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Calor de 40°C e casas inundadas: a vida dos baianos que convivem com os extremos climáticos


 

Aquecimento global tornam eventos extremos mais comuns e frequentes, alertam especialistas

  • Maysa Polcri

Publicado em 23/05/2024 às 05:00:41
Chuva causou estragos em Porto Seguro, no sul da Bahia, em 2021. Crédito: Isac Nóbrega/PR

Luciene Demétrio, 51, lembra bem daquele dezembro de 2021, no distrito de Sambaituba, em Ilhéus O relógio já marcava às 3 horas da manhã quando o nível do Rio Almada subiu, deixando o bairro parcialmente submerso. A casa em que Luciene mora com o marido, às margens do rio, foi uma das primeiras a ser atingida. O muro dos fundos desabou e a família precisou sair de casa às pressas durante a madrugada. Há cerca de um mês, o rio transbordou novamente, causando mais transtornos.

A situação da zona rural do município do sul da Bahia é como uma peça do quebra-cabeça que envolve todo o planeta. Os eventos climáticos extremos estão cada vez mais frequentes e intensos, segundo especialistas. O alerta de quem entende do assunto engrossa o coro de quem mais sofre com os impactos da destruição.

“Uma enchente como a de 2021 só tinha acontecido da mesma forma em 1981. Mas de lá pra cá a gente vê que chove mais e os bueiros, entupidos, não dão conta. Há cerca de um mês a água entrou em casa de novo”, conta Luciene. Entre o Natal e o Ano Novo de 2021, os barcos viraram os principais meio de locomoção dos moradores de Sambaituba. A dona de casa só conseguiu reconstruir a residência com a ajuda do Grupo Amigos da Praia (GAP), que arrecadou doações.

As chuvas que atingiram especialmente o sul e extremo-sul da Bahia fizeram com que mais de 470 mil pessoas deixassem suas casas em 165 municípios. Na ocasião, 26 pessoas morreram. No mesmo estado em que habitantes são vítimas de alagamentos e enchentes, o calor extremo também faz estragos. A seca fez com que 160 cidades baianas decretassem estado de emergência apenas no ano passado.

As temperaturas altas do verão em Ibotirama fizeram com que os moradores corressem às lojas do município. O estoque de climatizadores esgotou nos maiores estabelecimentos depois que os termômetros marcaram 40,8ºC. Em Barreiras, que registrou 39,5ºC em setembro do ano passado, a pedagoga Elaine Kedma decidiu comprar mais um ar-condicionado.

“Durante a pandemia, eu ficava muito em casa e o calor era demais. Foi quando senti a necessidade de ter ar-condicionado em outros cômodos da casa. Por conta do aumento do consumo de energia e o valor da conta, financiei a compra e instalação de placas solares”, conta. “Nasci em Barreiras e venho sentindo o calor aumentando a cada ano”, diz.

A bióloga Carolina Borges, que estuda governança climática, explica que a sensação da pedagoga tem comprovação científica. “As ações humanas estão diretamente relacionadas às mudanças climáticas. Desde a Revolução Industrial, temos aumentado de forma muito drástica a emissão de gases de efeito estufa, que se acumulam na atmosfera e pioram o aquecimento global”, analisa.

Com o planeta mais quente, os eventos climáticos extremos ficam mais comuns, como a dona de casa Luciene Demétrio tem percebido na zona rural de Ilhéus. “Os eventos climáticos sempre aconteceram, mas com a crise climática, eles se tornam mais frequentes e intensos”, completa. Apenas no ano passado, a Bahia sofreu o efeito de ao menos cinco ondas de calor. 

Os eventos climáticos extremos causam danos financeiros e abalam o emocional de quem enfrenta desastres. A Bahia é o 3º estado onde mais casas foram destruídas entre 2013 e 2023, segundo levantamento feito pela Confederação Nacional de Municípios (CNM). Entre residências destruídas e danificadas, foram cerca de 84 mil.

Uma delas foi a de Cintia Faria dos Santos, 38. O telhado da casa em que ela vive desde pequena foi destruído durante as chuvas de 2021, em Malhado, distrito de Ilhéus. No ano passado, a água invadiu a casa e destruiu móveis novamente. “Os bueiros da rua entupiram e a água do esgoto entrou aqui de novo. Minha filha estava grávida e a gente tinha comprado os móveis para o bebê e o berçário ficou danificado”, relembra.

