Pesquisadora baiana descobre novas espécies de algas e homenageia mulheres negras
Algas vermelhas foram batizadas com nomes de Angela Davis, Djamila Ribeiro e Conceição Evaristo
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Thais Borges
thais.borges@redeabahia.com.br
O objetivo inicial era entender as relações das algas do gênero Hypnea - conhecidas como algas vermelhas - tinham entre si. Em seu trabalho no pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), a pesquisadora baiana Priscila Barreto queria observar qual espécie era mais próxima da outra, as inovações e as linhas sucessórias de cada grupo. Só que, ao fazer o sequenciamento genético, ela descobriu muito mais do que isso: tratava-se de três novas espécies, cuja ocorrência nunca havia sido descrita antes.
Ou melhor: as algas haviam sido identificadas anteriormente como outras espécies do gênero. “Não é que os outros pesquisadores erraram. É que a gente conseguiu novos dados”, explica. Os resultados foram publicados em março, em um artigo liderado por ela e assinado também por outros sete pesquisadores. Uma das grandes novidades é que as novas espécies ganharam nomes especiais: foram batizadas em homenagem a três intelectuais negras feministas - as brasileiras Conceição Evaristo e Djamila Ribeiro, além da americana Angela Davis.
A escolha foi justamente pelo papel que as três tiveram na trajetória da própria Priscila - especialmente em seu reconhecimento e construção enquanto mulher negra. Assim, a Hypnea davisiana marca a homenagem a Angela e diz respeito a uma alga coletada no Taiti, em 1922. "É um material bem antigo, que a gente não encontrou mais dele recentemente. Não sabemos o que de fato teria acontecido com essa nova espécie: se ela está restrita àquela região ou se já foi extinta", explica a pesquisadora. A Hypnea davisiana foi encontrada no Taiti e homenageia Angela Davis (Fotos: Acervo pessoal e Divulgação) Já as outras duas - Hypnea djamilae e Hypnea evaristoae - são materiais mais recentes. Enquanto a primeira, em homenagem a Djamila, foi coletada na Coreia e no Japão, a segunda, batizada com o nome de Conceição, foi encontrada na Índia. "A gente precisava batizar essas novas espécies até para entender a diversidade desse grupo, porque elas são algas muito importantes", explica Priscila, que hoje é professora da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Não é exagero dizer que as algas vermelhas têm muita importância. Na verdade, a maioria das pessoas não faz ideia de como elas estão presentes em sua rotina."Nós importamos um espessante chamado carragenana, que é um polissacarídeo que usamos desde que a gente acorda até quando a gente se alimenta. Ele pode estar presente no creme dental, no iogurte, no creme de leite. Todos esses produtos têm algum tipo de espessante e esse material é oriundo dessas algas". De acordo com a pesquisadora, o Brasil não produz grandes quantidades desse material, ainda que ele esteja dentro da célula das algas, nas paredes celulares. Quando as algas são moídas, é possível chegar a esse polissacarídeo, que tem propriedades farmacológicas, fungicidas e anti-inflamatórias. A Hypnea dijamilae, cujo nome foi inspirado em Djamila Ribeiro, foi encontrada no Japão (Fotos: Acervo pessoal e divulgação) Costa Como se tratam de espécies novas, ainda não se sabe se elas ocorrem no Brasil - e, mais especificamente, na Bahia. No doutorado, Priscila estudou todo o litoral do país, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e identificou várias algas do gênero Hypnea por aqui. Ela e um grupo de pesquisadores, inclusive, já tinha batizado a Hypnea brasiliensis, que tem registros na maioria dos estados do Nordeste.
"Todas as algas do gênero produzem esse polissacarídeo. Por um tempo, a gente coletou aqui no Brasil, mas foi tão coletado pela indústria que estoques naturais se esgotaram. Toda essa parte de cultivo e exploração precisa ter muito cuidado", reforça Priscila.
Os materiais das três algas faziam parte do Herbário de Nova York, nos Estados Unidos. A pesquisadora Goia Lyra, professora visitante da pós-graduação em Biodiversidade e Evolução da Universidade Federal da Bahia (Ufba), fazia seu pós-doc na Universidade de Harvard quando fez a coleta que daria início ao estudo.
