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Arquivo Público da Bahia vai a leilão  pela segunda vez para pagar dívidas do governo


 

Imóvel é tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1949

  • Millena Marques

Publicado em 13/10/2023 às 05:30:00
Prédio histórico é tombado, mas isso não o impede de ser leiloado. . Crédito: Marina Silva/Arquivo CORREIO

Patrimônio histórico nacional, desde 1949, e sede do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB) há 43 anos, o Quinta do Tanque ou Quinta dos Padres, como é conhecido, vai a leilão pela segunda vez. Localizado na Baixa de Quintas, o imóvel está penhorado em um processo judicial, que cobra dívidas da antiga Empresa de Turismo da Bahia S.A (Bahiatursa). O prédio poderá ser arrematado no próximo dia 25, em uma casa de leilões, com um lance mínimo de 50% do valor avaliado do bem, que é de R$ 12.448.851,34, de forma online. No ano passado, a propriedade foi arrematada por R$ 13,8 milhões, oferecido por uma empresa pernambucana, que desistiu da aquisição.

O governo do Estado não participou do leilão de 2022, assim como não participará de nenhum outro “por força da distorção quanto ao valor atribuído ao imóvel pelo leiloeiro e o correto valor de mercado (diferença injustificada de R$5 milhões), o que poderia provocar danos ao erário público”. A declaração foi feita pela Procuradoria Geral do Estado (PGE).

A notícia da venda do imóvel gerou indignação de profissionais e entidades ligadas ao APEB. É o caso da Associação dos Arquivistas da Bahia (AABA), que publicou uma nota de denúncia e repúdio ao que chamou de “ameaça ao patrimônio cultural e histórico da Bahia”, com o apoio de diversas organizações. Entre eles estão: Associação Nacional de História (ANPUH), Associação dos Arquivistas da Paraíba (AAPB), Fórum Nacional das Associações de Arquivologia do Brasil (FNArq), Fórum Nacional das Associações de Arquivologia do Brasil (FNArq), Associação Mineira de Arquivistas (AMArq), Associação dos Arquivistas do Estado do Rio de Janeiro (AAERJ), entre outras.

De acordo com a vice-presidente da AABA e coordenadora do FNarq Leide Mota, a maior preocupação é a possibilidade de danos irreparáveis ao patrimônio documental, histórico e à missão do APEB de preservação de memória do povo brasileiro. “O leilão representa uma ameaça significativa ao Arquivo, colocando em risco o patrimônio documental histórico do Brasil. O acervo guarda parte importante da história do país e de sua conexão com a história global”, disse.

O prédio é  sede do APEB desde de 1980. São 7.360,14 metros lineares de documentos procedentes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, datados entre os séculos XVI e XXI. O acervo é composto por materiais em formato de texto, iconografia e cartografia, além de contar com uma biblioteca exclusiva sobre a história da Bahia.

“A realização do leilão pode levar à destruição desse acervo e também ameaça à integridade do edifício, já que não é possível atribuir um valor monetário adequado a esse patrimônio cultural brasileiro”, pontuou Mota.

Cerca de 35 pessoas trabalham no prédio, atualmente. Até o momento, a Fundação Pedro Calmon, entidade responsável por administrar o Arquivo Público, não informou o que acontecerá com os colaboradores do local, caso o prédio seja arrematado em leilão. Em nota, a entidade afirmou que tentará manter o Arquivo na atual sede. 

"O Governo do Estado da Bahia defende que o prédio Solar da Quinta do Tanque é parte indissociável da memória, identidade e do patrimônio cultural e histórico do nosso estado, razão pela qual estamos empenhados em garantir que a sede do APEB siga funcionando nas dependências dessa importante edificação, desempenhando sua nobre missão, permanecendo acessível à comunidade acadêmica, pesquisadores e ao público em geral.", afirmou em nota.

A autarquia é vinculada à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (Secult-BA), que foi procurada. O texto enviado pelo órgão estadual à reportagem foi o mesmo encaminhado pela Fundação Pedro Calmon. 