Agora, toda vez que chove forte, Cintia evita sair de casa e teme o pior. “Sou nascida e criada nessa casa e nunca tinha entrado água antes de 2021. De lá para cá, tudo piorou. Quando chove, a gente nem dorme porque fica com medo de perdemos os móveis de novo. Eu nem saio de casa porque tenho medo de não conseguir voltar”, desabafa.

Mas, afinal, ainda dá tempo de evitar mais estragos causados pelas mudanças climáticas? A bióloga Carolina Borges explica que a redução do desmatamento e a emissão de gases poluentes são algumas das medidas de mitigação. “O mitigar e o adaptar precisam caminhar juntos. A adaptação consiste em planejar as cidades para que elas possam aguentar e diminuir os impactos dos eventos climáticos extremos para a população”, afirma.

Os impactos das mudanças do clima serão alguns dos temas debatidos no III Fórum ESG Salvador, realizado pelo Jornal CORREIO e Alô Alô Bahia (confira a programação aqui), no Porto de Salvador.

ESG e mudanças climáticas: o que as empresas têm a ver com isso?

Desde pequenas, as crianças são ensinadas a desligar a torneira do banheiro enquanto escovam os dentes e a apagar as luzes quando saem de algum cômodo da casa. São maneiras de preservar o meio ambiente, os adultos explicam. As medidas são válidas, mas, sem a participação de quem mais polui, ações individuais não dão conta de reverter os problemas ambientais, segundo especialistas.

A preocupação com as mudanças climáticas é um braço significativo dos pilares do ESG - sustentabilidade, responsabilidade social e transparência, em tradução para o português. A sigla representa as práticas que priorizam o desenvolvimento sustentável. Entre as medidas adotadas por empresas estão a redução de gases poluentes, reciclagem e diminuição do desperdício de água.

“Das 200 maiores receitas do mundo, 157 são de empresas. Isso significa que existem 157 empresas, no mundo, que são tão grandes ou maiores, economicamente, do que nações. É claro que quem mais explora a biodiversidade e quem mais gera resíduos são as empresas. Quando uma corporação de grande porte resolve reduzir seus impactos ambientais, é algo muito significativo”, analisa Augusto Cruz, consultor empresarial e especialista em ESG.

Há 24 anos, baianos viram a oportunidade de transformar lixo em energia renovável, muitos antes de ESG entrar na moda. Assim surgiu a MDC Energia, que aproveita o gás produzido em aterros sanitários para produzir biometano. A solução ecologicamente correta evita que os gases sejam liberados na atmosfera e contribuam para o aquecimento global. Depois de tratado, o biometano é utilizado para o fornecimento de energia em indústrias e combustível para veículos (GNV).

“Nós fomos pioneiros no mercado. Há 20 anos, se falava em preocupação ambiental, mas não da forma que é hoje em dia. Estamos vendo as consequências da poluição de carbono no mundo, com as mudanças ambientais”, conta Neila Larangeira, uma das fundadoras da empresa.

Ao longo dos anos, Neila acompanhou o crescimento da concorrência e a regulamentação do mercado. “Não havia regulamentação naquela época e as pessoas sequer entendiam como funcionava ‘gás feito de lixo’”, relembra Neila Larangeira. Hoje, o gás produzido pela empresa é transportado por gasodutos para a Companhia de Gás da Bahia, que comercializa o produto.

À medida que as discussões avançam, a cobrança sobre a responsabilidade ambiental das empresas cresce. Uma pesquisa feita pela PwC Brasil e Instituto Locomotiva revela que 89% dos brasileiros acreditam que as empresas devem ter iniciativas sustentáveis para combater as mudanças climáticas. A partir de 2026, as companhias abertas, que têm negociações na bolsa, deverão disponibilizar relatórios de riscos ESG.

O documento seguirá as normas do International Financial Reporting Standards (IFRS) - Normas Internacionais de Informação Financeira, em tradução para o português. Elas são padronizadas pelo órgão International Sustainability Standards Board (ISSB) e incluem informações sobre riscos e oportunidades ligados à sustentabilidade (IFRS 1) e clima (IFRS 2), como gestão de riscos e metas de sustentabilidade. Até agora, a medida tem caráter voluntário.

“O IFRS será obrigatório para empresas de capital aberto a partir de 2026. As empresas precisarão relatar temas relacionados a governança e seus impactos no clima. Quando falamos hoje de questões ambientais e climáticas, analisamos como as empresas estão impactando no clima e, agora, como o clima impacta no negócio”, explica Augusto Cruz, especialista em ESG.

