Soro da vida: descoberta da insulina completa 100 anos salvando pessoas com diabetes
Cientistas canadenses descobriram que soro do pâncreas ajudava pacientes, que hoje falam da relação com hormônio: 'Insulina, para mim, é vida'
Um diagnóstico de diabetes era como uma sentença de morte. A partir da descoberta da doença, crianças e adolescentes, principalmente, tinham uma expectativa de vida de apenas oito meses. E não eram oito meses lá muito felizes: sem conseguir processar a glicose contida nos alimentos, eles eram obrigados a fazer uma dieta de inanição – passavam fome, literalmente, até que a falta de energia resultasse em perda dos movimentos, da consciência e, por fim, levasse à morte. Mas, isso tudo foi antes de 27 de julho de 1921. Esta semana, uma descoberta que rendeu a pesquisadores canadenses o Nobel de Medicina de 1923 completou 100 anos: a insulina.
“Eu acho que, para a gente, é uma das maiores descobertas da história, porque as pessoas, depois da insulina, estão vivas. O impacto foi vida! Antes de 1921, quem tinha diabetes tipo 1 morria em oito meses. Podia até morrer antes, mas a expectativa é que não passasse disso”, afirma a médica endocrinologista Denise Franco, diretora da Associação Diabetes Juvenil (ADJ) e membro da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD).
Se a médica vê na insulina um sinônimo de vida, imagina como não se sentem aqueles que usam o medicamento diariamente. Na prática, o hormônio ajuda a controlar a quantidade de glicose no sangue dos pacientes após cada alimentação. Pessoas com diabetes tipo 1 não produzem insulina e outros pacientes, com o tipo 2, acabam perdendo essa capacidade com o tempo. Sem a insulina mandando uma “mensagem” às células do corpo de que o açúcar ingerido precisa ser processado e transformado em fonte de energia, a glicose se acumula no sangue e provoca danos aos órgão, vasos sanguíneos em nervos.“A insulina é minha amiga. Às vezes ela é chata, mas ela nos ajuda a viver. Realmente, para a gente, ela é vida, porque antes de 1921, um diagnóstico de diabetes era uma sentença de morte”, afirma a bióloga pernambucana Ana Rosa Lins de Souza Silva, 36 anos. Ana Rosa descobriu que tinha diabetes tipo 1 aos 30 anos de idade; hoje tem 36 e usa o hormônio cinco vezes ao dia (Foto: Luciana Zacarias/Divulgação) Ela descobriu a diabetes tipo 1 aos 30 e, há seis anos, chega a tomar cinco doses do hormônio por dia. Mas não sem se lembrar do papel dos dois médicos que descobriram o tratamento para uma doença, antes, fatal: Frederick Banting e Charles Best.
Apenas um ano de pesquisa Da descoberta da insulina à aplicação em pacientes, o processo foi um dos mais ágeis da história. E tudo começou com um médico que, na verdade, não entendia nada de pâncreas. “O herói da nossa história é o Frederick Banting. Quando ele tinha 19 anos de idade, em 1910, ele decide ser um pastor evangélico e um ano depois ele desiste e se matricula na Faculdade de Medicina da Universidade de Toronto. Em 1916, com quatro anos de formado, ele é despachado para a guerra como cirurgião ortopédico e permanece até 1918, quando ele é ferido por um estilhaço de bomba e volta para o Canadá”, conta o endocrinologia Freddy Eliaschewitz, diretor do Centro de Pesquisas Clínicas (CPClin), em São Paulo.
De volta ao país de origem, Banting abre uma clínica, mas não consegue muitos clientes. Decide, então, dar aulas de anatomia e fisiologia na universidade. Uma das aulas era sobre o pâncreas – o problema é que, como ortopedista, o jovem professor não tinha lá tantos conhecimentos sobre o funcionamento do órgão.“Num domingo, dia 30 de outubro de 1920, o Banting passa a madrugada estudando a história do pâncreas”, continua Freddy.Banting se depara com um artigo de outros dois pesquisadores que afirmavam que, retirando o pâncreas de um cachorro, o animal ficava diabético. Bom, no pâncreas deveria ter algo que ajudava a tratar a doença. O ortopedista, então, procura o professor de John Macleod e lhe pede o laboratório de Fisiologia para fazer os estudos, o que é negado, a princípio. Mas Macload acaba cedendo o espaço, 19 cachorros para experimentos e um assistente ainda mais jovem do que Banting, que tinha 30 anos na época: o estudante Charles Best, de 22. Charles Best e Frederick Banting, em Toronto, ao lado de um dos cães utilizados na pesquisa, o Toto (Foto: Universidade de Toronto) A dupla descobriu que, isolando a proteína presente nas ilhotas pancreáticas se chegava a uma secreção que conseguia baixar os níveis de glicose no sangue dos cães. Um ano depois, o soro removido das ilhas pancreáticas foi testado pela primeira vez em humanos – e com sucesso. O primeiro paciente, um adolescente de 14 anos chamado Leonard Thompson, internado no Hospital Universitário de Toronto, em coma e com uma expectativa de poucos dias de vida, melhorou após receber 15 ml do soro. Os níveis altíssimos de glicose no sangue diminuíram, Leonard recuperou o peso e viveu mais 13 anos. A notícia se espalhou pelo mundo.
