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Maysa Polcri
Publicado em 9 de agosto de 2024 às 05:15
Em um território indígena, afastado dos grandes centros urbanos, uma mãe dá à luz. Poucos dias depois, o bebê morre e é enterrado na aldeia. Para o Estado brasileiro, ele nunca nasceu e, como consequência, não morreu. Situações como essas se repetem em terras indígenas em todo o Brasil, inclusive, na Bahia. Os obstáculos para universalizar o registro civil de crianças de até 5 anos são superados, aos poucos, no estado, mas a proporção de indígenas sem certidão de nascimento ainda é 80% maior do que a população baiana em geral. >
Você pode até ter nascido, mas, para o Estado, só passou a existir a partir da emissão da certidão de nascimento. O documento, direito primordial de todos os brasileiros, é o que permite acesso a serviços básicos, como vacinação, matrícula em escolas e auxílio social. Também é pré-requisito para a retirada de outros documentos. >
O registro deve ser feito em cartórios de Registro Civil e Pessoas Naturais, que emitem a certidão de nascimento gratuitamente, como explica Andreza Guimarães, diretora da Associação de Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). “É preciso apresentar a declaração de nascido vivo (DNV), que contém as informações sobre o nascimento e os documentos pessoais, RG e CPF, do país”, diz. >
Os bebês deixam as maternidades com os registros preenchidos, na maioria dos casos, mas essa não é a realidade de todo o país. Na Bahia, 0,63% das crianças indígenas de até 5 anos não tinham certidão de nascimento, segundo informações do Censo 2022. O número representa 102 do total de 16.804 crianças dessa parcela da população. Os dados foram divulgados na quinta-feira (8), pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Embora pequena, a proporção é 80% maior do que a dos baianos em geral (0,35%). >
“Tem casos de mortes de crianças indígenas que não são contabilizadas porque elas nascem e morrem dentro dos territórios. Um dos maiores impactos da falta dos registros é justamente esse. Quando a criança é registrada, o Estado passa a saber e contabilizar sua existência”, analisa Thyara Pataxó, presidente da Associação de Jovens Indígenas Pataxó (Ajip) e estudante de Direito. Em caso de partos sem assistência médica, como os realizados em aldeias, o oficial de registro do cartório mais próximo preenche a declaração de nascido vivo, a pedido da secretaria de saúde.>
Segundo Thyara Pataxó, situações como essa são mais frequentes entre grupos isolados. “O problema da falta de certidão de nascimento atinge, principalmente, comunidades que têm pouco contato com a cidade ou que têm dificuldade em conseguir assistência jurídica”, completa. >
Para driblar as dificuldades de acesso aos cartórios de registro civil, onde as certidões de nascimento são emitidas, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) concede o Registro Administrativo de Nascimento Indígena (Rani). O documento não substitui a certidão de nascimento, mas pode servir para solicitá-lo, no futuro. Na Bahia, 228 crianças de até 5 anos tinham o registro da Funai, segundo o Censo. >
Uma pesquisa divulgada em abril deste ano, apontou que a taxa de mortalidade das crianças indígenas de até 4 anos é mais do que o dobro da registrada entre o restante da população infantil no país. Entre 2018 e 2022, para cada 1 mil nascidos vivos entre os indígenas, 34,7 crianças com até 4 anos morreram. Entre as não indígenas, foram 14,2 mortes, em média. É possível que, pela ausência de registros civis, o número seja ainda maior. >
Queda nos registros >
Nenhum dos 417 municípios baianos possui mais que 5% das crianças de até 5 anos sem certidão de nascimento. Isso mostra que o estado caminha para a universalização do registro civil, uma das metas da Organização das Nações Unidas (ONU) a serem cumpridas até 2030. A média da Bahia é de 99,5% crianças com registro em cartório, o que representa um aumento frente ao Censo 2010, quando a cobertura era de 98,3%. >
Mas nem todas as cidades baianas evoluíram com o passar dos anos. Prova disso é que 19 municípios registraram queda na proporção de crianças registradas. A redução mais significativa ocorreu em Banzaê, no nordeste baiano. Na pequena cidade de 11.958 habitantes, 4,5% das crianças de até 5 anos não têm certidão de nascimento. A localidade é uma das que possui as maiores proporções de habitantes autodeclarados indígenas (24%). O nome Banzaê, inclusive, tem origem indígena e significa “terra dos valentes”. >
“O registro é o primeiro documento civil que oficializa, para o Estado e para a sociedade, a existência de um novo indivíduo. Ele permite o acesso básico a serviços essenciais e garante o exercício da cidadania”, ressalta José Eduardo Trindade, analista do IBGE. “A prova de idade é necessária para prevenir trabalho e casamento infantil, recrutamento de menores para as forças amadas, entre outros”, completa. >
Não é comum, mas existem casos de pessoas que passam a vida sem existir para o Estado. Andreza Guimarães, diretora da Arpen, conta que atendeu o caso de uma pessoa de 50 anos, no município de Castro Alves, que nunca tinha sido registrada. A primeira necessidade de reconhecimento oficial surgiu na pandemia, quando precisou de documento para se vacinar contra a covid-19.>
“As pessoas acham que situações como essas não existem, mas acontecem. São casos de pessoas que passaram a vida na zona rural e nunca foram ao médico. Mas, na pandemia, precisaram se vacinar e não tinham cartão do Sistema Único de Saúde(SUS) e nenhum documento”, diz. Nesses casos, os cartórios têm procedimentos específicos para registro tardio. >
Além da falta de registro civil, uma outra questão, mais frequente, se repete nos lares baianos: a ausência do nome dos pais nas certidões de nascimento. Em fevereiro deste ano, uma reportagem do CORREIO revelou que a cidade baiana de São Domingos tem índice de pessoas registradas sem o nome do pai (18%) quase três vezes maior que o registrado no Brasil (7%). Na Bahia, 35 crianças são registradas sem o nome do pai por dia. >