Precisamos falar sobre Bruno: o que está por trás do sucesso de Encanto, da Disney
We Don't Talk About Bruno (Não Falamos do Bruno, na versão brasileira) atingiu o topo da parada musical esta semana
-
Thais Borges
thais.borges@redeabahia.com.br
Não está sendo fácil para os Brunos do mundo. Desde o final do ano passado, quando a Disney lançou o filme Encanto, sua mais nova animação, os ‘Brunos’ por aí podem culpar um xará famoso por ter que aguentar uma cantoria com seu nome. Na casa da administradora Sandra Regina de Jesus, 28 anos, sobrou até para o prefeito de Salvador, Bruno Reis.
Isso porque a filha dela, a pequena Isabela, 4, não consegue ouvir falar em ‘Bruno’ sem cantar. Se alguém comentar qualquer coisa sobre o prefeito - que viu na TV ou qualquer anúncio da cidade - logo vem Isabela:“Não falamos do Bruno, não, não, não/ Não falamos do Bruno”. “Ela é muito musical e essa é a música do filme que ela mais escuta. Ela não tem nem conhecimento de quem seja o prefeito, mas vai logo cantando a música”, explica Sandra, sobre a desenvoltura da pequena. Se você não sabe do que se trata, pode ter morado em uma caverna nas últimas semanas - ou, talvez, não tenha acessado tanto as redes sociais, especialmente o TikTok, onde “Bruno” é um fenômeno. Mas não só lá: na última segunda-feira (31), a canção We Don’t Talk About Bruno (Não Falamos do Bruno, na versão brasileira), parte da trilha sonora do filme, tinha apenas o primeiro lugar da parada Hot 100 da Billboard.
Desde 1993, a Disney não emplacava uma música como a mais ouvida do mundo - a última foi A Whole New World (Um Mundo Ideal), tema principal de Aladdin. Isso significa dizer que “Bruno” superou outro grande fenômeno das animações dos últimos anos: Let It Go (Livre Estou), a canção de Frozen (2013), só alcançou o 5º lugar nas paradas musicais.
“Acho que essa identificação é porque talvez tenha aquela coisa do que não podemos falar. Se a gente proíbe algo, essa pessoa vai querer falar mais ainda sobre isso. E o toque da música é muito interessante. Como cada personagem canta sua parte, talvez as crianças e as pessoas se identifiquem mais porque não é só um cantando”, arrisca Sandra. Isabela, 4, assiste Encanto todos os dias desde que viu pela primeira vez (Foto: Acervo pessoal) Desde que assistiram ao filme pela primeira vez, no mês passado, Isabela vê o longa todos os dias. Assim que acorda, escova os dentes, toma café da manhã e já sabe colocar no computador ou no celular da mãe. “Já assisti um bocadão de vezes, coloco sozinha”, diz, com naturalidade. “Gosto quando Camilo canta a parte do apagão, mas minha preferida é Mirabel, porque ela tem óculos e eu também vou usar”, completa, citando dois membros da família Madrigal. A “parte do apagão” é um dos trechos da música de Bruno, quando o personagem Camilo diz: “ser abismal, vive no porão/ se chamar o tal, verás o apagão”.
Família Encanto conta a história da família Madrigal, que vive na Colômbia, em uma casa mágica. Todos os filhos que nascem na família recebem um dom, que vai da capacidade de curar até falar com animais ou ter uma superforça. Só quem não tem um poder é a protagonista Mirabel, que é justamente quem descobre que a magia na comunidade de Encanto está em perigo. O “Bruno” da canção é o tio dela, alguém capaz de prever o futuro e que havia visto que aquilo aconteceria, anos antes. Mirabel é a protagonista do filme e precisa entender a visão do tio Bruno (Imagem: Reprodução) Para a crítica, contudo, um dos pontos fortes de Encanto é a trilha sonora. As canções são assinadas pelo ator, compositor, cantor e dramaturgo Lin-Manuel Miranda, vencedor de prêmios Grammy (música), Emmy (televisão) e Tony (teatro). Nascido nos Estados Unidos, mas com origem porto-riquenha, Miranda é conhecido por escrever e protagonizar o musical Hamilton, na Broadway.