Dos porcos ao laboratório Da produção artesanal para a fabricação em alta escala da insulina foi-se um tempo relativamente curto – pelo menos para a época. “A primeira insulina que foi usada no mercado foi extraída de pâncreas de bois e porcos”, afirma o farmacêutico Magno Teixeira, presidente do Sindicato dos Farmacêuticos da Bahia (Sindifarma). Denise Franco lembra como o processo era limitado.“Tinha que matar um monte de bicho, porco, boi para fazer uns poucos frasquinhos de insulina. Mas, em 1924, já tinham 25 mil frascos por semana para distribuir para as pessoas”, afirma Denise.Um dos responsáveis por isso foi o bioquímico James Collip, que conseguiu isolar um extrato pancreático tão purificado que reduzia em muito os efeitos colaterais. Era o processo se aperfeiçoando. “À medida que a pesquisa avança, a indústria foi purificando os extratos e passando a produtos mais adequados e semelhantes à insulina humana. Em princípio, apenas a apresentação injetável, mais recentemente a apresentação inalatória. Dentro deste leque, as apresentações também têm sido variadas como a ação rápida, lenta. Temos também grandes avanços na apresentação como as canetas de fácil aplicação é autoadministração”, completa Magno.
Quem foi diagnosticado há mais tempo até passou pela evolução dessas formas de apresentação. É o caso de Maira Aparecida, 30, que recebeu o diagnóstico de diabetes tipo 1 aos dois anos e meio de vida. Antes, a mãe dela, a professora Conceição Aparecida, 63, aplicava as injeções. Mas, antes do sete anos de idade, a própria Maira começou a fazer a autoaplicação com as canetas de insulina, mais modernas e que reduzem um pouco o impacto até psicológico das seringas.“Na verdade, quando eu comecei a ter consciência que eu necessitava da insulina pra viver eu comecei a rejeitar. Mas, aos 14 anos, eu engravidei e aí eu vi a importância da insulina pra minha vida e de meu filho. Eu mais me cuidei com medo de ele nascer com diabetes e fiz assim por amor. Não consigo viver sem minha insulina porque sei que necessito dela pra sobreviver e manter minha saúde estável!”, afirma Maira.Ela lembra que chegou a sofrer preconceito numa escola particular por onde passou, ainda criança. “Os colegas me chamavam de ‘sem açúcar’ porque eu tomava minha insulina abertamente. Nós que tomamos insulina pra viver podemos fazer tudo, dentro do limite, lógico. Mas somos pessoas normais. Basta tomar a insulina e cuidar da alimentação”, ressalta.
SUS O Brasil, hoje, tem cerca de 16 milhões de pessoas diagnosticadas com diabetes dos tipos 1 e 2. E faz apenas 15 anos que a insulina é distribuída pelo Sistema Único de Saúde (SUS) aos pacientes. “Foi uma vitória conseguir que em 2006, tivesse uma lei federal que padronizasse essa distribuição dos medicamos para pessoas com diabetes. Foi um avanço no tratamento”, afirma a jornalista Letícia Martins, autora do livro 100 Anos de Insulina: A Descoberta Que Salva A Vida De Milhões de Pessoas (Momento Saúde Editora, R$ 29,90 [impresso] e R$ 19,90 [digital], 152 p.), que será lançado no próximo dia 14 de agosto, com apoio da Momento Diabetes e da Novo Nordisk. As inscrições para o lançamento são gratuitas no site www.100anosdeinsulina.com.br. A renda com a venda do livro será direcionada a uma organização sem fins lucrativas indicada pelos inscritos no site.
No livro-reportagem, Letícia conversa com pacientes, familiares, especialistas e dedica um espaço, também, ao acesso ao medicamento. “A gente aborda de uma forma muito positiva. Existe uma lei que permite que elas tenham acesso por meio do SUS à insulina e aos acessórios, como glicosímetro, fitas para medir o nível de glicose, e muita gente desconhece”, afirma. Canetas de insulina ja são distribuída, hoje, pelo SUS (Foto: Divulgação) Mas, nem sempre foi assim.“O acesso, inicialmente, era difícil, porque eu tinha que comprar tudo. As canetas eram muito caras, tinha que comprar as agulhinhas. Era muito difícil porque tudo para diabetes era muito caro”, lembra dona Conceição, mãe de Maira Aparecida.Hoje, todos os pacientes têm acesso, pelo SUS, às insulina chamada de NPH (análoga) e à insulina regular, ou basal, que cobrem as refeições. O SUS também distribui as canetas de insulina para pacientes com diabetes tipos 1 e 2 com idade até 19 anos ou acima de 50.
Na Bahia, a distribuição é feita pelo Centro de Referência Estadual para Assistência ao Diabetes e Endocrinologia (Cedeba). De janeiro a julho deste ano, o Cedeba distribuiu, em média, 6.227 unidades por mês de canetas ou frascos de insulina convencional ou análogos, além 10.900 agulhas para aplicação do hormônio.
Pacientes, contudo, têm tido dificuldade para conseguir a insulina de ação ultra rápida. “Estava em falta no Cedeba e quando chegou, acabou na mesma semana”, explica Ana Rosa, paciente que não conseguiu acessar o medicamento. Na falta, precisou comprar uma caneta em farmácia, com custo de R$ 40 e validade de um mês.
O Cedeba confirma a dificuldade. É que essas insulinas são enviadas pelo Ministério da Saúde e houve um atraso após troca de empresa em licitação. As doses que deveriam ter chegado no início de julho só chegaram no dia 14 e, por conta da demanda reprimida, logo acabaram. A expectativa é receber as novas canetas na próxima semana. O ministério foi procurado, mas não respondeu até o fechamento desta reportagem.