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Para salvar Caatinga, Bahia compra sementes de Pernambuco e São Paulo


 

Projeto em Feira de Santana quer plantar 1 milhão de árvores na caatinga até 2030

  • Carolina Cerqueira

Salvador
Publicado em 12/05/2024 às 05:00:38
Projeto Reflorestando a Caatinga foi criado por Rafaella Lopes em 2022. Crédito: Marina Silva/CORREIO

No imaginário coletivo, ele é seco, quente, terroso e quase completamente vazio, se não fossem alguns cactos para contar história. Mas, na verdade, esse é só um pedaço do bioma Caatinga. Um pedaço degradado. A Caatinga, exclusivamente brasileira, é a região semiárida mais populosa do mundo e dona de uma biodiversidade com mais de 4 mil espécies vegetais e mais de mil espécies de animais, entre mamíferos, aves, répteis, anfíbios, peixes e abelhas.

Os dados são do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), de 2021, que registra as mudanças no bioma que corta a Bahia no meio. Foi atenta ao desmatamento na cidade onde nasceu, Feira de Santana, que Rafaella Lopes, de 45 anos, decidiu agir.

Em 2022, ela começou a sonhar com o projeto Reflorestando a Caatinga, que só conseguiu colocar em prática em 2024, em parceria com a escola onde fez o curso técnico de meio ambiente de 2018 a 2020: Centro Territorial de Educação Profissional (Cetep) Portal do Sertão.

O sonho é alto: plantar um milhão de árvores de espécies nativas da Caatinga até 2030. Depois, também quer vender lenhas com certificação para evitar o desmatamento ilegal e criar um aplicativo para o monitoramento de cada árvore plantada.

Bioma menos protegido

Mesmo sendo considerado um patrimônio biológico por especialistas e ocupando cerca de 11% do território brasileiro, é o bioma menos protegido do país (apenas 9% dele está coberto por unidades de conservação), de acordo com o Atlas da Caatinga.

Projeto Reflorestando a Caatinga quer reverter cenário de degradação do bioma. Crédito: Marina Silva/CORREIO

O resultado? Desmatamento para pastagens e agricultura, extração insustentável de lenha para fins energéticos, ocupação para mineração, pastoreio excessivo, ocupação para monocultura.

Ainda de acordo com o Atlas, a ocupação do território alterou cerca de 80% da cobertura original da Caatinga. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, 10,57% da fauna do bioma estão em alguma categoria de ameaça de extinção. Quanto às espécies de plantas, a porcentagem sobe para 30,1%.

Segundo o Instituto Nacional do Semiárido (Insa), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), a maior preocupação dos cientistas em relação à Caatinga está na Bahia.

“Além de uma grande área devastada através da ação humana e pelas consequências das alterações climáticas da Terra, há regiões caminhando para um semideserto”, aponta Mônica Tejo, diretora do Insa.

Em novembro de 2023, o Correio* noticiou a identificação da primeira área de clima similar ao de desertos no Brasil. A região, de cerca de 5 mil km², equivalente a oito vezes a cidade de Salvador e fica no norte do estado. Além do aparecimento do ponto árido, os pontos semiáridos foram expandidos e ficaram ainda mais secos. A maior porção do semiárido está na Bahia.

Em busca de sementes

Para tentar reverter esse cenário no estado, Rafaella deu o pontapé inicial do Reflorestando a Caatinga no dia 29 de março, acompanhado pelo Correio*. Um viveiro com capacidade para mais de 1.500 mudas foi instalado no terreno do Cetep Portal do Sertão, que fica na zona rural. No primeiro dia foram 90 plantações, com sementes de jacarandá, catingueira e angico vermelho.

Sementes plantadas foram trazidas de Pernambuco e São Paulo. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Ao plantar as primeiras mudas, Rafaella se emocionou. “É muito amor. Eu chorei também quando vi o viveiro instalado. São pelo menos dois anos de sonhos e expectativas. É muito bom estar vivendo isso e agora já estou ansiosa para ver o projeto indo além dos muros da escola”, diz.

O negócio social conta com três patrocinadores (Biomassa Ecoflorestal, LD Engenharia e Venturolli), que ajudaram a arcar com os custos de cerca de 26 mil reais para os primeiros passos, que incluem a aquisição das sementes.

“Descobri que existem bancos de sementes, onde podemos comprá-las. Foi muito difícil encontrar aqui na Bahia e eu tive que comprar em Pernambuco e São Paulo”, conta Rafaella.

Agora, ela quer capacitar moradores de Feira de Santana e região como coletadores de sementes e fez um curso para poder levar o conhecimento adiante e unir geração de renda para a população e preservação do meio ambiente.

