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Recuperados, porém mais lentos: entenda as sequelas neurológicas da covid


 

Queixas cognitivas podem afetar até pacientes assintomáticos por meses

  • Thais Borges

Publicado em 27/02/2022 às 07:00:00
Atualizado em 20/05/2023 às 02:07:20
. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

Nos últimos meses, o bloquinho de notas virou o melhor amigo do pedagogo Wallace Teixeira, 36. Se vai pagar algo, se precisa fazer uma compra ou até o nome das pessoas, tudo precisa ser anotado. E qualquer compromisso precisa estar sinalizado na agenda do Google. Embora esse seja um hábito de muita gente, Wallace nunca tinha precisado. Até menos de um ano atrás, conseguia levar a rotina apenas com ajuda da própria memória. 

O que mudou? A covid-19. Em abril de 2021, Wallace foi diagnosticado com a doença e, desde então, nunca mais foi o mesmo. Os sintomas leves na fase aguda da doença - já tinha tomado a vacina - foram apenas de uma gripe. Dor no corpo, febre."Quando passou (o período agudo), foi curioso, porque veio a perda de memória. Era meio desesperador: eu saía do quarto para pegar água na geladeira e, no caminho, esquecia o que ia fazer. Isso durou meses", conta. O pedagogo percebeu os sinais em maio e só sentiu que tinha melhorado, de fato, em dezembro. Ainda assim, volta e meia esquece alguma coisa. "Eu era uma pessoa de detalhes, sabia o que ia acontecer a semana toda, com tudo organizado na mente. Hoje, não me garanto mais. Me preocupo porque acho que a gente não vai voltar 100% para nada", analisa. 

A preocupação de Wallace não é injustificada. Na verdade, ela tem sido compartilhada por cientistas ao redor do mundo, que têm se dedicado a entender um problema ainda sem muitas respostas: as sequelas cognitivas e neurológicas da covid-19. As pesquisas na área indicam percentuais altos - há estudos internacionais que estimam que entre 30% e 40% dos pacientes têm alguma queixa cognitiva em algum momento da doença. Mas é nos pacientes com a chamada covid longa - ou síndrome pós-covid - que o problema pode chegar a 80%. 

Muitos desses casos são de pacientes que apenas tiveram sintomas leves na fase aguda, assim como Wallace. Ainda assim, a lembrança de que um dia foram infectados pelo coronavírus nem sempre dá trégua. Segundo a neurologista Roberta Kauark, preceptora da residência médica de neurologia do Hospital Universitário Professor Roberto Santos (Hupes) da Universidade Federal da Bahia (Ufba), como a covid-19 se tornou uma infecção comum, a queixa cognitiva também é frequente nos pacientes leves. 

“É mais provável que ela aconteça em quadros mais graves e em pacientes mais suscetíveis, como os mais idosos, os que têm alguma reserva cognitiva reduzida ou até algum quadro de demência. Mas como a covid é uma doença muito prevalente, a gente encontra até nos quadros leves”, analisa ela, que é responsável pelo ambulatório de transtornos do movimento do Hupes. 

As consequências de uma grande população com algum quadro cognitivo diferente após a covid ainda não podem ser medidas, mas já deixam os pesquisadores em alerta. Na Europa, onde a ômicron fez estrago antes, o impacto já começa a ser sentido. 

Progressivo Entre os amigos, o pedagogo Wallace via que alguns que tiveram covid-19 chegaram relatar os mesmos sintomas, mas de forma muito mais rápida. Em pouco tempo, parecia que estavam restabelecidos. Com ele, ainda que sentisse uma evolução gradual, a velocidade foi outra. 

Apesar de não ter procurando um neurologista, foi orientado por sua médica de rotina, que explicou que alguns pacientes poderiam precisar de mais tempo que outros. Ele não chegou a precisar de nenhum medicamento.  Wallace só sentiu melhora nas falhas de memória em dezembro (Foto: Marina Silva/CORREIO) "Fui fazendo joguinhos de memória e, como meu irmão trabalha com reabilitação, foi me dando as dicas e fui fazendo. Intensifiquei a leitura para melhorar a concentração, porque fiquei muito disperso. E comecei a praticar atividade física com mais intensidade. Faço musculação pelo menos cinco vezes por semana e voltei a andar de bike. Hoje, sou um preguiçoso disciplinado", brinca. 

Até quem teve uma fase aguda assintomática pode eventualmente desenvolver alguma dessas manifestações, assim como pessoas que nunca tiveram algum problema de saúde, segundo o neurologista Rubson Rocha, médico do Hospital Português. "Pode acontecer com pacientes jovens que nunca tiveram nenhuma doença neurológica, como demência. Mas, nos pacientes idosos e que já tinham algum quadro prévio, pode ficar mais exacerbado".Consulta  Em geral, a maioria dos pacientes não procura um neurologista. Muitos sequer se dão conta de que o que estão sentindo pode ter a ver com a infecção viral prévia. Por isso, é importante ficar atento para identificar qual é o momento de buscar uma intervenção especializada. 