“O desafio é a complexidade de trazer 12 personagens importantes para a tela. Esse foi o desafio que nós colocamos para nós mesmos desde o começo. Nós dizemos ‘queremos falar sobre família e apresentar uma família intergeracional debaixo de um mesmo teto”, disse o compositor, em novembro, à revista Collider.
Mas, como lembra o pesquisador Celbi Pegoraro, doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), a Disney tem tradição em popularizar suas trilhas sonoras, tendo dominado premiações do setor na década de 1990. Desde essa época, inclusive, as animações da Disney fazem referência ao estilo da Broadway. Ele cita autores que defendem que a companhia foi a responsável por atrair o público jovem para o gênero musical, que estava em decadência. “Compositores como Alan Menken, Howard Ashman, Tim Rice, Elton John e Stephen Schwartz tiveram passagens de sucesso na Broadway e produziram grandes trilhas e canções na Disney. Lin-Manuel Miranda faz parte dessa escola”, explica. Mas o que explicaria o sucesso específico de We Don’t Talk About Bruno? A música é considerada por Pegoraro a canção mais cênica do filme. “Ela foi coreografada numa aproximação do que seria possível, se apresentada num palco. Miranda também gosta de alternar e misturar vozes dos personagens, uma marca em seus projetos musicais. Para mim, a coreografia e atuação dos personagens nesta canção são as que mais se aproximam do estilo clássico dos anos 1990, como vemos em A Bela e a Fera e Aladdin”, completa.
Ritmo Para a pianista Teca Gondim, professora da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (Ufba), o ritmo latino é uma das coisas que se destaca na canção, inclusive em comparação a outras produções da Disney. "É um ritmo cativante, que a gente se identifica. Considerando que os Estados Unidos estão se latinizando, é um outro aspecto importante", analisa.
Segundo ela, há um ritmo harmônico lento na música, que se repete e se torna "hipnotizante". São dois acordes juntos, além de uma harmonia devagar que muda de um acorde para o outro. Isso é repetido muitas vezes no refrão, de modo que a canção tenha aquele efeito de 'grudar' nos ouvidos. "Quando você compara com Let It Go, de Frozen, que tem uma melodia muito mais variada, essa fica muito paradinha naquilo que vai te hipnotizando", explica, citando também a referência dos musicais. "Trabalhei com musicais nos EUA por três anos é muito comum que os personagens tenham suas músicas. Nessa, as vozes aparecem com as histórias pessoais de cada um e o compositor consegue combiná-las no final da música fazendo essa superposição das falas", completa. Nos últimos anos, o ritmo latino tem despertado identificação no resto do mundo - inclusive com hits recentes, como Havana e Señorita, interpretadas por Camila Cabello, como lembra o cantor e compositor Pedro Gomes. De acordo com ele, há também elementos do trap, outro gênero atual.
No refrão, a última sílaba de 'Bru-no' ainda é usada na versão em inglês para dar continuidade ao 'no, no, no', o que facilita a memorização. Outro aspecto destacado por Gomes é a dança, que no próprio filme tem uma coreografia para cada trecho. "A junção dos três elementos gera o quarto e último: a trend (tendência)", diz, citando também a possibilidade de lip sync - a sincronização da música com a imagem de alguém cantando. "Onde estão os maiores criadores de conteúdo desse estilo? No TikTok, uma das plataformas que a Billboard usou para medir o sucesso da canção e que, de fato, trouxe grande parte dos números", acrescenta. Na rede social conhecida pelos vídeos curtos, a tag Encanto tem mais de 16 bilhões de visualizações. Só um dos trechos de We Don't Talk About Bruno disponibilizados pela plataforma para criadores de conteúdo usarem como trilha de suas postagens foi utilizada em mais de 524 mil vídeos.
No entanto, outras canções de Encanto também estão nas paradas. Surface Pressure (a música de Luísa, chamada na versão brasileira de 'Estou Nervosa') está em 9º lugar na Billboard Hot 100, enquanto The Family Madrigal ocupa a 20ª colocação.
Encanto ainda está em cartaz nos cinemas (em Salvador, no UCI Orient Shopping da Bahia) e também pode ser assistido na plataforma de streaming Disney+, exclusiva para assinantes.