Todas as sementes devem ser cadastradas no Renasem, Registro Nacional de Sementes e Mudas feito para o controle do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

O projeto também vai receber estagiários da escola técnica. Num primeiro momento, serão quatro estudantes, que estão em fase de seleção. Thaíse Louran Nascimento, de 36 anos, quer fazer parte do grupo. Ela cursa o terceiro semestre de agropecuária e diz que o projeto abriu sua mente para a possibilidade de reflorestamento.

Thaíse (ao fundo) e Eliene (na frente) são alunas do curso técnico de agropecuária . Crédito: Marina Silva/CORREIO

Eliene Salomão, de 28 anos, é colega de turma de Thaíse e diz que não vê a hora de colocar em prática as técnicas aprendidas através do projeto em sua propriedade e na de vizinhos.

“Me vejo como uma ponte desse conhecimento, quero abrir a mente da comunidade. Na zona rural vemos muito desmatamento sem ação de compensação”, explica Eliene, que planta culturas como milho, feijão e mandioca nas terras da família, que é fonte de renda para os membros.

O professor de Eliene e Thaíse no curso de agropecuária, Rosembrando Filho, de 29 anos, explica que as sementes, inicialmente, foram alocadas em sementeiras para a germinação e desenvolvimento. Em seguida, serão transferidas para recipientes maiores, mas ainda poderão permanecer no viveiro, que funciona como um berçário de plantas.

Por último, a muda estará pronta para ser transferida para um solo em espaço aberto, fora do viveiro. “Essas espécies arbóreas endêmicas da Caatinga costumam levar de 10 a 30 anos para atingirem o porte ideal”, afirma Rosembrando.

Rosembrando é professor do Cetep e responsável técnico pelas plantações do projeto. Crédito: Marina Silva/CORREIO

O cenário da Caatinga

As primeiras mudas plantadas pelo Reflorestando a Caatinga têm destino certo: a recomposição da mata ciliar de um espaço degradado dentro da própria escola, denominado Lagoa do Cachorro. O também professor do Cetep Portal do Sertão, Sidney Martins, de 47 anos, conta que o local era passagem para tropeiros vindos do município de Cachoeira e onde animais bebiam água.

“Com a ocupação urbana, mesmo com a cerca que colocamos protegendo, o pessoal invade. Já tivemos queimada ali e jogam muito lixo. Além disso, quando um loteamento próximo estava sendo construído, escavaram para fazer uma lagoa artificial e a terra foi para a Lagoa do Cachorro, provocando assoreamento”, lembra Sidney.

Segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em 2023 foram aplicados 2.148 autos de infração na Caatinga, um aumento de 39% em comparação com a média dos últimos quatro anos (2019 a 2022). Em 2022 foram aplicados 1.895 autos de infração no bioma.

O órgão afirma que mantém a presença de agentes em áreas críticas, além de fazer uma fiscalização remota do desmatamento, a fiscalização de fraudes nos sistemas de controle florestal e a apreensão de bens e produtos produzidos em áreas embargadas por desmatamento ilegal.

Mapa da Caatinga e áreas de proteção. Crédito: Insa/MCTI

No dia 16 de abril, foi realizado pelo Ministério do Meio Ambiente um seminário, em Brasília (DF), para a elaboração de um plano de combate ao desmatamento e queimadas na Caatinga. A iniciativa é parte da construção do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento no bioma, com lançamento previsto para ainda este ano.

Os planos para a Amazônia e o Cerrado foram lançados em junho e novembro do ano passado, respectivamente, e estão em implementação. Os seminários para o Pantanal e para o Pampa também aconteceram em abril de 2024. Um plano para a Mata Atlântica está em construção.

Para a professora do Cetep Portal do Sertão, Silvia Cerqueira, de 40 anos, há um longo caminho a ser percorrido. “Degradar é muito mais rápido do que recuperar”, provoca a reflexão, e defende:

“Não podemos colocar a culpa nos pequenos produtores, que compram suas pequenas terras a muito custo e ainda precisam reservar uma porcentagem para preservar. Essas pessoas precisam de educação ambiental, mas também ajuda, incentivo.”

O professor Sidney Martins lembra que tentou reflorestar o entorno da Lagoa do Cachorro, em 2021, mas não teve sucesso. “Plantei cerca de 20 pés de tamarindo, mas eles não vingaram. Naquele ano, tivemos uma seca muito forte.”

Sidney conta sobre o processo de degradação da Lagoa do Cachorro, atingida por lixo, assoreamento e queimadas. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Deorgia Souza, doutora em geociências e professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), ressalta os cuidados necessários para o reflorestamento.

“É preciso fazer um diagnóstico do solo e escolher quais espécies serão plantadas para melhor adaptação e não haver disputa ecológica entre as plantas e nem interferência de animais. Se houver escassez de água, é preciso fazer um processo tecnológico para irrigação. Por fim, deve haver um monitoramento para acompanhar todo o processo de desenvolvimento.”

