado como argumento para se atribuir um erro de contagem habitacional por parte do IBGE. “Essas cidades têm histórico de grandes fluxos migratórios. Há uma prevalência de pessoas que mantém o domicílio eleitoral, mas vão viver em outros municípios. Isso costuma ocorrer também quando se tem grandes cidades próximas”, observa.
Jaime Barreiros, professor e analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-BA), tem uma hipótese parecida. “Eu imagino que tem que ser levado em conta o crescimento das chamadas zonas urbanas, municípios vizinhos e os cidadãos com possibilidades de se deslocar pelas cidades e trabalhar em lugares diferentes de onde nasceram e viveram”.
De fato, algumas cidades da lista se destacam pela proximidade com grandes municípios. Por exemplo, Catolândia, a única cidade do oeste que apresenta esse fenômeno, já foi distrito de Barreiras e está a 42 km de lá. No sul, Barro Preto fica apenas a 30 km de Itabuna. O mesmo acontece no centro-norte, onde Antônio Cardoso está a 32 km de Feira de Santana.
Esses grandes municípios são, justamente, os que possuem bem mais habitantes do que eleitores. Em Salvador, por exemplo, são cerca de 2,4 milhões de habitantes e 2 milhões de eleitores, o que dá uma diferença de 400 mil pessoas, a maior diferença entre as cidades. Logo depois vem Feira de Santana, Vitória da Conquista, Camaçari e Juazeiro, que juntas com a capital baiana formam a lista dos cinco maiores municípios da Bahia.
De onde sou
Eleitora em Saubara, que compartilha com Salvador as águas da Baía de Todos-os-Santos, a representante comercial Amanda dos Santos Rocha cresceu e constituiu família na cidade do Recôncavo, mas teve que se mudar para a capital, onde nasceu, por motivos profissionais.
Amanda dos Santos Rocha
"Em Saubara, me casei, tive um casal de filhos que tiveram quase toda a sua vida na cidade, mas tive que voltar para Salvador por trabalho. Antes, eu trabalhava numa empresa que fechou. E cidade pequena é comércio local ou prefeitura, não tem muitas vagas"
Em Salvador, ela chegou a fundar a empresa Diaman Soluções Financeiras, que atua na área de consórcios e financiamentos. Mas isso não foi suficiente para diminuir seu vínculo com Saubara. “Há uma grande diferença entre casa e lar. Meu lar, o que eu tenho como referência, é em Saubara. Minha família está lá, meus pais estão lá, então, é o meu berço. E apesar de ter a casa de familiares, eu também tenho uma residência própria e o desejo de que no futuro eu possa viver minha aposentadoria na cidade”, revela Amanda.
O operador de máquinas Whebert Xavier é outro eleitor de Saubara que não vive na cidade. Desde 2010, já morou em Salvador, Lauro de Freitas e Simões Filho, sua cidade atual. Mas nunca transferiu o título. “Ainda tenho casa em Saubara e, em qualquer brecha, vou pro lado de lá. Natal, São João e eleição, é claro. Tenho familiares que dependem da prefeitura, amizades, é uma cidade que me sinto bem e quero contribuir”, disse.
Whebert afirma que nunca perdeu uma eleição de prefeito, desde que saiu da cidade. “Toda eleição de prefeito eu vou. Na de presidente, a última que teve agora, eu também fui. Mas já aconteceram de eu não ir também em outras de presidente. Agora, a de prefeito não falto”, afirmou. O motivo da mudança do operador de máquinas também foi para poder trabalhar.
Whebert Xavier
"Meu irmão e meu pai já estavam trabalhando em Salvador e eu fiz o mesmo. O que leva a gente a sair é emprego, é a busca por uma vida mais estabilizada. Em Saubara, ou você monta um negócio, ou vive da prefeitura ou de pesca. Não existem outras opções. Aqui eu construí uma carreira e uma família"
De acordo com o professor Claudio André, muitos desses fluxos migratórios, de fato, são causados por busca de trabalho, como aconteceu com Whebert e Amanda. “E há também o fluxo migratório para São Paulo. As pessoas ainda saem e vão trabalhar no Sudeste. Isso deve ser levado em consideração na análise. Mas também é preciso entender a prevalência do desejo das pessoas de manterem um vínculo com aquele local de origem”, explica.
Morar em uma cidade e votar em outra não é ilegal
Jaime Barreiros explicou que o local onde o eleitor vota depende do seu domicílio eleitoral, que pode ser o lugar de residência ou moradia, como também outro lugar em que o eleitor possua algum vínculo específico, que poderá ser familiar, econômico, social ou político. “A legislação prevê que o eleitor precisa ter um vínculo, como uma propriedade, um trabalho e isso justificaria ele votar, mesmo não morando na cidade”, explicou.
Apesar disso, Barreiros destacou que o fato de 23 cidades terem mais eleitores do que habitantes calculados no censo, que é uma pesquisa considerada confiável, pode ser um indício de fraude, mas não uma certeza. “A própria lei presume que quando o número de eleitores é maior do que 65% da população adulta, é necessário fazer uma verificação”, disse. Essa correção eleitoral pode ser determinada pela Corregedoria Regional Eleitoral.
