Entenda por que a vacina de covid para crianças é alvo de tanta fake news
Nos Estados Unidos, mais de oito milhões de crianças foram imunizadas; eventos adversos são 'raríssimos'
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Thais Borges
thais.borges@redeabahia.com.br
"Essa vacina vai mudar o DNA do seu filho". "Criança não precisa de vacina, quase não pega covid-19". "O efeito colateral não vem agora, vem a longo prazo". E por aí vai.
Essas são apenas algumas das mentiras espalhadas por aí - via Whatsapp, Telegram, Instagram, TikTok e dezenas de outras redes sociais - sobre as vacinas contra a covid-19 para crianças. Porém, com o Brasil prestes a iniciar a campanha de imunização dos pequenos de 5 a 11 anos, as fake news a respeito deste público têm alcançado níveis que preocupam especialistas.
Por isso, há um movimento forte para desmenti-las e explicar como funcionam para a maior parte da população. Até o momento, somente a vacina pediátrica da Pfizer está autorizada para este público no país e é ela que deve ser usada para imunizar as crianças a partir da segunda quinzena deste mês, na Bahia. “A vacina na faixa etária de 5 a 11 anos permitirá o retorno à escola com mais tranquilidade para esse público e também uma redução da circulação do vírus”, diz o pediatra Eduardo Jorge, doutor em Saúde Materno-Infantil e membro do Departamento Científico da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). A comunidade científica de todo o mundo está em alerta com a variante Ômicron, considerada mais transmissiva e que já responde pela maior parte das infecções na Europa e nos Estados Unidos. Com as crianças, a cepa também requer atenção. “Como ela atinge mais as pessoas não vacinadas e as crianças não foram imunizadas, há um certo desvio de faixa etária com o aumento dos casos em crianças. São justamente elas que não foram vacinadas”, acrescenta.
Esta semana, o Ministério da Saúde divulgou o resultado da consulta pública feita entre os dias 23 de dezembro e 2 de janeiro, a respeito da vacinação de crianças. Entre os mais de 99 mil participantes, a maioria se declarou contrária à exigência de prescrição médica para a imunização deste público. O órgão também informou que as doses devem começar a chegar na segunda quinzena do mês aos estados.
Casos raros Algumas das principais fake news difundidas por integrantes de movimentos antivacina alegam que crianças que tomassem a vacina contra a covid-19 teriam efeitos colaterais graves. No entanto, todos os estudos têm provado o contrário. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) dos Estados Unidos informou, no fim de dezembro, que os efeitos adversos graves são ‘extremamente raros’. Só nos EUA, mais de oito milhões de crianças já receberam a vacina da Pfizer. Não houve mortes."Nós temos um atraso de início de vacinação, quando comparado a outros países. Os EUA e a Europa já estão vacinando as crianças há alguns meses e não foi visto nenhum efeito colateral grave com milhões de vacinados e a eficácia foi de aproximadamente 91% para essa faixa etária", diz a infectologista pediátrica Anne Galastri, integrante da diretoria da Sociedade Baiana de Pediatria (Sobape) e médica do Hospital Martagão Gesteira. O CDC identificou 11 casos de miocardite, uma inflamação do músculo cardíaco. Quando o relatório foi divulgado pelo órgão estadunidense, sete crianças já tinham se recuperado e as outras quatro estavam se recuperando. Além disso, o pediatra Eduardo Jorge, da SBP, explica que nem mesmo é possível saber se foi mesmo relacionado ao imunizante.
"Miocardite sempre existiu por outros vírus e vai continuar a existir. Ainda não se sabe se foi uma associação temporal - coincidência de tempo - ou uma associação causal, que é de causa e efeito".
Segundo ele, não se trata mais de uma vacina ‘em fase 3’ - ou seja, quando os ensaios clínicos ainda não foram concluídos e os cientistas tentam identificar a eficácia de um imunizante. Agora, a vacina da Pfizer já está na fase chamada de ‘mundo real’, com mais de dez milhões de vacinados só entre os EUA e o Canadá.
Além disso, outras fake news alegam que a vacina da Pfizer, especificamente, seria capaz de provocar alterações genéticas em quem as tomasse, inclusive as crianças. O imunizante, assim como o da Moderna (que não está disponível no Brasil), usa a tecnologia de RNAm, que vem sendo estudada há décadas.
Ainda que a da covid seja a primeira vacina com essa plataforma, para os especialistas, trata-se também do futuro de outras áreas da medicina, como os tratamentos para doenças cardíacas e o câncer. "Não tem nada a ver com modificação do DNA da pessoa. A tecnologia induz a célula humana a produzir uma proteína que vai ser reconhecida pelo sistema imunológico e vai produzir anticorpos. Isso não altera nem entra no DNA. É um ganho enorme não só para a vacina de covid, mas para o tratamento de doenças graves", acrescenta o médico.
