Vinícolas do trabalho escravo são 'canceladas' em boicote nas redes e mercados
Repúdio à Aurora, Garibaldi e Salton, além de xenofobia de vereador contra baianos, já afetam turismo
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Da Redação
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Em solidariedade aos escravizados baianos, rede de varejo carioca aderiu ao boicote e devolveu estoque da Aurora (Imagem: Reprodução) Ação e reação, causa e efeito, lei do retorno ou feitiço que se vira contra o feiticeiro. Tanto a ciência quanto a sabedoria popular têm variadas maneiras de dar sentido à onda negativa gerada pela descoberta de trabalho escravo nas vinícolas do Rio Grande do Sul, amplificada pelo discurso xenofóbico do vereador gaúcho Sandro Fantinel. O gesto de repúdio coletivo foi dirigido para onde, segundo o senso comum, dói mais: o bolso. A ofensiva veio em forma de boicote. Inicialmente, os alvos foram as três vinícolas que usavam mão de obra em condições análogas à escravidão na colheita de uvas. “Não comprem os vinhos das marcas Aurora, Garibaldi e Salton”, disparou uma publicação que se repetiu em milhares de tweets ao longo da semana, logo após o resgate de mais de 200 trabalhadores pela Polícia Rodoviária Federal no último dia 22 de fevereiro, em Bento Gonçalves, cidade da Serra Gaúcha. A maioria das vítimas era do interior baiano.
Em pouco tempo, as vinícolas gaúchas foram ao topo dos assuntos mais comentados do Twitter do pior jeito possível, com legiões de consumidores empenhados em boicotá-las. “Está vendo este espumante? Ele tem o gosto amargo do trabalho análogo à escravidão” e “Não consumam bebidas envenenadas com racismo e trabalho escravo” foram apenas duas entre milhares de postagens, mas sintetizaram o tom da reação contrária.
A força da revolta foi tanta que migrou das redes sociais para as prateleiras. No Rio de Janeiro, a Rede Zona Sul devolveu todos os itens da Aurora que estavam no estoque dos seus mais de 40 supermercados espalhados pela capital fluminense. Nem as justificativas, negativas, pedidos de desculpas e promessas de empenho em combater a prática nos contratos de terceirização com empresas responsáveis por arregimentar trabalhadores conseguiram frear o avanço da maré contrária, que se manifestava também em lembretes colocados por clientes nas garrafas à venda por todo o país.
Para piorar, a concorrência tratou logo de aproveitar a brecha para ganhar espaço. “Que tal trocar os sucos Aurora, Salton e Garibaldi pelos nossos, da Monte Veneto, que não só não têm trabalho escravo, como já ganharam a medalha de ouro no Wine South America?”, sugeriu Marina dos Santos, dirigente nacional do MST, que produz sucos e vinhos. Os consumidores baianos também foram às redes para difundir vinícolas do Vale do São Francisco, Mucugê e Morro do Chapéu.
No mesmo rastro, a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex Brasil) tirou o trio Aurora, Garibaldi e Salton do seu portifólio de negócios. Em suma, elas foram defenestradas de eventos importantes do setor. Sobretudo, feiras internacionais e missões comerciais implantadas pela Apex. Por consequência direta, saíram da rota de passeios organizados para que visitantes possam conhecer a produção de vinhos na Serra Gaúcha.
Efeito dominó sobre o turismo Antes restrito aos produtos, o boicote já respinga no turismo. Agências de viagem em Salvador confirmaram que, após a denúncia de trabalho escravo, clientes desistiram de comprar pacotes com destinos turísticos do Rio Grande do Sul, em efeito agravado pela xenofobia escancarada contra os baianos feita pelo vereador Sandro Fantinel, de Caxias do Sul.