Jaime Barreiros
"Normalmente, seria um recadastramento dos eleitores. Eles seriam convocados para irem até a justiça eleitoral e comprovarem o vínculo com a cidade. O problema é que o TSE entende que o vínculo não necessariamente é a residência, mas algum vínculo afetivo. A legislação é um pouco aberta em relação a isso. Na prática, considera ter trabalho, negócio, propriedade, ser natural de lá, ter família lá..."
O analista judiciário do TRE explicou ainda que qualquer pessoa pode questionar a justiça eleitoral em caso de suspeita de que algum eleitor não tenha vínculo com a cidade onde vota. “O caso notório, recentemente até, foi o do atual senador Sergio Moro (União-PR), que a princípio ia ser candidato em São Paulo e os concorrentes questionaram que ele não teria vínculo com o estado”, lembrou. Moro acabou se candidatando e vencendo a eleição pelo estado do Paraná.
Fenômeno que se repete
Essa não é a primeira vez que a Bahia registra mais eleitores do que habitantes. Na verdade, a situação já foi pior. Em 2018, o CORREIO mostrou que cinco cidades baianas tinham mais eleitores do que população - duas delas continuam na mesma situação, atualmente: Maetinga e Lajedão. Já em 2020, a discrepância tinha crescido para 28 cidades e, no ano passado, o CORREIO mostrou que eram 36 municípios baianos com mais eleitores do que habitantes.
Nesse último levantamento, no entanto, não foi utilizado dados do Censo de 2022, já que esses números só foram divulgados agora em 2023. A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) foi questionada sobre quantas cidades no Brasil também apresentam o mesmo fenômeno, mas não obtivemos retorno até o fechamento do texto.
Em 2018, a CNM fez um levantamento do tipo e mostrou que, em todo país, 231 cidades brasileiras encaravam essa realidade. Para o então presidente da instituição na época, Glademir Aroldi, a disparidade apresentada poderia ser explicada também pelos casos de pessoas que deixam suas cidades, mas continuam votando nelas e por uma possível subestimação da população calculada pelo IBGE.
"Se por um lado isso pode ser explicado pela mobilidade das pessoas que mudam o domicílio eleitoral para suas cidades de origem ou para cidades litorâneas, podemos também alertar para uma reclamação constante dos gestores municipais, a de que as suas respectivas populações estão subestimadas pelo IBGE", afirmou, na época.
Giovanni Moreira, atual prefeito de Catolândia, única cidade que apresentou mais eleitores do que habitantes em 2010 e 2022, foi procurado, mas não respondeu até o fechamento da reportagem.
Lista das 23 cidades da Bahia que tiveram mais eleitores do que habitantes em 2022:
Saubara
Habitantes: 11.438
Eleitores: 12.726
São 1.288 eleitores a mais do que habitantes
Lajedão
Habitantes: 3.845
Eleitores: 4.681
São 836 eleitores a mais do que habitantes
Vereda
Habitantes: 6.003
Eleitores: 6.796
São 793 eleitores a mais do que habitantes
Itororó
Habitantes: 16.617
Eleitores: 17.372
São 755 eleitores a mais do que habitantes
Santanópolis
Habitantes: 8.716
Eleitores: 9.278
São 562 eleitores a mais do que habitantes
Piripá
Habitantes: 9.152
Eleitores: 9.701
São 549 eleitores a mais do que habitantes
Barro Preto
Habitantes: 5.583
Eleitores: 6.103
São 520 eleitores a mais do que habitantes
Catolândia
Habitantes: 3.434
Eleitores: 3.930
São 496 eleitores a mais do que habitantes
Muniz Ferreira
Habitantes: 7.202
Eleitores: 7.654
São 452 eleitores a mais do que habitantes
Firmino Alves
Habitantes 4.873
Eleitores: 5.291
São 418 eleitores a mais do que habitantes
Ipecaetá
Habitantes: 13.709
Eleitores: 14.122
São 413 eleitores a mais do que habitantes
Itanagra
Habitantes: 5.914
Eleitores: 6.316
São 402 eleitores a mais do que habitantes
Santa Cruz da Vitória
Habitantes: 4.681
Eleitores: 5.028
São 347 eleitores a mais do que habitantes
Caatiba
Habitantes: 6.205
Eleitores: 6.524
São 319 eleitores a mais do que habitantes
Pedrão
Habitantes: 6.235
Eleitores: 6.552
São 317 eleitores a mais do que habitantes
Boa Nova
Habitantes: 13.690
Eleitores: 13.999
São 309 eleitores a mais do que habitantes
Maetinga
Habitantes: 6.973
Eleitores: 7.257
São 284 eleitores a mais do que habitantes
Ibiquera
Habitantes: 3.725
Eleitores: 4.000
São 275 eleitores a mais do que habitantes
Tremedal
Habitantes: 16.296
Eleitores: 16.530
São 234 eleitores a mais do que habitantes
Gavião
Habitantes: 4.360
Eleitores: 4.528
São 168 eleitores a mais do que habitantes
Antônio Cardoso
Habitantes: 11.146
Eleitores: 11.271
São 125 eleitores a mais do que habitantes
Lajedinho
Habitantes: 3.527
Eleitores: 3.575
São 48 eleitores a mais do que habitantes
Elísio Medrado
Habitantes: 7.809
Eleitores: 7.819
São 10 eleitores a mais do que habitantes