Ansiosos e sozinhos: como o fim do home office tem afetado os pets
Volta à rotina tem sido desafio para alguns tutores; especialistas orientam como fazer a transição
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Thais Borges
thais.borges@redeabahia.com.br
Desde que foi adotado pela empresária e médica veterinária Marília Machado, 35 anos, o gato Merlim, 4, se acostumou a ficar sozinho em casa. Como ela trabalhava fora, já fazia parte da rotina do bichinho ficar algumas horas sem companhia. Só que a pandemia mudou as coisas e, de repente, os dois estavam sempre juntos. “Ele se manteve bem, mas eu percebi que ficou muito mais apegado a mim”, conta.
O problema é que, com a flexibilização e o gradual retorno às atividades, ao longo dos últimos meses, Marília teve que voltar à rotina anterior. Mas Merlim sentiu a mudança.“Primeiro, começou com alterações de intestino e estômago. Ele começou a vomitar. Depois, ficou se coçando bastante e teve queda de pelo em alguns locais pontuais. Fiquei assustada”, conta Marília. Merlim nunca havia ficado doente assim. O diagnóstico não foi tão simples, justamente por conta dos sintomas. Antes, foi preciso descartar outras doenças, inclusive ação de fungos, bactérias e vírus. Nenhum dos exames indicava nada além do distúrbio de comportamento. Apesar de ser profissional da área, Marília não imaginava qual seria o resultado: a Síndrome da Ansiedade por Separação.
Nos últimos meses, casos como o de Merlim têm sido comuns em clínicas e hospitais veterinários da Bahia. Ainda que não existam estatísticas disponíveis, a médica veterinária Aline Quintela, coordenadora do curso de Medicina Veterinária da Unime Lauro de Freitas, explica que relatos dos tutores com situações parecidas têm aumentado à medida que mais pessoas têm saído do home office. “A gente passou um ano e meio de contato intenso, 24 horas por dia, sete dias por semana. De repente, começa a flexibilização, muita gente voltando ao trabalho híbrido ou presencial e os animais não entenderam nada. Temos atendido um número cada vez maior de animais com ansiedade da separação e normalmente os donos não sabem o que está acontecendo”, analisa. Mesmo os gatos, famosos por serem animais mais independentes do que os cães, não estão imunes a esses problemas. Apesar de serem supostamente menos apegados, é preciso que os tutores estejam atentos aos sinais. Segundo Aline, os chamados comportamentos estereotipados costumam indicar que algo está errado.
“São aqueles que começam a se repetir muito, como, por exemplo, quando o animal começa a raspar e arranhar a porta, a janela, destruir móveis e fazer xixi e cocô onde normalmente não faz. É uma tentativa de chamar atenção”, explica. No caso dos gatos, o que parece ser um problema de pele, muitas vezes, acontece quando o pet lambe demais o pelo e arranca. Alguns animais chegam até a se ferir.
Descarte Por isso, a maior parte dos diagnósticos deve ser feito através do descarte, como aconteceu com o gato Merlim. No caso dele, já são quase seis meses em tratamento. De lá para cá, ele tomou medicações específicas para os sintomas e a tutora Marília fez algumas alterações no ambiente.
Agora, ela deixa mais brinquedos espalhados pela casa, alguns arranhadores e uma caixa de papelão, que os bichanos adoram brincar. Além disso, ela incluiu obstáculos para que ele possa interagir durante o tempo em que ela fica fora de casa.
Hoje, o gato já não tem problemas digestivos e o pelo já voltou a crescer, apesar de ainda não ter melhorado completamente.
“A gente sempre vê falar de ansiedade, mas nunca imagina que vai ser com o nosso animal. Muito se fala em crianças, em pessoas, mas não tanto em animais. Por isso é um assunto importante, que precisa ser abordado. É um problema sério, que pode impactar na qualidade de vida e até pessoas que são da área podem desconhecer”, diz a tutora.
Enriquecimento Entre os cães acompanhados pela adestradora e consultora comportamental Paula Maiana, a demanda por atendimento a animais com ansiedade por separação mais do que dobrou. “Antes da pandemia, a cada dez cães que eu pegava, tinha dois, talvez três, com ansiedade da separação. Agora, metade dos casos é de cachorros assim”, conta a profissional.
Além daqueles que perderam o costume de ficar sozinhos, há situações de pets que foram adotados na pandemia. Por isso, sequer conheceram a rotina anterior de seus tutores.
"A vida toda dele é concentrada ao redor daquela pessoa. É aquele cachorro que não consegue ficar sozinho, fica de olho na porta, arranha, uiva, às vezes se automutila. Ele não faz nada além de esperar o tutor chegar", explica.