"Existe uma coisa muito importante nos herbários que é o tipo. Quando você encontra uma espécie nova de alga, precisa pegar um exemplar e vai secar, colar num papel sequinho todas as informações. Aquele exemplar é um documento e a gente chama de tipo. Lá, tem muitos tipos", diz Goia, que é co-autora do artigo.
Para a pesquisa de algas vermelhas, ela e o grupo coletaram o DNA de algas que chegam a 200 anos de idade. No processo, perceberam que algumas eram espécies novas."Foi um processo de descoberta de biodiversidade a partir de documentos históricos. O herbário nada mais é do que um museu. Um museu está aí para a gente aprender sobre coisas diferentes". O grupo delas tem foco nas algas vermelhas em geral. Nesta pesquisa, foi a vez do gênero Hypnea, mas o universo dessas algas é ainda maior. "A gente tem um universo de banco de dados e muita descoberta vem por aí. Com certeza, vai ter muitas outras espécies novas", adianta. Goia ressalta a importância ecológica delas: até mesmo os chamados "recifes de corais" poderiam ser facilmente chamados de recifes 'algais', uma vez que a maior parte deles é constituída de algas.
Além disso, ela ressalta a simbologia da descoberta em uma ciência ainda pouco representativa. "A imagem que as crianças têm do cientista muitas vezes é de um homem branco com cara de maluco trabalhando sozinho em um laboratório. Ciência não é assim. É importante que meninas negras possam se ver na posição de cientistas", acrescenta. Já a Hypnea evaristoae, localizada na Índia, homenageia Conceição Evaristo (Fotos: Acervo pessoal e Divulgação) Reconhecimento O pós-doutorado de Priscila Barreto foi entre 2017 e 2018, mas os resultados só foram publicados agora. Primeiro, logo que ela terminou a pesquisa, ainda não tinha conseguido gerar o genoma com boa qualidade o suficiente para fazer o sequenciamento. Depois, precisou se afastar por um período para o tratamento de um câncer na tireoide e, por fim, passou uma temporada como professora substituta na Universidade do Estado da Bahia (Uneb). O artigo foi submetido para publicação em agosto do ano passado.
Baiana de Salvador, ela fez a licenciatura na Ufba e seguiu para o mestrado e o doutorado em Botânica na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). O trabalho com pesquisa só veio no final da graduação, porque Priscila já tinha um filho quando entrou na faculdade e precisava trabalhar. Na pós-graduação, ainda morava em Cajazeiras e só ia para Feira de Santana nos dias que tinha aula. Nascida em Salvador, Priscila fez a graduação na Ufba, o mestrado e o doutorado na Uefs e o pós-doc na USP (Foto: Acervo pessoal) "Não fiz mestrado porque eu amava biologia. Eu fui a primeira pessoa da família a estar na universidade. O que me convenceu foi a bolsa; o amor veio depois. Essa é a realidade da maioria dos alunos negros, que precisa trabalhar e acaba se perdendo no caminho. Eu quase fui perdida no caminho", lembra ela, que foi incentivada pelo seu orientador. A relação com as algas se tornou algo tão forte que Priscila tem uma tatuagem do gênero Hypnea no braço. Hoje, Priscila ainda mantém o perfil @algasporelas no Instagram, para divulgação científica. Na página, busca falar sobre a importância das algas em linguagem simples. "Isso pode até sensibilizar para que a pessoa, quando for à praia, veja com mais cuidado e até tire uma foto. Talvez até mande aquela foto para um pesquisador, porque aquela pode ser uma espécie nova".
Dentre as três homenageadas da vez, Priscila já recebeu o retorno de Djamila Ribeiro. Emocionada, a filósofa fez uma postagem em suas redes sociais. "Muito obrigada pelo reconhecimento tão especial! Nunca imaginei viver algo assim, fiquei tocada", escreveu, em seu perfil no Instagram.
A repercussão também tem sido uma felicidade à parte para Priscila e para o grupo, formado majoritariamente por mulheres. "É um legado que a gente deixa vivo. Essa era a ideia: deixar o legado dessas mulheres para outros pesquisadores, até para não-negros, seja daqui ou de fora, para que fossem procurar o que elas fazem e entender por que uma pesquisadora homenageou uma mulher que não era de sua área".