'Avaliação equivocada', diz Naomar Filho, ex reitor da Ufba, sobre suspensão do ingresso de alunos do BI em Medicina
Gestor foi responsável pela implementação do programa de Bacharelados Interdisciplinares na universidade, em 2009
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Maysa Polcri
maysa.polcri@redebahia.com.br
Quando implementou o Bacharelado Interdisciplinar (BI) na Universidade Federal da Bahia, em 2009, o então reitor Naomar de Almeida Filho entendeu que a nova modalidade serviria como uma porta de entrada para o ensino superior. Nos últimos dias, uma porta foi fechada. Uma decisão do Conselho Acadêmico de Ensino (CAE) suspendeu o curso de Medicina do programa de Bacheralados Interdisciplinares por três anos. A restrição ainda será discutida em instâncias superiores. Para o ex-reitor, ela é “equivocada” e vai “prejudicar diretamente os estudantes cotistas”.
Em entrevista ao CORREIO, Naomar também falou sobre a resistência que o programa sofreu desde a sua criação. “Hoje, ninguém mais assume que foi contra as cotas, contra a interiorização da Ufba, contra o Reuni [Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais], contra o Ihac [Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos], mas a verdade é que todas essas mudanças sofreram forte resistência”. O BI da Ufba foi inspiração para projetos semelhantes em outras instituições como o Bacharelado Interdisciplinar (BI) da Universidade Federal do Sul da Bahia e o programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O Conselho Acadêmico de Ensino decidiu suspender, durante três anos, o ingresso de estudantes vindos do BI para o curso de Medicina. O CAE alega que há excesso de estudantes matriculados, nos últimos anos, por conta de decisões da Justiça. Diante disso, qual a sua avaliação sobre o assunto? O "excesso" de alunos seria uma razão plausível para a decisão do CAE?
Essa avaliação é equivocada. É um argumento falsamente baseado no mérito, desconstruído com facilidade por qualquer análise sociológica séria. Concluintes do BI de origem pobre, muitos deles arrimo de família obrigados a trabalhar, ou vivendo de bolsa de permanência, sofrendo discriminação social, sujeitos ao racismo institucional, longe estão de terem igualdade de condições com jovens que não precisam trabalhar e que trazem o forte capital social de suas famílias de classe média.
Creio que esse caso é semelhante à enxurrada de ações judiciais que a UFBA recebeu ao implantar pioneiramente o modelo integrado de cotas raciais e sociais há quase 20 anos. E a decisão do conselho vai trazer mais problemas de judicialização porque, obviamente, as centenas de estudantes do BI de Saúde que já estão na universidade e ingressaram com o direito explícito e declarado, constante do Projeto Pedagógico dos BIs, de poder fazer a progressão para qualquer dos cursos de segundo ciclo da Ufba, incluindo Medicina. Esse direito é mais cristalino do que o argumento contra as cotas, no passado, e que foi derrubado em todas as instâncias superiores do judiciário.
Suspender essa oferta, subtrair essa conquista, é caso evidente de mudança de regras no meio de um processo institucional. Vai prejudicar diretamente os estudantes cotistas que, além de tudo, nem dispõem de condições para contratar custosos escritórios de advocacia, mas que, certamente, vão se virar para fazer valer o seu direito. E, para isso, certamente terão enorme apoio dos segmentos organizados e mobilizados da sociedade.
Professores e estudantes dizem que, desde que foi criado, o BI enfrenta resistência em ser aceito na Faculdade de Medicina da Bahia. O senhor concorda? O que mudou ao longo dos anos?
É verdade. Mas, não só a Faculdade de Medicina, outras unidades também foram contra a criação dos BIs, mais ainda porque foi o principal eixo do Projeto Reuni na Ufba. Hoje, ninguém mais assume que foi contra as cotas, contra a interiorização da Ufba, contra o Reuni, contra o Ihac Professor Milton Santos, mas a verdade é que todas essas mudanças sofreram forte resistência.
Toda a universidade agora celebra o crescimento de vagas, o aumento dos concursos, as turmas noturnas, uma maior relevância social, não mais encontro quem diga que foi contra. Mas, o que mais escuto é: “não, nunca fui contra as cotas, nem contra o Reuni, mas eu não concordava era com o modo como foi implantado”. O que mudou? Acho que é um pouco o que se passa na sociedade brasileira.
Toda uma nova geração de docentes, funcionários e dirigentes entraram na Ufba por concursos públicos propiciados pelo Reuni, que, aliás, distribuiu vagas docentes e fez investimentos em instalações e equipamentos com todas as dificuldades, para que as unidades de ensino fizessem reformas curriculares para se integrarem ao regime de ciclos. Mas, nas escolas, institutos e faculdades, poucos se mobilizaram para essa integração.
Essa nova geração de docentes, servidores e dirigentes parece que não tem uma compreensão da história e do significado dos programas curriculares inter-transdisciplinares. E os estudantes também não trazem essa memória porque não viveram as lutas. Algo semelhante se passa no plano geral, com várias gerações que não sabem o que foi a ditadura militar nem o advento do neoliberalismo em nosso país.
Quais podem ser as resoluções possíveis, na sua visão, para que o curso de Medicina mantenha um número aceitável de alunos por semestre sem que haja prejuízo aos estudantes do BI?
Espero que a Ufba reveja rapidamente a decisão. Se não, terá que firmar um TAC [Termo de Ajustamento de Conduta] com o MPF [Ministério Público Federal], o mais urgente possível, para que os 400 ou mais cotistas concluintes do BI façam valer o seu direito na justiça.
Espero que daí resulte uma solução que amplie a entrada dos estudantes do BI para todos os cursos, semelhante ao ocorrido no curso de Direito que, ao contrário da Medicina, avalia superpositivamente os estudantes que vêm de um primeiro ciclo que os prepara para a cultura universitária.
E as saídas se encontram na própria universidade, na sua autonomia. Desde o início há soluções previstas nos projetos institucionais do Reuni e nos projetos político-pedagógicos originais dos BIs, e que não foram implementadas. Creio que se pode fazer um esforço institucional para atualizá-las aos novos e complicados tempos de hoje.