Conforme texto da PGE, o governo estadual promoverá a desapropriação do imóvel, com atribuição de justo valor. “O imóvel, portanto, ainda integra o patrimônio público, confiante o Estado da Bahia no reconhecimento de suas alegações para invalidar o leilão e afastar a penhora sobre o bem, patrimônio cultural dos baianos”.

A PGE também informou que o imóvel vai ser levado a leilão por causa de uma ação ordinária movida pela TGF Arquitetos Ltda, ajuizada em 25 de setembro de 1991, em curso na 3ª Vara Cível da Capital, contra a Bahiatursa, "em que se buscava receber indenização por serviços que teriam sido prestados na elaboração de projetos." Na época, a Bahiatursa teria alegado a inexistência de contratação e que os projetos não haviam sido apresentados de forma espontânea. Em 1990, a ação foi julgada procedente, com um acordo realizado no ano seguinte. No entanto, a autora da ação alegou que o acordo não teria sido cumprido. 

"Com a extinção da BAHIATURSA (Lei nº 13.204/2014) e suas funções assumidas pela Secretaria de Turismo, o Estado da Bahia ingressou na ação, representado pela Procuradoria Geral do Estado. A penhora se mostra válida considerando que, quando ocorreu, o bem tinha natureza privada e não pública", afirmou nota da PGE. 

Procurado, o Iphan informou que caso ocorra a alienação do prédio, o regime de proteção do imóvel não será interrompido, visto que o tombamento incide sobre a edificação e não ao Apeb. “O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) não pode questionar ou impugnar eventual leilão de bem imóvel tombado. No entanto, destacamos que permanecerão válidos, para todos os fins, os efeitos do tombamento do imóvel em relação ao eventual futuro adquirente do bem, de acordo com o Decreto-Lei nº 25/1937”, pontuou.

Um prédio histórico

O Quinta do Tanque é um dos ícones da época da colônia. Ocupado por padres jesuítas desde o século XVI, a propriedade foi utilizada como casa de repouso para os sacerdotes até meados do século XVIII, quando a Igreja Católica possuía forte influência na cidade do Salvador, e como leprosário, no mesmo século, após uma reforma. Em 1970, o prédio foi restaurado e, dez anos depois, passou a abrigar o segundo maior e mais importante acervo documental do país.

"É uma verdadeira relíquia da Bahia, do ponto de vista da arquitetura, que somado a isso, é a guardiã de milhões de documentos escritos, iconográficos, religiosos, oficiais, públicos e privados, que engrandecem o nosso estado", disse o historiador Rafael Dantas, pesquisador na área de cultura material e iconografia com ênfase na divulgação da Cidade do Salvador e do estado da Bahia no mundo, durante os séculos XIX e primeiras décadas do século XX.

A incerteza sobre o destino do acervo é o que também preocupa Dantas. "O Estado tem que dar uma resposta definitiva sobre a situação do Arquivo Público da Bahia, que é um patrimônio de todos nós e deve continuar sob a gestão estadual. O que vai aconteceu com o prédio e com o acervo após o leilão?", questionou.

O que diz a Lei

De acordo com o advogado David Vilasboas, mestre em Direito Público pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), o imóvel pode ser objeto de penhora porque não pertence mais ao Estado e, sim, à Bahiatursa, que era uma sociedade de economia mista, sendo o Estado o acionista majoritário. "A partir do momento que o imóvel sai do patrimônio do Estado e entra na sociedade de economia, ele pode ser objeto de penhora", pontuou.

A decisão do processo de penhora foi proferida pela desembargadora Ilona Márcia Reis, pela Quinta Câmara do Tribunal de Justiça, em outubro de 2022. 

O especialista também explicou que um prédio tombado pelo Iphan pode ser levado a leilão, no entanto, a União, os Estados e municípios têm preferência para comprar o bem, conforme prevê o Art. 892, § 3º: "No caso de leilão de bem tombado, a União, os Estados e os Municípios terão, nessa ordem, o direito de preferência na arrematação, em igualdade de oferta."

*Com orientação da subeditora Monique Lôbo