Na sexta-feira (3), o proprietário de uma das agências contactadas, que pediu para não ser identificado na reportagem, disse que dois clientes estavam prestes a fechar uma viagem para a cidade gaúcha de Gramado, um dos destinos mais badalados do Sul do país. mas desistiram da compra.Eles foram bem incisivos em dizer que não iriam para um lugar em que as pessoas não os respeitam e ainda escravizam baianos, afirmou um dos empresários das agências de viagem ouvidos, que defendeu o boicote.A agência da operadora CVC situada na Avenida Tancredo Neves disse não ter contabilizado desistências. No entanto, mudou o itinerário do pacote de viagem a vinícolas do Rio Grande do Sul, depois que a Aurora foi fechada. Como diz uma antiga expressão popular, “aqui se faz, aqui se paga”. E caro! Operação da PRF em Bento Golçalves escancarou escândalo das vinícolas na Serra Gaúcha (Foto: Divulgação/PRF) MPT busca mais vítimas Todas as questões financeiras se somam a um rio de problemas jurídicos que não para de desaguar. Isso porque o Ministério Público do Trabalho (MPT) na Bahia convocou todos que alagarem ter sido vítimas de trabalho escravo nas vinícolas para apresentar denúncia. Na última quinta-feira (2), em Salvador, mais 14 pessoas foram até o órgão para informar que tinham passado pela mesma situação, mas conseguiram fugir antes que a força-tarefa do MPT com a Polícia Rodoviária Federal (PRF) resgatasse os trabalhadores que ainda estavam lá.
"O objetivo do órgão é apurar caso a caso se há outras vitimas além dos 207 resgatados em operação realizada semana passada em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul", escreveu o MPT, em nota. Ainda de acordo com o órgão, só serão convocados a prestar esclarecimentos os que trabalharam no local em 2023 e possam provar a passagem por lá. Quem quiser denunciar tem que acessar o site do MPT, mas não precisa ter um advogado.
Ao todo, 200 trabalhadores já foram cadastrados e tiveram os valores de suas verbas rescisórias incluídos na proposta que o MPT tenta negociar com as empresas Aurora, Garibaldi e Salton. A lista, no entanto, deve crescer porque, além do grupo de 14 pessoas que foram até a sede do MPT, o órgão já recebeu pelo menos duas denúncias individuais sobre o caso.
Casos se multiplicam com avanço da pobreza O caso do Rio Grande do Sul, porém, está longe de ser o único. Cinco trabalhadores foram encontrados em situação análoga à escravidão em uma fábrica de carvão no bairro de Boca da Mata, em Salvador, na manhã de quinta-feira (2). O responsável pelo estabelecimento foi preso. De acordo com a Superintendência Regional do Trabalho (STR), os trabalhadores estavam sem registro de contrato, condições totalmente insalubres e jornada exaustiva.
No local, eles inalavam fuligem, sem qualquer fornecimento de equipamentos de proteção individual, calçados ou vestimentas por parte da empresa, que não teve o nome revelado pela SRT. Procurado para comentar o caso, o MPT informou que aguarda relatório para servir de base no inquérito aberto.
Ao comentar os casos que vão se empilhando, Cyntia Possídio, advogada e presidente do Instituto Baiano de Direito do Trabalho, fala em uma 'escravidão moderna', decorrente de um sistema de exploração trabalhista. "A pobreza, o baixo nível de instrução e a falta de oportunidades, em um país com tão alto índice de desemprego, tornam os brasileiros muito vulneráveis", fala ela, que é sócia do escritório Castro Oliveira Advogados.
Cyntia lembra ainda dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que revelam, desde 1995 até o ano de 2022, o resgate de 57.772 vítimas do trabalho escravo no Brasil. Ana Paula Studart, advogada e sócia do 4S Advogados, cita que o Código Penal prevê punições a empregadores como prisão, monitoramento e não acesso a créditos de financiamento. O problema, porém, ainda continua por outras razões.
"As previsões legais existem. A grande questão está na execução das mesmas, principalmente pela morosidade na tramitação de um processo. O trabalho escravo é um atentado contra a dignidade e precisa ser reprimido com processos rápidos", fala a especialista em direito do trabalho. Ana pontua ainda que a responsabilização precisa acontecer nas esferas civil, penal e trabalhista dos infratores. "A partir de condenações que os façam compreender a gravidade das violações cometidas", destaca.
Veja quais são as condições em que há trabalho análogo à escravidão:1) Trabalho exercido sob condição de violência física ou psicológica, o que inclui também aquele em que o trabalhador não tenha se oferecido voluntariamente; 2) Restrição do direito de ir e vir do trabalhador em razão de endividamento; 3) Jornada exaustiva que acarrete danos à saúde, segurança ou convívio social do trabalhador; 4) Violações às normas de proteção, segurança, higiene e saúde do trabalhador em afronta à dignidade humana do trabalhador.