Lotes O Ministério da Saúde comprou 15 milhões de doses da vacina da Pfizer, a única até então autorizada para crianças. Como é um imunizante de duas doses, a quantidade não é suficiente nem mesmo para a primeira dose de toda essa faixa etária, estimada hoje em 20 milhões no Brasil.
A vacina pediátrica é diferente da que é aplicada em pessoas com mais de 12 anos. Enquanto a de adolescentes e adultos tem 30 µg, a de crianças terá apenas 10 µg - ou seja, um terço do imunizante original. O intervalo recomendado pela farmacêutica também é de 21 dias entre as duas doses, mas não é possível usar o imunizante de adultos diluído. Até o frasco é diferente: o infantil é laranja, enquanto o de adolescentes e adultos é roxo.
Mas outro imunizante pode ser aprovado para essa faixa etária em breve. No dia 15 de dezembro, o Instituto Butantan enviou à Anvisa o pedido de indicação da vacina Coronavac para crianças. Nesse caso, o imunizante poderia ser usado em pessoas com 3 a 17 anos - hoje, a Coronavac só é aplicada em maiores de 18 anos no Brasil.
No Chile, mais de 100 milhões de doses de Coronavac já foram aplicadas em pessoas com idades entre 3 e 17 anos. Na China, eram mais de 84 milhões de crianças de 3 a 11 anos vacinadas até dezembro.
Através da assessoria, a Anvisa informou que emitiu uma exigência ao Butantan no último dia 22 e o instituto enviou documentos que estão em análise. A agência diz que não tem como antecipar previsões ou conclusões antes que o processo seja encerrado.
Segurança Para alguns especialistas, parte da insegurança relacionada às vacinas vem da própria postura do governo federal. Na última quinta-feira (6), o presidente Jair Bolsonaro atacou a vacinação infantil e deu uma informação falsa ao dizer que as mortes de criança por covid são ‘quase zero’. Só entre 5 e 11 anos, foram 308 mortes desde o começo da pandemia. Já o Ministério da Saúde vinha dizendo que exigiria prescrição médica para vacinar cada criança, o que foi amplamente criticado por sociedades médicas e científicas.
“Era um completo absurdo. Nenhuma vacina introduzida no calendário vacinal que faça parte da rotina tem exigência de prescrição”, critica o pediatra Eduardo Jorge. “A gente estaria agravando as desigualdades desse país. Enquanto um paciente de classe média consegue rapidamente um pediatra para examinar seu filho e prescrever uma vacina, o paciente mais pobre não tem esse acesso com facilidade”, completa.
Antes mesmo de o governo federal recuar na medida, mais de 20 estados já tinham se posicionado contra a exigência. A Bahia foi um dos que dispensou a prescrição para a vacina, por entender que, como o imunizante da Pfizer já havia sido liberado para este público, não haveria necessidade de um documento individual, como explica a coordenadora do programa estadual de imunizações, Vânia Rebouças, da Secretaria da Saúde do Estado (Sesab). “É um direito dessas crianças, assim como é dos adolescentes. A gente sabe que, aqui na Bahia, tem um grande número de casos de covid confirmados na faixa etária infantil. Com certeza, diante do cenário epidemiológico, a vacina sempre vai garantir mais proteção, aliado às medidas não farmacológicas”, afirma. A Bahia tem cerca de 1,4 milhão de crianças com idades entre 5 e 11 anos, com 150 mil delas em Salvador. Desde o começo da pandemia, foram 150 mil casos de covid-19 em pessoas até 19 anos no estado - desse total, 52 mil tinham até nove anos. Por isso, a preocupação com o calendário escolar. No entanto, como as primeiras doses devem chegar de forma escalonada até março, não haverá como vacinar todas as crianças antes do retorno às aulas.
“Diante do cenário epidemiológico que a gente vive, o risco de não estar vacinado é muito mais grave do que qualquer possibilidade de evento raro que decorra da vacinação”, reforça Vânia.
Mesmo assim, o retorno às aulas deve ser mantido com os protocolos que precisam continuar sendo rigidamente seguidos pelas escolas até o fim da pandemia, segundo a infectologista pediátrica Anne Galastri. “A vacinação é algo a mais, mas não reduz a necessidade de outros cuidados. Se pensar que temos também uma epidemia de influenza acontecendo, temos que nos manter vigilantes”, diz.