Por isso, o enriquecimento ambiental costuma ser um grande trunfo. No entanto, não basta deixar esses objetos pela casa apenas quando o animal está sozinho. Brinquedos interativos, por exemplo, podem ser uma ótima saída, mas não devem ser usados apenas quando os humanos vão sair de casa. "Muitas vezes, o cãozinho faz essa associação: 'poxa, estou recebendo esse brinquedo e vou ficar sozinho'. Ele começa a odiar aquele brinquedo e a coisa não funciona. O enriquecimento precisa fazer parte do dia a dia, tanto quando o tutor está em casa quanto quando não está", reforça. Às vezes, os tutores também precisam de orientações específicas - e até fazer parte do tratamento. Segundo Paula, muitos também ficam ansiosos, o que acaba transferindo um pouco do sentimento para o animal.
Por isso, ela sempre recomenda que tenham paciência. "Tem que ir no tempo dele, confiar e tentar ver as pequenas melhoras ao longo dos dias. Se você já consegue tomar banho sozinho, ótimo. Agora, o próximo desafio vai ser deixá-lo sozinho para ir buscar uma correspondência na portaria e, aos poucos, aumentando esse tempo. Tem que comemorar as pequenas vitórias", diz.
Tratamento Com o beagle Zeus, 3, tem sido assim. Há pouco mais de dois meses, ele começou o acompanhamento com Paula. Desde então, a arquiteta Camila Kalil, 33, tutora dele, tem trabalhado até a forma como sai de casa.
"Eu brinco que, no treinamento, também sou adestrada, porque, quando chegava em casa, eu fazia festa, abraçava sempre antes de sair e isso não é bom", lembra.
Zeus não chegou a ter problemas digestivos, urinários ou dermatológicos. Mas a mudança comportamental foi drástica. "Quando a gente pegou ele, eu não trabalhava. Só que ele era um cachorro bem ativo, brincalhão. Por mais que eu ficasse muito tempo com ele, não tinha esse problema de não poder sair que ele chorava", lembra Camila.
Mas o confinamento veio com uma redução também do tempo que Zeus podia sair para passear. As três horas diárias viraram alguns minutos. Para compensar, Camila e o esposo brincavam muito com Zeus dentro de casa, para ajudar a gastar a energia.
Quando ela voltou a trabalhar, os pais dela tinham vindo passar um tempo na casa. Por isso, Zeus não se viu tão sozinho. No entanto, logo depois também precisaram mudar de casa. "No primeiro dia que deixei ele em casa, quando voltei, a porta da rua estava toda cavada. Na primeira semana, recebi uma ligação do condomínio dizendo que meu cachorro estava uivando na varanda o dia inteiro. Faço só meio turno, saio às 14h e volto às 19h, mas quando chegava ele estava com as patas molhadas, ofegante e a porta destruída", conta.
Ela decidiu matriculá-lo em uma creche, mas não deu certo. O que pode ser uma saída para muitos animais acabou sendo ainda pior para Zeus. A sensação que ele parecia ter é de que tinha sido largado no local. Por isso, passava o dia inteiro na creche no canto, sem querer brincar.
Mesmo hoje, no treinamento, ele ainda tem dificuldade para brincar com outros pets. Quando vão ao cachorródromo, Zeus até vai, mas fica olhando em volta para garantir que a tutora não foi embora. Com um tratamento que inclui de brinquedos de enriquecimento ambiental a mudanças de hábito como não dormir mais com os tutores, já dá para perceber a mudança no animal. "Hoje, já tem quase dois meses de treinamento e ele é outro cachorro. Não cava mais as paredes, nem a porta, nem recebo ligação dos vizinhos. Quando a gente chega em casa, às vezes ele está sentado na varanda olhando a paisagem", acrescenta. Ainda assim, cada animal vai ter um tempo próprio para o tratamento, que deve ser individualizado. No entanto, como a síndrome é multifatorial, a recomendação é sempre buscar um médico veterinário.
"O diagnóstico é sempre difícil e a gente precisa desse comprometimento pelo menos uns três meses, em média. Às vezes, tem tutores que resistem até a colocar o animal no chão. É uma relação extremada de ambos os lados, por isso o trabalho é para os dois", diz a médica veterinária Aline Quintela, da Unime.
Algumas dicas para tutores que vão passar pela mudançaNão reforçar comportamentos inadequados, como despedidas cheias de carinho ou fazer festa quando chegar em casa. Deixar brinquedos interativos que o pet possa brincar enquanto estiver sozinho. No entanto, evite oferecer esses brinquedos apenas nesses momentos, para que ele não associe a uma coisa ruim. Para gatos, invista também no enriquecimento ambiental vertical, como o uso de prateleiras para que possam subir. Estimule que o pet brinque sozinho também, não apenas com você. Faça pequenas separações: voltar a passar um dia inteiro fora pode ser uma quebra de rotina muito grande. Por isso, se possível, faça uma adaptação aos poucos, por alguns minutos e, depois, por algumas horas. Se não for possível fazer essa transição gradual, considere deixá-lo na casa de alguém durante o período. Controle a própria ansiedade. Tenha paciência e comemore os passos dados pelo pet. Quem tiver a oportunidade pode investir em creches caninas ou no serviço de passeadores profissionais. No entanto, é importante saber se essa é a melhor alternativa para seu pet. Para alguns, pode ser um estressor.