Se começa a atrapalhar o dia de alguém, é um indício que não deve ser desprezado. "Às vezes, o paciente diz que não consegue trabalhar, que faltam palavras ou que não consegue dar seguimento. Manifestações leves tendem a melhorar com o tempo, mas quando interfere no trabalho ou no dia a dia, é preciso buscar um especialista", reforça Rocha. 

Foi assim que a sanitarista Camila Reis, 32, que teve a covid-19 em março do ano passado,  decidiu se consultar com especialistas, em seu processo de recuperação. Também com sintomas leves depois de ter sido infectada, ela nem precisou de tratamento médico na fase aguda além de remédios para dor de cabeça e febre. Além disso, perdeu olfato e paladar, tinha coriza, cansaço e garganta inflamada. 

Camila não sabe, ao certo, quando se deu conta de que tinha um quadro cognitivo e neurológico diferente de antes da doença. Camila começou a perceber que o esquecimento estava atrapalhando até suas atividades no doutorado (Foto: Marina Silva/CORREIO) "Eu lembro muito das coisas, sempre sou muito atenta e organizada. Como faço doutorado, estava no auge do semestre e fui percebendo que estava esquecendo as coisas. Queria falar algo e não conseguia lembrar. Tinha um pouco de confusão mental. Todas eram coisas que não eram comuns a mim", lembra, citando, ainda, alguns espasmos leves. Ela já tinha hábito de fazer listas e agendas, mas nem isso evitava todos os problemas. Esquecia situações corriqueiras - de datas de aniversário até uma prova na universidade. "Fiquei mais lenta, numa dificuldade de pensar mais rápido", conta.  

Como pesquisadora da área de Saúde, Camila já tinha lido algumas publicações a respeito da covid longa e imaginou que aqueles sintomas poderiam estar relacionados à síndrome. Como tinha uma consulta ginecológica marcada para a época, fez os exames de laboratório e logo percebeu que todas as suas taxas hormonais estavam alteradas. 

"Procurei serviços de atendimento pós-covid, mas só consegui a consulta para junho. Quando fui, algumas coisas já tinham melhorado, como os espasmos. Mas ainda tinha o esquecimento, a dificuldade de concentração", explica. 

A neurologista que a atendeu apontou uma mudança significativa nos exames, que provavelmente estaria ligada à covid. Camila mantinha uma rotina saudável, com atividades físicas regulares e acompanhamento nutricional."Em julho, ela me disse que tinha tido uma melhora na memória e a avaliação era de que o que tinha restado tinha mais relação com aquele momento da pandemia em si do que às sequelas: moro sozinha, trabalho em casa e vivia um isolamento físico mesmo". Com a melhora ao longo do segundo semestre do ano passado, restou a falta de olfato e o paladar. Assim, a médica que a atendeu, que fazia mestrado na Ufba, indicou a paciente para participar de uma pesquisa de otorrinolaringologia na universidade.  Com o tempo, os sintomas neurológicos de Camila foram sumindo. O que mais demorou foi a perda de olfato e paladar (Foto: Marina Silva/CORREIO) "Fiz um tratamento com otorrino na Ufba e identificaram que era uma perda de olfato e paladar moderada, não era leve. Fui fazendo o tratamento de estímulo de olfato e paladar, para a lembrança afetiva. Fazia exercícios sistematicamente, duas, três vezes por dia, em cada essência", conta Camila, que só no final de 2021 voltou a ter os sentidos como antes. A perda de olfato e paladar é um sintoma que pode ser tanto acompanhado por neurologistas quanto por otorrinolaringologistas, já que envolve diferentes órgãos do corpo, inclusive o cérebro. 

Hipóteses Relatos como os de Wallace e Camila servem para mostrar que não dá para negar a existência de sintomas cognitivos e neurológicos da covid-19 - ou atrelados a ela. No começo da pandemia, era como se muita gente duvidasse da relação com a doença, como destaca a neurologista Clarisa Yasuda, do Departamento de Neurologista da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)."Não é uma especulação e é algo muito variado de pessoa para pessoa", diz a neurocientista, que conduz uma pesquisa sobre essas sequelas que já avaliou mais de 11 mil pessoas - sendo 600 mil de forma presencial (veja abaixo). "Algumas pessoas sentem mais dificuldade de memória, outras de atenção, outras de linguagem. Outras sentem um pouco de cada". Apesar de ainda não se saber o que está por trás desses quadros, a neurologista Roberta Kauark, médica do Hupes, diz que existem alguns possíveis 'vilões'. "Existe a teoria do acometimento vascular da covid, com a formação de microtrombos, coágulos que poderiam se soltar e impactar a musculatura do cérebro", diz. 

Outra possibilidade é a de reação inflamatória, que seria provocada pela covid no organismo como um todo. Esse estado inflamatório pode se perpetuar durante um período de tempo, levando à chamada neurotoxicidade. "Isso explicaria porque alguns pacientes  apresentam essas queixas tanto tempo depois do diagnóstico". 