Além disso, as outras vacinas do calendário obrigatório infantil não podem ser deixadas de lado. Atualmente, em todo o país, os percentuais de cobertura para os imunizantes destinados a crianças até um ano de idade têm índices menores que 80%. Alguns chegam a ficar em torno de 50%, o que tem preocupado entidades como a Sobape e a SBP. “Se isso não melhorar rapidamente, a gente corre o risco de ter o retorno da poliomielite, de ter crianças morrendo por diarreia de rotavírus e de voltar a ter inúmeros casos de sarampo com óbito. É fundamental que não só a vacina da covid-19 seja realizada assim que estiver disponível nos locais de vacinação”. Movimentos antivacina usam tática para gerar medo, diz pesquisadora
Desde o começo da pandemia, combater fake news e desinformação tem sido um desafio enfrentado por cientistas e por parte das autoridades. Mas, agora, o grande alvo das fake news - assim como dos grupos negacionistas - é a vacina contra a covid-19 para crianças. De acordo com a pesquisadora Dayane Machado, doutoranda em Política Científica e Tecnológica na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), os movimentos antivacina costumam usar técnicas conhecidas com relação às crianças, ao longo dos anos. "Certos tipos de desinformação têm efeito melhor em gerar insegurança. A tática mais comum, que tem mais efeito, é gerar medo. E eles fazem isso dizendo que pode gerar efeito colateral grave, levantando acusação de que pode matar", explica. O resultado costuma ser rápido. "Quando você direciona esse medo para crianças, esse conteúdo tem mais chance de gerar reação emocional. No fundo, o que esses grupos querem hoje é essa reação emocional". Por isso, é comuns que usem supostos depoimentos em primeira pessoa. Em muitos casos, exploram o luto de famílias e distorcem histórias reais. O objetivo é gerar uma identificação com quem receber o conteúdo. "Outra abordagem é inventar histórias do nada. É muito comum que o movimento antivacinação roube fotos e histórias na internet. Tem fotos de crianças reais que estão vivas e saudáveis e foram distorcidas", exemplifica Dayane.
Com a internet e a possibilidade de monetizar conteúdo até em plataformas gratuitas, esses momentos consideram a desinformação como uma forma de negócio lucrativo. "Os movimentos antivacinação conseguem explorar ao máximo esses recursos para que o conteúdo chegue mais longe", diz.
Mesmo assim, ela diz que, em uma pandemia, é esperado haver hesitação vacinal - em diferentes graus. Não necessariamente alguém que está hesitante em um primeiro momento é contrário às vacinas ou deixará de se vacinar. "A diferença grande do que a gente esperava é a postura do governo. Precisa ter coerência no que faz. Se a gente tem órgãos oficiais espalhando mensagens deliberadamente erradas, é muito difícil reagir porque vai desenvolver algum nível de hesitação mesmo. É natural que as pessoas fiquem com dúvidas. O que a gente precisa fazer é acolher essas pessoas e trazer informações confiáveis", orienta.
Em muitos casos, o exemplo de outras famílias pode ajudar. A designer gráfico Anne Pires, 34 anos, está ansiosa para conseguir vacinar as filhas Mariana, 11, e Manuela, 7. Esta semana, ela fez uma ilustração representando a imunização das crianças através de uma vacina para as filhas e publicou em suas redes sociais. Anne e as filhas Manuela, 7, e Mariana, 11, aguardam o momento em que elas poderão se vacinar (Foto: Acervo pessoal) A outras mães, pais e famílias em geral, ela diz que o primeiro movimento deve ser buscar fontes confiáveis de informação e não se assustar ou acreditar em tudo que chega pelas redes sociais."Temos que confiar na Anvisa, que é um órgão muito capacitado. Eles não liberaram de qualquer jeito. É confiar e olhar para outros países que estão vacinando as crianças. O benefício é maior do que qualquer reação adversa", opina. Em casa, ela costuma conversar com as filhas sobre como se proteger da covid-19. Hoje, as duas meninas também já estão ansiosas pelo momento da própria vacina. "Elas têm essa consciência de que, se vacinando, se protegem individualmente, mas também estão protegendo outras pessoas". Na família, que chegou a perder um tio de 40 anos, sem comorbidades, todos os adultos já estão vacinados.
Para Anne, a liberação para o público infantil está demorando. "Já podiam ter garantido a saúde das crianças nas festas de fim de ano, assim que a Anvisa liberou. A gente tem pressa. As mães têm pressa, todos que estão se informando e vendo que tem mais benefícios do que risco têm pressa", reforça.
A infectologista pediátrica Anne Galastri diz que comum que os pais tenham dúvidas. No entanto, é preciso usá-las para se informar, não para deixar de vacinar as crianças. "Inclusive, ter dúvidas e questionar aumenta nossa segurança ao fazer algum ato. Mas, sem dúvida nenhuma, devemos vacinar nossas crianças. Temos uma grande parte da população já vacinada. Logo, quem não está vacinado é que vai ser mais suscetível. Se temos crianças não vacinadas, elas estão mais suscetíveis", explica.