Com o sucesso do processo, os benefícios são inúmeros: aumento da umidade local, aumento da biomassa viva, diminuição de carbono da atmosfera, diminuição da temperatura, recuperação de solos degradados, etc.

Outras iniciativas

Deorgia é uma das integrantes do MapBiomas, que coleta dados sobre a cobertura e uso da terra no Brasil. A iniciativa é vinculada à Uefs, que auxilia com o estudo da Caatinga.

Foi na universidade que nasceu a startup Geodatin, em 2018, que ajuda governantes e instituições de todo o mundo a ter acesso a dados espaciais coletados através de inteligência artificial sobre uso e cobertura do solo. A startup é vinculada ao Parque Tecnológico da Bahia, em Salvador.

A partir dos recursos, a pesquisadora Deorgia destaca a identificação de áreas arbóreas densas de Caatinga em partes da Bahia. “As pessoas pensam que a Caatinga é um bioma morto e sem vegetação, mas as áreas que não foram degradadas são verdadeiras florestas. Alguns exemplos são Juazeiro, Canudos, Uauá e Curaçá.”

Outro imaginário sobre a Caatinga que precisa ser combatido, defende o professor Rosembrando, é de que o bioma é resiliente e não precisa de proteção. “As plantas da Caatinga se adaptam muito bem, convivem com o estresse hídrico, mas há muito impacto ambiental causado pelo homem. Não tem como ser resiliente a isso”, coloca ele.

A professora de Geografia Física da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Grace Bungenstab Alves acrescenta que, além do impacto direto do homem, as mudanças climáticas, como impacto indireto, também são uma preocupação.

“As alterações estão cada vez mais rápidas e o tempo evolutivo das plantas e dos animais não consegue acompanhar. O que já estamos vendo são chuvas cada vez mais escassas e, quando acontecem, são extremas, com grande concentração. Se você tem um solo degradado sem cobertura vegetal, o resultado é um verdadeiro estrago.”

O Nordeste enfrentou, de 2012 a 2017, a seca mais longa da história nos 160 anos de dados registrados. Segundo o meteorologista Humberto Barbosa, o período de chuvas no semiárido (geralmente de fevereiro a maio) tem diminuído, com secas de 10 a 11 meses em algumas regiões.

Em março de 2024, como mostra o Instituto Nacional de Metorologia (Inmet), o mapa do Nordeste aparece quase que totalmente laranja, indicando chuvas bem abaixo do esperado. 

Chuvas em março de 2024 foram bem abaixo do esperado para grande parte da Caatinga. Crédito: Reprodução/Inmet

São esses estragos que a ONG Feira Viva tenta evitar. O projeto, também localizado em Feira de Santana, foi criado há um ano pelo ambientalista João Dias de Santana, de 60 anos, juntamente com professores da Uefs, de escolas estaduais e municipais e ainda professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Os 35 membros lutam contra os constantes alagamentos decorrentes das fortes chuvas em Feira de Santana. “Os aquíferos e os lençóis freáticos estão comprometidos, estão rasos e, quando chove forte, as lagoas, os riachos e os rios transbordam”, diz João. Segundo um levantamento da ONG, são 60 lagoas totalmente degradadas e 21 lagoas vivas com algum grau de comprometimento.

“Se você soma as chuvas concentradas com a degradação de lagoas e de solos, o resultado é o que estamos vendo ultimamente: bairros inundados com a água atingindo até dois metros de altura. Enquanto os governantes não entenderem que, se não fizeram nada, todos vão sofrer, não teremos uma solução”, se posiciona o ambientalista.

A ONG Feira Viva faz o que está ao seu alcance. Um dos projetos é a reinserção de abelhas na região. “Na zona rural, as abelhas sem ferrão, chamadas de abelhas indígenas, estão sumindo por conta da aplicação indiscriminada de agrotóxicos e pesticidas nas fazendas. Estamos trazendo, de forma regularizada, algumas abelhas do município de São Gonçalo para Feira de Santana”, explica João.

A nível nacional, o Instituto Nacional do Semiárido (Insa) atua com projetos e pesquisas nas áreas de recuperação de áreas degradadas através de plantio de flora nativa, preservação e conservação da biodiversidade e do solo.

Entre os anos de 2019 e 2023 foram implantadas mais de 120 unidades da tecnologia de Saneamento Ambiental e Reuso de Água, reaproveitando quase um milhão de litros de água para produção agrícola, sendo cerca de 80% em escala familiar. Aliado a isto, nos últimos dois anos, houve a distribuição de mais de 8 mil mudas de plantas nativas para reflorestamento.

A reportagem procurou a Secretaria do Meio Ambiente da Bahia (Sema) e a Prefeitura de Feira de Santana para responder sobre a degradação do bioma no estado e sobre possíveis iniciativas tomadas, mas não obteve retorno.