Há, ainda, a teoria de que as sequelas seriam derivadas de alterações autonômicas (no Sistema Nervoso Autônomo), como a desregulação na competência de manter a pressão arterial sempre estabilizada. "Poderia ser uma explicação para o raciocínio mais lento", completa. 

Em pacientes que já tinham algum declínio cognitivo, mas ainda nos processos iniciais, estudos têm mostrado que a tendência pós-covid é de piora, de acordo com o neurologista Eduardo Uchôa, diretor da regional Centro-Oeste da Academia Brasileira de Neurologia (ABN) e médico da rede Sarah. 

"O que a gente tem de mais consolidado é que é um fator de risco para progressão da doença. Mas, em termos de causalidade, temos um dado pouco robusto sobre isso, seria complicado afirmar", pondera. 

Tratamento O problema é que, até o momento, não existe tratamento definido. Em alguns pacientes, a queixa cognitiva pode estar associada a outras questões do próprio contexto da covid, como um transtorno psiquiátrico como ansiedade e depressão. "Em relação à reabilitação cognitiva, ainda não temos nenhum trabalho, mas a recomendação é que tente estimular atividades de raciocínio e cognição, seja através de ouvir música, voltar atividades profissionais de maneira paulatina e à rotina de forma progressiva", explica a neurologista Roberta Kauark, do Hupes. As anotações, por exemplo, não têm função de reabilitação, mas podem ajudar a organização dos pacientes. Além disso, deve-se observar se a pessoa usa algum medicamento frequente que pode influenciar a cognição negativamente. Isso pode acontecer com alguns remédios para dormir ou até para controle de pressão, que diminuem o fluxo cerebral. 

Além de uma consulta com um médico que possa desenvolver um plano individual para cada paciente, existem hábitos que ajudam o cérebro de forma geral, como a prática de atividades físicas. "A gente pode fazer atividades de respiração, meditação, jogos de memória ou palavras cruzadas. São atividades que podem ajudar na estimulação", acrescenta o neurologista Eduardo Uchôa (ABN). 

‘Só recuperei entre 20% e 30% do que perdi’, diz pesquisadora que estuda impactos neurológicos da covid

"Vai passar de todo mundo? Não sei. Todo mundo vai se recuperar 100%? Alguém vai ficar com problema para sempre? Pode ser, não sei. Estamos numa situação de incerteza". Com essas palavras, a neurologista Clarissa Yasuda, professora da Unicamp, explica qual é o cenário hoje, quanto às perguntas sem resposta das sequelas neurológicas da covid-19. 

Responsável por uma pesquisa sobre esses sintomas que já avaliou mais de 11 mil pessoas, ela se viu ligada ao próprio trabalho de outra forma: Clarissa também enfrenta as mesmas sequelas, há um ano e meio. "Tive covid-19 em agosto de 2020 e melhorei muito pouco, apesar de todo o esforço. De tudo que perdi, acredito que recuperei entre 20%  e 30%. No meu dia a dia, isso é muito frustrante", conta. 

Nesse período, vieram as dificuldades de pressão, uma alta sensibilidade ao frio e uma lentidão em geral. As enxaquecas que sempre teve pioraram, com crises mais comuns, enquanto o rendimento caiu pela metade. Veio a sonolência, a fadiga, o esquecimento. De repente, coisas que sempre foram automáticas deixaram de ser. 

Na pesquisa, ela e seu grupo avaliaram a capacidade de trabalho de um grupo de 600 profissionais. Apesar de os estudos ainda estarem em andamento, já foi possível identificar que a capacidade de trabalho foi reduzida. Por isso, é tudo tão preocupante. "O impacto na sociedade e na vida das pessoas é muito grande. Se isso tomar a dimensão proporcional que a ômicron está causando, vai ser uma coisa complexa para a sociedade como um todo", analisa.Dos 11 mil inscritos para o estudo que participaram inicialmente, 90% tinham sintomas leves. Os quadros com os quais ela já se deparou são diversos. "Muita gente não usa sua capacidade intelectual total no dia a dia. Se você nunca joga bola, mas vai ser testada para jogar bola mas não consegue chutar para direita ou para a esquerda, você vai identificar algo que não sabia", afirma. 

Agora, ela também desenvolve um projeto de reabilitação cognitiva, com técnicas já utilizadas na área de saúde. Em breve, vão começar a recrutar os voluntários, mas será apenas de forma presencial. "Vai dar certo? Não sei. Acho que existe uma grande chance de recuperar tudo, porque são técnicas já consagradas e clássicas da neurologia". 

Pessoas interessadas em participar dos estudos podem entrar em contato com a equipe da professora através dos números de Whatsapp (19) 99768-7517, (21) 99497-1199 e (19) 99887-2645, além do email neuro.covid@hc.unicamp.br. Para se inscrever, basta ter tido um diagnóstico de covid-19, ainda que os sintomas tenham sido leves.