Especialistas admitem os avanços da agenda ESG no mundo corporativo, mas um longo caminho ainda precisa ser percorrido. É o que diz Vinicio da Fonseca, que presta consultoria ambiental para empresas da Região Metropolitana de Salvador.

“As pessoas estão começando a tomar consciência que o negacionismo está nos levando a uma catástrofe. Mas, para quem está dentro, ainda é muito difícil falar sobre isso”, diz Vinicio, da consultoria Ecosoluti. Ele está à frente de um pátio de compostagem, que transforma matéria orgânica em adubo natural.

A responsabilidade das empresas e os impactos da poluição nas mudanças do clima serão alguns dos temas debatidos no III Fórum ESG Salvador, realizado pelo Jornal CORREIO e Alô Alô Bahia (confira a programação aqui), no Porto de Salvador. No evento, estarão expostas bolsas artesanais produzidas a partir de resíduos de lona utilizados na estrutura do Carnaval de Salvador.

O projeto é do Instituto Mandarina, dos mesmos fundadores da MDC Energia, que acelera negócios de empreendedores locais. Além de reciclar mais de uma tonelada de resíduos, o projeto beneficiará 30 mulheres artesãs. Estarão expostas 100 bolsas, de 10 modelos diferentes.

“As peças são tramadas com trabalhos autorais artesanais aplicados a estas lonas, por mulheres das comunidades da Península de Itapagipe, acompanhadas por mentorias conduzidas por empreendedores especialistas, que compartilham suas experiências e conhecimentos com aquelas que estão iniciando seus negócios. É um trabalho colaborativo que envolve muitas mãos”, conta Neila Larangeira presidente do Instituto Mandarina.

9 em cada 10 brasileiros acreditam nos impactos das mudanças climáticas, revela pesquisa

Eventos climáticos extremos dão pistas que essa é a era da quebra de recordes. Os termômetros de Salvador registraram 36ºC, a maior temperatura deste ano, em janeiro. Um mês depois, o volume de chuva registrado na capital baiana foi o maior dos últimos 19 anos. Situação que se repete também em todo o país. Diante desse contexto, uma pesquisa revela que 9 em cada 10 brasileiros acreditam que o ser humano será cada vez mais afetado pelas mudanças climáticas.

A pesquisa, feita pela PwC Brasil e Instituto Locomotiva, aponta ainda que 89% brasileiros acreditam que as empresas devem ter iniciativas sustentáveis para combater as mudanças no clima. Foram ouvidas 1.500 pessoas, entre março e abril, antes das enchentes que atingem o Rio Grande do Sul.

Outro dado alarmante é que 38% dos brasileiros afirmam que ficaram presos em casa ou em estabelecimentos por conta de enchentes nos últimos cinco anos. A Bahia é o 3º estado onde mais casas foram destruídas entre 2013 e 2023, segundo levantamento feito pela Confederação Nacional de Municípios (CNM). Entre residências destruídas e danificadas, foram cerca de 84 mil.

O estudo da PwC Brasil e Instituto Locomotiva ainda mostra que 18% já tiveram a casa invadida por enchentes e 63% têm receio de ter a casa invadida pela água. Segundo o presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles, a tragédia enfrentada pelos gaúchos deve aumentar ainda mais o temor dos brasileiros em relação aos riscos de enchentes.

As marcas da desigualdade social também são evidentes. Cidadãos das classes D e E já vivenciaram mais alagamentos onde moram (50%, ante 46% das classes A e B). O mesmo pode ser observado quando se faz o recorte em relação a pessoas brancas e negras - 52% dos negros já enfrentaram alagamentos nos últimos anos. Para os brancos, o percentual é de 46%.

“A questão central é que, para que os efeitos devastadores das mudanças climáticas sejam mitigados, é preciso enfrentar com ações concretas as desigualdades que permeiam nossas cidades, em especial as vilas, favelas e periferias. Diante disso, os consumidores estão de olho e cobrando o que o setor privado faz no combate às mudanças climáticas”, diz Renato Meirelles.

A percepção em relação às mudanças climáticas também é uma realidade para a maioria dos brasileiros: 8 em cada 10 afirmam ter notado chuvas mais fortes do que o habitual nos últimos anos, sendo que 81% relacionam esse fenômeno às ações humanas. Questionados sobre o aumento de pontos de alagamento ou enchentes, 76% observam o fato na cidade em que vivem e 95% acham que as atividades humanas são a causa.